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[em tradução] A REVOLUÇÃO SEXUAL LÉSBICA – Sheila Jeffreys

(texto ainda incompleto)

CAPÍTULO II

A REVOLUÇÃO SEXUAL LÉSBICA

Nos anos 80 se produziu uma revolução sexual lésbica. Os historiadores tradicionais da sexualidade da corrente dominante masculina valoram muito positivamente as duas revoluções ocorridas, a seu entender, nas décadas dos 20 e dos 80, e que levaram à liberação e o prazer às mulheres. Em meus dois livros anteriores quis demonstrar que estas revoluções são na verdade ajustes de forças da supremacia masculina.

O poder masculino ficou re-afirmado mediante o recrutamento das mulheres para o coito e a orquestração de sua resposta sexual ante a conotação erótica de sua própria subordinação. Estas revoluções ou ajustes das técnicas de controle do poder da Supremacia Masculina se realizaram em nome da ciência e da saúde utilizando, não obstante, a retórica do liberalismo.

Estas revoluções contribuíram à legitimação de una pujante indústria pornográfica, à criação de uma indústria de terapias sexuais e de manuais de consulta sexual e à instalação de sex shops e reuniões de sexo ao estilo tupperware nas quais se vendia o instrumental de sexo como os dildos e os trajes de couro, goma e de vinil. Durante todo esse tempo as lésbicas conseguiam de alguma maneira amar-se e fazer amor sem toda essa parafernália, enquanto que no mundo heterossexual o sexo sem livros de autoajuda, sem pornografia e sem o equipamento adequado se tornava praticamente impossível. O sexo lésbico era inovador, imaginativo, se podia aprender por conta própria, era de baixa tecnologia, não custava dinheiro nem proporcionava lucros aos industriais do sexo. Nos anos 80, a situação mudou e deu lugar a uma indústria do sexo lésbico. Para que esta indústria fosse lucrativa, foi necessário transformar a sexualidade lésbica para adaptá-la ao modelo da coisificação, que requer a criação de consumidoras de sexo lésbico – consumidoras não apenas de produtos mecânicos, senão ademais de outras mulheres, através da pornografia e da prostituição. A sexualidade lésbica começava por fim a captar a atenção de empresários, terapeutas sexuais e pornógrafos.

A consequência desta dramática acometida elaborada com o fim de reconstruir a sexualidade lésbica, se produziu a incorporação parcial das lésbicas às estruturas políticas de controle do Heteropatriarcado. As lésbicas que inventavam sua própria sexualidade não encaixavam na engrenagem devido a sua visão de uma

sexualidade alternativa não centrada em pênis, metas, coisificação, domínio e submissão. Não estavam sujeitas ao poderoso controle sexual da Supremacia Masculina que determinava a configuração do prazer sexual. Não sempre se dedicavam a conotar eroticamente sua própria subordinação, constituindo assim um perigo potencial para o sistema sexual do Heteropatriarcado. A revolução sexual lésbica aprisionou às lésbicas submetendo-as sexualmente também a elas.
Porém, a interpretação da revolução sexual lésbica que fazem os meios gays mistos e a literatura dos estudos acadêmicos lébicos-e-gays, é distinta . O novo e reluzente despliegue de posibilidades…[parece que falta uma parte, complementar depois]
Utilizo o termo “lésbico-e-gay” para assinalar aqueles teóricos que não distinguem em sua teoria entre lésbicas e homens gays. Eluden as descobertas feministas a respeito das distintas classes sexuais de mulheres e homens, homogenizando a experiência de ambas com o fim de criar uma teoria gay universal onde a condição específica das lésbicas fica oculta. Este enfoque é próprio sobretudo dos teóricos e teóricas pós-modernas a cujo trabalho me refiro no capítulo “Retorno ao gênero”. Dildos, pornografia, clubes de sexo, prostitutas – aparece como fonte de uma livre escolha, de diversão prazer e liberdade individual, como a encarnação daquilo pelo que sempre lutaram as lésbicas: o objetivo mesmo da revolução lésbica. A luta política das lésbicas se desvia a uma falsa liberação que, a meu ver, resultará tão enganosa para as lésbicas como o foi a liberdade sexual dos 60 e 70 para as mulheres heterossexuais. Esta última elevou a quantidade de coitos e, porém, as mulheres não alcançaram a liberdade. A revolução sexual lésbica para lograr seu êxito depende da aniquilação de toda discussão política sobre a construção do prazer sexual e seu lugar dentro da revolução lésbica e feminista. Depende do acordo sobre a separação entre o público e o privado a respeito do prazer sexual: o

que nos excita não tem relevância para a luta política. Depende da linguagem do liberalismo sexual. Quando se trata de sexo, muitas lésbicas que se consideram progressistas, feministas, socialistas y antirracistas, abandonam sua postura política e adotam um liberalismo profundo.

