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Carta Aberta de Audre Lorde a Mary Daly

Querida Mary,
Tendo um momento para respirar nessa primavera selvagem e maldita, eu queria lhe dizer aquelas palavras que tenho guardado para você. Eu havia esperado que nossos caminhos se cruzassem e que pudéssemos nos sentar lado a lado para conversar, mas isso ainda não aconteceu.
Eu lhe desejo força e satisfação em sua eventual vitória sobre as forças repressivas da Universidade em Boston. Fico feliz que tantas mulheres tenham comparecido ao debate público, e espero que essa demonstração de poder conjunto abrirá mais espaço para o seu crescimento e sua permanência.
Obrigada por me enviar Gyn/Ecology. Muito dele é cheio de significado, utilidade, gerativo e provocativo. Da mesma forma que em Beyond God The Father, muito das suas análises é fortificante e de ajuda para mim. Isso posto, é por causa da sua contribuição para mim em seus trabalhos passados que eu lhe escrevo, agora, esta carta, na esperança de compartilhar com você os benefícios das minhas ideias, assim como você compartilhou os benefícios das suas comigo.
Esta carta foi adiada por conta da minha grave relutancia em te procurar, dado que aquilo que pretendo esmiuçar aqui não é fácil, nem simples. A história das mulheres brancas que foram incapazes de ouvir as palavras das mulheres negras, ou de manter diálogo conosco, é longa e desencorajante. Mas, para mim, pressupor que você não vá me ouvir representa tanto a história como quanto, talvez, um antigo padrão de relacionamento, por vezes protetivo e por vezes desfuncional, padrão que nós, como mulheres construindo um futuro, estamos em processo de quebrar e passar para trás, eu espero.
Acredito em sua boa fé em direção a todas as mulheres, em sua visão para um futuro dentro do qual todas nós possamos florescer, e em seu comprometimento com a tarefa árdua e por vezes dolorosa de efetuar mudança. É com esse espírito que a convido para um esclarecimento [clarification] de algumas das diferencas que se colocam entre nós como negras e uma mulher branca.
Quando comecei a ler Gyn/Ecology, estava verdadeiramente entusiasmada com a visão por trás de suas palavras e concordava com a cabeça enquanto você falava, na Primeira Passagem, sobre mitos e mistificação. Suas palavras sobre a natureza e função da Deusa, bem como os modos como a face dela tem sido obscurecida [obscured], concordam com o que eu mesma descobri, em minhas pesquisas sobre mitos/lendas/religiões africanas, sobre a verdadeira natureza do poder feminino ancestral.
Então, me perguntei, por que Mary não cita Afrekete como exemplo? Por que suas imagens de deusas são apenas brancas, europeias, judaico-cristãs? Onde estava Afrekete, Iemanjá, Oyo e Mawulisa? Onde estariam as deusas guerreiras de Vodun, as amazonas de Dahomeian, e as mulheres guerreiras de Dan? Bem, eu pensei, Mary fez uma decisão consciente de diminuir o escopo e lidar apenas com a ecologia das mulheres ocidentais europeias.
Então, passei pelos primeiros três capítulos de sua Segunda Passagem, e ficou óbvio que você estava lidando com mulheres não europeias, mas apenas como vítimas e predadoras de si mesmas. Comecei a sentir minha história e meu cenário mítico distorcido pela ausência de qualquer imagem de minhas antecessoras no poder. Sua inclusão da mutilação genital africana foi uma peça importante e necessária para a consideração de qualquer ecologia feminina, e pouquíssimo foi escrito sobre isso. Mas sugerir que todas as mulheres sofrem a mesma opressão simplesmente por serem mulheres é perder de vista a variedade dos instrumentos do patriarcado. É ignorar como essas ferramentas são usadas por mulheres, desavisadamente, umas contra as outras.
Desprezar nossas antecessoras negras pode muito bem ser o mesmo que desprezar o lugar onde as mulheres europeias aprenderam a amar. Falando como uma mulher afro-americana sob patriarcado branco, estou acostumada a ter minha experiência arquetípica distorcida e trivializada, mas é horrivelmente doloroso sentir isso ser feito por uma mulher cuja sabedoria toca tanto a minha própria.