Sempre que quis analisar a terapia sexual ou o sadomasoquismo desde uma postura política fui tachada de moralista ou sentenciosa. A crítica política se considerou tabu. Gostaria de analisar este tabu e sua origem, em um intento de voltar a introduzir o prazer sexual e a prática sexual na discussão política. A prática sexual é o único caso em que a análise política é normalmente tachada de moralista; não ocorre com outras questões. Porém, me atreveria a dizer que todos os juízos políticos costumam ter uma base moral. A raiva contra o que se vive como opressão nasce justamente de um sentido do bem e do mal. Agora, o debate sobre a moral não está na moda na sociedade capitalista e menos ainda esteve nos 80 e nos 90, quando o mercado decreta a irrelevância deste debate. Porém, nada mais misterioso que este sentido de bem e do mal subjaz a todos os juízos políticos. As mesmas pessoas que chamam de moralista a análise política da prática sexual emitem juízos morais em outros campos da vida. Normalmente não se chamaria moralista a quem luta por conseguir a desigualdade econômica. A sexualidade é o único terreno que deve estar livre de todo juízo moral ou político. Quero analisar o conceito feminista de sexo como questão política, começando pelas áreas menos conflituosas e terminando pela que mais problemas apresenta: a prática sexual.
A maior parte das feministas coincide provavelmente no caráter político da violência sexual dos homens contra as mulheres. As teóricas feministas vieram escrevendo páginas após páginas sobre o papel político da violência sexual como suporte crucial e funcional do sistema político da supremacia masculina . Todo o espectro da violência sexual – incluídos o abuso sexual na infância, o exibicionismo e o assédio sexual, a pornografia, a violação conjugal e os assassinatos de mulheres – tem como fim o controle, o desarme e a submissão das mulheres.

Na universidade onde exerço se deu vários exemplos de como a violência sexual pode limitar as vidas e as oportunidades das mulheres. Em uma ocasião certos avisos expostos em três zonas distintas advertiam as alunas de que deviam ser precavidas. Outras notas nos banheiros de mulheres do centro estudantil preveniam as mulheres de possíveis assaltos, recomendando-as a não entrar sozinhas nos serviços e olhar atrás das portas das cabines. Posteriores avisos no mesmo sentido adornavam os vestiários femininos do centro esportivo, assim como distintas zonas da biblioteca. Desta maneira a “igualdade de oportunidades” das alunas ficava seriamente mermada na hora do intervalo, do estudo e da micção. A maioria das universidades conta provavelmente com problemas parecidos ou piores de violência sexual masculina.

Todas as precauções rotineiras se convertem em uma segunda pele para as mulheres, e somente uma análise feminista descobrirá seu sometimento ao sistema de controle político. Não todas as teóricas feministas estão de acordo na definição do estupro marital e do abuso sexual; porém, a maioria coincidiria em qualificar a violência sexual de construção política com uma determinada finalidade política dentro do sistema de supremacia masculina.

Outro tema referido ao caráter político da sexualidade em que coincidiria grande parte das teóricas feministas é o da construção da heterossexualidade como princípio organizador das relações sociais em um sistema de Supremacia Masculina. Talvez estejam em desacordo sobre a magnitude da relevância da

heterossexualidade como instituição perpetradora do Poder Masculino, mas provavelmente coincidirão em assinalar que as pressões exercidas sobre as mulheres para que estas adotem a heterossexualidade assistem os propósitos da Supremacia Masculina. Sem o princípio da heterossexualidade um homem concreto dificilmente obteria sem remuneração o conjunto de todos os serviços sexuais, reprodutivos, econômicos, domésticos e emocionais das mulheres. Por regra geral, as feministas atuais não consideram a orientação heterossexual um assunto meramente privado e individual, independente do poder masculino.
[Para debate do liberalismo sexual, ver la antologia de D. Leidholdt y J.G. Raymond (comps.), The Sexual Liberals & the Attack on Feminism, Oxf. y NY Pergamon Press (TCP), 1990. ]