Quando falo de sabedoria, como você sabe, estou falando da produndidade negra [dark] e verdadeira sob a qual a compreensão serve, atende, e se faz acessível por meio da linguagem para nós mesmas e outras. É essa profundidade dentro de cada uma de nós que nutre a visão.
O que você excluiu de Gyn/Ecology dispensou minha herança e a herança de todas as mulheres não europeias, e negou as reais conexões que existem entre todas nós.
É óbvio que você fez uma quantidade de trabalho enorme para esse livro. Mas o fato de simplesmente haver pouco material sobre o poder e simbologia feminina de não brancas, dentro da perspectiva feminista radical, excluir esse aspecto da conexão, sequer comentando-o em seu trabalho, é negar a fonte da força e poder das mulheres não europeias que nutre cada uma de nossas visões. É escolher fazer uma afirmação.
Então, perceber que as únicas citações de mulheres negras foram aquelas usadas por você na introdução do capítulo sobre mutilação genital africana me fez questionar por que você sequer precisou usá-las. Da minha parte, senti que você realmente usou mal minhas palavras, utilizou-as apenas para testemunhar contra mim mesma na qualidade de mulher não branca [of colour]. Uma vez que minhas palavras, usadas por você, não eram mais ilustrativas desse capítulo do que “A poesia não é um luxo”, ou qualquer outro poema meu, seria de muitas outras partes de Gyn/Ecology.
Então, a pergunta que fica em minha mente, Mary, é se você realmente lê os trabalhos de mulheres negras? Será que você já leu mesmo minhas palavras, ou você apenas pescou citações que você pensou darem um apoio valorozo a ideias pré-concebidas a respeito de alguma conexão ancestral e distorcida entre nós? Essa pergunta não é retórica. Para mim, essa parece ser outra instância de conhecimento, cronologia e trabalho das mulheres não brancas sendo tornadas gueto por uma mulher branca que está usando apenas o patriarcado ocidental europeu como referência. Mesmo suas palavras na página 49 de Gyn/Ecology, “a força que a mulher Ego-centrada [Self-centered] encontra, ao encontrar suas raízes, é a nossa própria força, que levamos de volta aos nossos Eus [Selfs]”, têm um tom diferente quando lembramos as antigas tradições de poder e força e nutrição encontradas na criação de laços entre mulheres africanas. Está lá para ser despejada por todas as mulheres que não temem a revelação de conexão entre si.
Você leu meu trabalho, e o trabalho de outras mulheres negras, em nome do que isso poderia te acrescentar? Ou caçou através deles apenas para encontrar palavras que legitimassem seu capítulo sobre mutilação genital aos olhos de outras mulheres negras? E se sim, então por que não usar nossas palavras para legitimar e ilustrar outros lugares onde nos conectamos em nossos seres e devires? Se, por outro lado, você não estava tentando alcançar mulheres negras, em que sentido nossas palavras ilustraram o seu ponto para as mulheres brancas?
Mary, peço que você tome consciência de como isso serve para as forças destrutivas do racismo e da separação entre mulheres – o pressuposto de que a história e mito das mulheres brancas é o único cenário legítimo e a única história e mitologia de todas as mulheres que poderíamos clamar para empoderamento e cenário, e que mulheres não brancas e nossas histórias são dignas de nota apenas como decoração, ou de exemplos de vitimização feminina. Peço que tome consciência do efeito que esse desprezo tem sobre a comunidade das mulheres negras e de outras mulheres não brancas, e como isso desvaloriza tuas próprias palavras. Essa dispensa não difere essencialmente do desprezo especializado que faz as mulheres negras serem prezas, por exemplo, de assassinos, coisa acontecendo exatamente agora em nossas cidades. Quando o patriarcado nos dispensa, ele encoraja nosso assassinato. Quando a teoria lésbica feminista radical nos dispensa, encoraja a sua própria dispensa.