[Para um debate de la violencia sexual masculina como controle social, ver: Susan Brownmiller, Against Our Will: Men, Women and Rape. Londres, Secker & Warburg, 1975. [en cast.: Contra nuestra voluntad. Hombres, mujeres y violación, Barcel., Planeta, 1981]. Lal Coveney y cols. (comps.), The Sexuality Papers, Londres, Hutchinson, 1984. Ver introducción. ]


[Referente a heterossexualidade como institución, véase: Adrienne Rich, “Compulsory Heterosexuality and Lesbian Existence”, en Anne Snitow y cols. (comps.), Desire: The Politics of Sexuality, Londres, Virago, 1984. Editado como Powers of Desire, Nueva York, Monthly Review Press, 1983. Monique Wittig, The Straight Mind and Other Essays, Boston, Beacon Press, 1992. El capítulo 6 de mi obra Anticlimax. A Feminist Perspective on the Sexual Revolution, Londres, The Women’s Press, 1990. Para una formidable crítica de la idea de la preferencia sexual, véase: Celia Kitzinger, The Social Construction of Lesbianism, Londres, Sage Publications, 1987. ]

É na área da construção do prazer sexual e da prática sexual onde surgiram os conflitos sobre uma concepção política da sexualidade. O sexo se segue considerando um assunto privado, individual e consensuado, um tabu para a análise política. O feminismo estabelece conexões, e neste caso as conexões parecem evidentes. Tanto a heterossexualidade como sistema político, como a violência sexual como controle social obedecem à construção do desejo heterossexual. Com “desejo heterossexual” me refiro à conotação erótica do desequilíbrio de poder que tem sua origem nas hetero-relações, mas que pode dar-se igualmente nas relações entre pessoas do mesmo sexo. Uma análise feminista assinalaria a necessidade de reconstruir a sexualidade com o fim de desmantelar o sistema sexual da Supremacia Masculina.
Com este fim haveria que construir o que denomino “desejo homo-sexual”, ou conotação erótica da igualdade. En minha obra Anticlimax aponto que a liberação das mulheres não será possível enquanto se considere sexy sua subordinação.

Agora pois, com respeito ao tema do prazer sexual algumas feministas e lésbicas não estão dispostas a estabelecer estas conexões. Para poder apreciar a carga política da prática sexual é necessário por em juízo o conceito liberal do privado. Tanto as feministas como as ativistas lésbicas e os ativistas gays utilizaram de forma estratégica a noçao de‘o privado’ na luta por seus objetivos, já que se trata de um conceito que o estado liberal compreende bem. A liberalização da lei sobre a homossexualidade masculina na Grão Bretanha em 1967, por exemplo, se apoiava na idéia do direito da pessoa à intimidade. Porém, para as feministas esta é uma idéia muito conflitiva. A teórica feminista estadunidense Catharine MacKinnon expôe admiravelmente os problemas que supôe o conceito legal da intimidade para as mulheres: “Reafirma e reforça o objeto da crítica feminista sobre a sexualidade: a separação entre o público e o privado”. Em sua luta por conseguir que a violência conjugal e os abusos sexuais fossem considerados delito, as feministas tiveram que insistir no fato de que a opressão das mulheres se produzia tanto no âmbito privado da casa e do dormitório como no âmbito público. Tanto em sua luta contra a violência masculina como em sua crítica do trabalho doméstico não remunerado, as feministas esgrimiam o slogan da campanha: “O pessoal é político”. MacKinnon aponta:

“Certamente não é casual que as mesmas coisas que o feminismo considera centrais para o sometimento das mulheres – o lugar mesmo: o corpo; as relações mesmas: heterossexuais; as atividades mesmas: coito e reprodução; os sentimentos mesmos: íntimos – constituem o eixo da doutrina da intimidade. Desde esta perspectiva o conceito legal de intimidade pode proteger o lugar dos maus-tratos, da violação conjugal e da exploração do trabalho feminino – e o havia protegido de fato- e ajudou para perpetuar as principais instituições mediante as que se despoja as mulheres de sua identidade, de sua autonomia, de seu controle e sua auto-definição; e protegeu assim a principal atividade através da qual se expressa e se impôe a Supremacia Masculina.”

É factível pôr em entredito o sagrado princípio apolítico do “pessoal” com o fim de lutar contra o abuso sexual. Embora existam sérias diferenças de opinião sobre os requisitos da “violação conjugal”, há consenso entre as feministas sobre a existência deste fenômeno e sobre a necessidade de erradicá-lo. Mas parece ser mais difícil converter o pessoal em político quando se trata de uma prática sexual aparentemente consensuada, se bem os trabalhos feministas sobre a violação conjugal tenham colocado entredito o conceito mesmo de consentimento, e por minha parte farei o mesmo logo mais com relação ao sadomasoquismo. Segue

existindo, portanto, um aspecto do sexo que as liberais feministas continuam considerando privado. Parece crucial para elas que uma área da vida siga se mantendo em certo estado natural, a modo de reserva onde o indivíduo coaccionado possa recorrer em pós de alivio.

O problema da politização do sexo “consensuado” não somente estriba no conceito liberal de intimidade, senão ademais em outras idéias chave da revolução sexual que se converteram na opinião ortodoxa sobre o sexo e que impedem o debate feminista. Uma delas é a noção de sexo, em todas suas formas “consensuadas”, como um fator bom, positivo e necessário para a saúde humana. A mentalidade masculina está dominada por uma concepção dualista do sexo: este se considera ou “bom” ou “mal”. Desde 1890 os reformadores sexuais lutaram contra o puritanismo e os valores considerados contrários ao sexo, promovendo a idéia de sexo como um bem supremo. Ao conferir-lhe este halo de santidade e fomentá-lo como o elixir da vida, se fez difícil colocar em juízo. Quem se auto-proclamava progressista sentenciava que a crítica de qualquer forma de expressão sexual supunha render-se às ocultas forças da repressão da igreja católica, da inquisição e do puritanismo. As forças da Supremacia Masculina que representam o postulado de “o sexo é mal” seguem existindo e é preciso combatê-las1, se bem que não devem servir de pretexto para demostrar o perigo que traz falar de sexo em termos políticos.

Outra idéia chave que impede a discussão política da prática sexual se refere à obrigada suspensão dos valores quando se trata da sexualidade. Meu exemplo favorito é o livro, supostamente progressista, dos anos 60,“The ABC of Love” [O ABC do amor] onde se proclamava a aproximação moralmente neutra às diversas formas do comportamento sexual masculino – como a necrofilia – que constituíam um abuso de poder ou de violência.
[Para um debate da lei de 1967, ver: Jeffrey Weeks, Coming Out, Londres, Quartet, 1977.
Catherine MacKinnon, Feminism Unmodified, Cambridge, MA, Harvard University Press, 1987, pág. 93. Ibíd., pág. 101.

Para uma crítica feminista do conceito de consentimento, ver Carol Pateman, The Sexual Contract, Cambridge, Polity, 1988. Palo Alto, California, Stanford Univ. Press, 1988.

(colocar a referencia em português)
También Susan Hawthorne, “What do Lesbians Want? Towards a Feminist Sexual Ethics”, Journal of Australian Lesbian Feminist Studies, vol. 1, núm. 2, 1991.]