Essa dispensa se coloca como um bloqueio real de comunicação entre nós. Esse bloqueio faz com que seja muito mais fácil te dar as costas completamente do que tentar entender o pensamento por trás das suas escolhas. Será que o próximo passo deveria ser a guerra entre nós, ou nossa separação? Assimilação dentro de uma história unicamente ocidental e europeia não é aceitável.
Mary, peço que você relembre o que há de escuro [dark] e antigo e divino dentro de si mesma que ajuda no seu falar. Como pessoas olhando de fora, precisamos uma da outra para apoio e conexão e todas as outras necessidades de se viver à margem. Mas para que nós possamos nos juntar, precisamos reconhecer uma a outra. Apesar disso, eu sinto que você me descaracterizou [un-recognized] tão completamente, que talvez eu tenha errado quanto a você e não mais a reconheça.
Sinto que você de fato celebra as diferenças entre mulheres brancas como uma força criativa em direção à mudança, em vez de uma razão para desentendimento e separação. Mas você falha em reconhecer que, como mulheres, essas diferenças expõem todas as mulheres a formas variadas e diferentes níveis de opressão patriarcal, sendo que partilhamos de algumas e não de outras. Por exemplo, você certamente sabe que, para as mulheres não brancas deste país, há uma mortalidade de 80% para o câncer de mama; três vezes o número de [eventrations], histerectomias e esterilizações desnecessárias, em relação às mulheres brancas; três vezes a chance de serem estupradas, ou assassinadas, ou assediadas em relação às mulheres brancas. Estes são fatos estatísticos, não coincidências nem fantasias paranoicas.
Dentro da comunidade das mulheres, o racismo é uma força real em minha vida, e não na sua. As mulheres brancas com capuzes em Ohio, distribuindo nas ruas a literatura da Ku Klux Klan, talvez não gostem do que vou dizer, mas elas atirariam em mim assim que me vissem. (Se eu e você entrássemos em uma sala de aula no Alabama, onde a única coisa que soubessem de nós era que somos ambas feministas/lésbicas/radicais, você entenderia o que eu digo).
A opressão das mulheres não possui limites étnicos nem raciais, de fato, mas isso não significa que é idêntica dentro dessas diferenças. As reservas de nossos poderes ancestrais também não conhecem esses limites. Lidar com um deles sem sequer mencionar o outro é distorcer o que temos em comum, da mesma forma que distorce as nossas diferenças.
Pois, para além da irmandade, continua sendo racismo.
Encontramo-nos pela primeira vez na reunião de MLA, “A transformação do silêncio em linguagem e ação”. Esta carta tenta quebrar um silêncio que eu impus a mim mesma pouco antes daquela data. Eu havia decidido nunca mais falar com uma mulher branca sobre racismo. Sentia que era uma energia desperdiçada por conta de uma culpa destrutiva e de defensividade, e porque o que quer que eu tivesse para dizer seria melhor dito de mulheres brancas umas para outras, com um custo emocional muito menor para a locutora, que provavelmente seria melhor ouvida. Mas eu queria não destruir você em minha consciência, não precisar fazer isso. Então, como uma irmã Hag, peço que dialogue com minhas percepções.
Quer você o faça ou não, Mary, agradeço novamente pelo que aprendi com você.
Esta carta é um pagamento

Nas mãos de Afrekete
Audre Lorde

NOTAS:

[1]A Mary Daly respondeu a carta da Audre Lorde, pode ser visualizada neste link http://feminismandreligion.com/2011/10/05/mary-daly%E2%80%99s-letter-to-audre-lorde/
[
2] Também no livro Radical Feminism Today, da Denise Thompson, ela coloca que houve uma confusão por parte da Audre, pois segundo ela Mary Daly não estaria celebrando as religiões européias mas sim as criticando. Mas eu tenho pendente ler apenas vi uma parte ser citada em uma discussão.

 

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