“A necrofilia, a necromania, o necrosadismo: todos estes são atos sexuais que as pessoas podem realizar em relação com os cadáveres. Deixar-se tentar pelos cadáveres não é um fenômeno desconhecido entre quem não há conseguido encontrar uma saída habitual para seus impulsos sexuais. “
Ao que parece, as mulheres não devem sentir-se turbadas ante a idéia de uma violação post-mortem a mãos dos encarregados de depósito de cadáveres. Estes argumentos em favor da suspensão de valores – quando é óbvio que os valores não estão suspendidos – os esgrimem quem assegura que segue a luta contra a herança vitoriana e suas presuntas novas representantes entre a geração atual de lutadoras feministas contra a violência. As principais abandeiradas desta ideologia do liberalismo sexual se encontran atualmente entre as terapeutas, que introduzem no feminismo sua terminologia terapêutica junto com uma forte dose de relativismo moral.
Em meus dois livros anteriores, The Spinster and Her Enemies [A solteira e seus inimigos] e Anticlimax assinalei que os sexólogos estiveram assignando sempre uma função política ao sexo. Ao largo do último século as indústrias da sexologia e da terapia sexual estiveram se dedicando a orquestrar a submissão das mulheres aos homens mediante a aceitação do coito e de sua experiência do prazer de “entrega” neste ato. Todos os sexólogos, psicanalistas, médicos, ginecólogos, conselheiros sentimentais e trabalhadores sociais implicados nesta campanha compreenderam sempre o vínculo crucial – o caráter eminentemente político, portanto – entre o «prazer» supostamente consensuado, pessoal, privado e individual das mulheres e a perpetuação do poder masculino e da submissão das mulheres. Os sexólogos de princípios do século XX tiveram menos escrúpulos na hora de manifestar sua mensagem política. Wilhelm Stekel, por exemplo, lutou sem reserva contra o feminismo, convencido de que o prazer que as mulheres experimentavam por meio do coito constituiria o melhor remédio contra o feminismo, o ódio aos homens, a solteria e o lesbianismo: os grandes perigos para a “civilização”. Em seu livro de 1926, Frigidity in Woman in Relation to Her Love Life [A frigidez da mulher em relação com sua vida amorosa] Stekel demonstra conhecer perfeitamente as consequências políticas do coito prazeroso para a mulher. Afirma que: “Deixar-se acender por um homem significa reconhecer-se como conquistada”.

Os sexólogos dos anos posteriores ratificaram com igual franqueza a função política do prazer sexual das mulheres. O mais conhecido entre os sexólogos britânicos dos anos 50, Eustace Chessler apontou que algumas vezes uma garota:
“… é incapaz de entregar-se completamente no ato sexual. E a entrega total é a única via para que ela e seu marido obtenham o máximo prazer. A submissão não é igual a entrega. Muitas mulheres se submetem e, no entanto, guardam em seu interior um espaço não conquistado que na realidade supôe uma feroz resistência à submissão”.

Tendo em conta que a atual ciência do sexo proclama sua neutralidade explícita, pode parecer surpreendente que os sexólogos conhecessem tão bem a importância política do prazer sexual das mulheres.

Com frequência afirmavam satisfeitos que uma mulher que se entregava ao coito se entregaria igualmente em outras esferas da vida, tais como a tomada de decisões no matrimônio. Na história e na bibliografia da sexologia se encontram formidáveis exemplos da construção política da sexualidade. A sexologia se dedicou sobretudo à construção do coito. Afirmava que as mulheres não o apreciavam o suficiente e que os homens não sabiam executá-lo com a devida eficácia. O estudo dos textos sexológicos acerca do ato sexual convenceria a qualquer pessoa de que não há nada “natural” nesta prática. Em um momento histórico de maiores oportunidades para as mulheres se proclamava a importância vital do coito, dado seu papel na perpetuação do poder masculino. O coito convertia ao macho em “homem” e a mulher em “submissa”. Inclusive nos anos 80 e 90 as revistas femininas e os manuais de educação sexual seguem enfatizando a importância da entrega da mulher no coito. É a versão supostamente científica e respeitável da expressão que os homens costumam empregar para referir-se às mulheres díscolas no ambiente de trabalho ou na rua: “O que necessita é uma boa trepada/pica”.

(Ver minha obra The Spinster and Her Enemies, Londres, Pandora, 1985.

Inge Helgeler y Stan, An ABC of Love, Londres, New English Library, 1963, pág. 252.

Para um debate relativo ao impacto da terminologia e a prática terapêuticas sobre o feminismo, ver: Celia Kitzinger y Rachel Perkins, Changing Our Minds: Lesbianism, Feminism and Psychology, Londres, Onlywomen Press, 1993.

Sheila Jeffreys, The Spinster and Her Enemies. Feminism and Sexuality 1880-1930, Londres, Pandora, 1985, pág. 182.

Citado em Anticlimax, 1990, págs. 29-30.)
Em sua cruzada para submeter as mulheres mediante o coito, os sexólogos encontraram apoio na capacidade destas para conotar eróticamente sua própria subordinação e vivê-la como “prazerosa”. Ao longo da vida as mulheres aprendem suas emoções e suas respostas sexuais em situações de desigualdade e inclusive, muitas vezes, de abusos sexuais. Temos que analisar escrupulosamente a palavra “prazer”. As mulheres podem chegar ao orgasmo durante uma violação ou em uma situação de abuso sexual. Estes orgasmos não demonstram que os “desejavam”, nem que tivesse ocorrido qualquer coisa positiva. Na atualidade não existem palavras para descrever os sentimentos sexuais não-positivos. Somente existem palavras como prazer e gozo. É importante por em entredito o conceito de prazer sexual em sua totalidade e não assumir que os sentimentos sexuais são necessariamente positivos. Assim nascerá uma terminologia mais sensível e mais matizada que permita às mulheres a expressão de uma maior gama de sentimentos sexuais, incluídos aqueles que se vivem como inequívocamente negativos.
Muitas pessoas, incluídas algumas lésbicas, aducen que uma resposta sexual que adota a forma da exaltação erótica do domínio e da submissão é inofensiva, privada, pessoal e individual, ou inclusive útil para lograr sensações sexuais sublimes e para permitir também às vítimas de abusos uma resposta sexual.

Não somente os sexólogos defendem o sadomasoquismo, tanto no “imaginário” como na realidade, senão mais recentemente também os editores e as editoras da nova literatura erótica destinada às mulheres, as terapeutas sexuais heterossexuais e lésbicas, assim como as organizações sadomasoquistas, compostas por heterossexuais ou lésbicas e gays. Mas o interesse que manifesta a sexologia pela entrega sexual das mulheres demonstra a relevância política dos sentimentos sexuais. É justo atribuir aos sexólogos um certo grau de astúcia. Se durante o século passado atuaram sob a premissa de que a aceitação voluntária de uma resposta sexual masoquista debilitava a posição das mulheres nos terrenos político e pessoal, este fato deve bastar para que as teóricas feministas se coloquem ao menos esta possibilidade.
O primeiro indício de uma pujante indústria do sexo nos EUA foi a aparição de uma pornografia lésbica, concebida por uma nova geração de empresárias lésbicas.
Quando começaram a formar-se as organizações antipornografia, as porta-vozes do grupo “Mulheres Contra a Violencia Contra as Mulheres”tinham que responder a seguinte pergunta: “Como podemos criar uma literatura erótica positiva para as mulheres e mais concretamente para as lésbicas?” Um dos resultados da revolução pornográfica dos anos 60 foi a idéia da obrigatoriedade da erótica para o sexo. Este pressuposto se encontrava tão extendido inclusive entre as feministas que as ativistas do movimento antipornografia se viram obrigadas a distinguir entre erótica e pornografia, para demonstrar que não eram nem estraga-prazeres nem umas sexofóbicas. Gloria Steinem define a erótica como:

“uma expressão sexual mutuamente prazerosa entre pessoas que possuem o poder suficiente para estar ali graças a sua livre escolha”, enquanto que a pornografia “leva a mensagem da violência, do domínio e da conquista. É a utilização do sexo com o fim de reforçar ou criar uma situação de desigualdade…“

Algumas militantes contra a pornografia se negaram a tomar este caminho assegurando desde o começo que não existia nenhuma diferença substancial entre erótica e pornografia. Andrea Dworkin explica assim a relação:
“Este livro [Pornography: Men Possessing Women – Pornografia: Homens possuindo Mulheres] não trata da diferença entre a pornografia e a erótica. As feministas fizeram um honorável esforço por definir a diferença entre ambas, alegando geralmente que a erótica traz mutualidade e reciprocidade, enquanto que a pornografia implica domínio e violência. Mas no léxico sexual masculino, que é o vocabulário do poder, a erótica é simplesmente uma pornografia de luxo: mais apresentável e desenhada para uma classe de consumidor*s mais sofisticad*s. Ocorre o mesmo que entre a ‘prostituta de luxo’ e a ‘puta de rua’: a primeira vem melhor arrumada, mas ambas dão o mesmo serviço. Sobretudo os intelectuais chamam “erótica” ao que eles produzem ou codician, para indicar que por trás deste produto há uma pessoa tremendamente inteligente… Em um sistema machista a erótica é uma subcategoria da pornografia.”

Embora muitas ativistas antipornografia não queiram dedicar tempo e energia à confecção de uma erótica positiva, esperavam impacientes sua aparição para ver que aspecto teria este fenômeno. Estávamos convencidas de que esta nova erótica criada por mulheres seria muito distinta à pornografia produzida pelos homens, se apoiaria em valores completamente diferentes e representaria uma nova sexualidade, vaticinio do futuro pós-revolucionário. Certamente algumas feministas criaram algo que denominavam uma nova classe de erótica. Um exemplo é Tee Corinne. Suas fotografias de vulvas2 sobrepostas a paisagens, árvores e praias são uma tentativa de prestigiar a vulva. A associação dos genitais femininos com formas naturais, conchas, flores e frutas tem uma larga historia na arte lésbica. Estas fotografias supôem uma clara ruptura com a tradição pornográfica masculina, na qual a vulva aparece com o único fim de provocar a ereção masculina sugerindo a idéia de penetração. Parece ser que as mulheres sim são capazes de criar uma arte de conteúdo sexual, sem que seja uma réplica da pornografia masculina.
Porém, a nova indústria erótica surgida nos 80 não se dedica a celebrar a beleza da vulva. Quer provocar a excitação e o caminho mais fácil passa, pelo que parece, pela estimulação da capacidade das mulheres de conotar eroticamente nossa opressão.

Ver capítulo 6 sobre o “desejo heterosexual” em Anticlimax, 1990.

Ver relevância do sadomasoquismo na prática heterossexual dos 80: B. Ehrenreich y cols., Re-Making Love: The Feminization of Sex, Londres, Fontana/Collins, 1987. NY,

Doubleday, 1986. Para crítica del sadomasoquismo en la práctica lesbiana, ver: R. R. Linden y cols. (comps.), Against Sadomasoquism, Palo Alto, Cal., Frog in the Well Press, 1982.

Gloria Steinem, “Erotica and Pornography: A Clear and Present Difference”, en Laura Lederer (comp.), Take Back the Night, Nueva York, Quill, 1980, pág. 37.

Andrea Dworkin, Pornography: Men Possessing Women, Nueva York, Perigree, 1981, págs, 9-10

Pat Califia, autora de pornografia sadomasoquista, o explica com toda franqueza:
“Desgraçadamente uma grande parte da nova pornografia lésbica, embora valiosa, não passaria o que Dorothy Allison chama “a prova úmida” … A “erótica feminista”, que apresenta uma imagem simplista do sexo lésbico – duas mulheres apaixonadas juntas em uma cama que encarnam todo o positivo que o patriarcado pretende destruir – não és excessivamente sexy.“

O tipo de pornografia que, ao que parece, passa na “prova úmida” supôs uma considerável comoção para as mulheres, que esperavam ver representada uma nova forma de sexualidade feminina. Praticamente a totalidade do material está relacionado com a conotação erótica da subordinação das mulheres. As autoras desta erótica insistem em que o enfoque inovador da sexualidade feminina que mostra as mulheres como lascivas, quentes e agressivas no lugar de passivas e submissas. Na nova erótica as mulheres podem escolher entre dois papéis: podem assumir o lugar dos homens e deixar-se excitar pela coisificação, a fetichização e a humilhação de outras mulheres; ou podem adotar os velhos papéis submissos, igualmente disponíveis nesta erótica. De maneira que as mulheres possam escolher se deixar excitar pelo papel dominante ou pelo submisso em sua relação com outra mulher.

Barbara Smith, uma autora britânica de erótica, justifica uma pornografia lésbica

onde as mulheres se limitam a adotar um dos dois papéis que oferece a pornografia heterossexual, sem mudar em nada os valores representados:
“A pornografía para lésbicas é excepcional por pressupor um olhar feminino e inclusive lésbico. Pressupôe uma sexualidade feminina ativa. Preconiza o gozo sexual soberano da mulher. Se bem continua apresentando as mulheres como objetos, o faz por meio dos olhos e para os olhos de outras mulheres como sujeitos. Adota imagens estereotipadas, subvertendo-as por completo tanto em sua intenção como em seu contexto, às vezes com um toque de humor. A pornografia para lésbicas nos retrata ao menos tal e como somos, em todo o espectro de nosso ser mulheres: fortes, sexualmente exigentes e realizadas, ativas, passivas e sempre afirmativas.”

 

As teóricas feministas antipornografia lutaram ativamente contra a coisificação através da pornografia. Segundo nossa argumentação, esta coisificação submete a pessoa coisificada, e constrói e reforça uma sexualidade de domínio e de submissão, sobretudo das mulheres. En opinião das feministas antipornografia, a coisificação representa o mecanismo fundamental em que se baseia a violência sexual masculina. Catharine MacKinnon explica com grande acerto a dinâmica da pornografia.

Em uma situação de domínio masculino, tudo aquilo que excita sexualmente aos homens, se considera sexo. Na pornografia a violência mesma é sexo. A desigualdade é sexo. Sem hierarquias, a pornografia não funciona. Sem desigualdade, sem violação, sem domínio e sem violência não pode haver excitação sexual.

Se a erótica significava somente a representação dosexo – sem pretender a excitação senão como uma parte da trama- não teria que denotar necessariamente a desigualdade. A nova erótica, porém, cuja finalidade é a excitação sexual, recorre ao que todo mundo compreende em um sistema de supremacia masculina: o domínio e a submissão.

Alguns editoriais feministas, anteriormente dedicadas a publicação de textos, com novos valores feministas, començaram então a publicar literatura erótica porque se vende. Este é o caso de Sheba, na Grão Bretanha. Sua primeira antologia, “Autênticos Prazeres”, continha uma erótica supostamente alternativa e feminista. Um dos relatos da antologia constitui uma tentativa, bastante divertida, de incorporar valores alternativos nesta nova literatura erótica. Apresenta a um grupo de mulheres claramente afastadas do estereotipado modelo de beleza que prevalece na pornografia tradicional. Enquanto se preparam para uma

festa, a autora nos informa de seus problemas com as criaturas. Elas não são nem jovens nem ricas.
“Amy estava olhando a televisão enquanto secava sua larga cabeleira cinza. Sobre a mesa, adiante do sofá, havia uma taça de sopa e uma torrada comida pela metade. Não se podia perder Coronation Street, nem sequer pela mesmísima Deusa. As seis mulheres estiveram se reunindo ao longo de treze semanas de abstinência sexual para preparar um místico encontro sexual, rodeadas de velas, espíritos e cânticos.”

O marco pode parecer insólito, mas a linguagem sexual empregada é a da pornografia masculina tradicional. Há certo tom de reminiscências decimonônicas como na expressão: “… explorava a abundância nacarada de Sally”. Entretanto, outra mulher suplica a Sally que a “foda com mais força”.

Pelo que parece, inclusive as lésbicas feministas comprometidas e dotadas de certo gênio em muitos terrenos se encontram confinadas aos clichês patriarcais quando escrevem literatura erótica. Longe de construir uma nova sexualidade, estão reciclando a velha.

Pat Califia, Macho Sluts, Boston, Alyson Publications, 1989, pág. 13 de la introducción.
Bárbara Smith, “Sappho was a Right-off Woman”, en Gail Chester y Julienne Dickey (comps.), Feminism and Censorship, Londres, Prism, 1988, págs. 183-184.

Catharine MacKinnon, “Not a Moral Issue”, Yale Law and Policy Review, vol. II, núm. 2, 1984, pág. 343.

As novas revistas eróticas estado-unidenses carecem destos escrúpulos. Não se esforçam por retratar as lésbicas canosas, obesas ou pobres. A mais conhecida se entitula On Our Backs [Sobre nossas costas]. O nome mesmo revela sua intenção de subverter o feminismo: a publicação feminista estadunidense de mais solera se chama Off Our Backs [Fora das nossas costas/Sai de cima de mim]. A política explícita destas revistas consiste em despolitizar o lesbianismo. Encontramos um excelente exemplo na página de subscripções de On Our Backs. Enquanto que as “Radicalesbians” haviam afirmado em um dos primeiros manifestos feministas lésbicos que “uma lésbica é a fúria de todas s mulheres condensada até o ponto da explosão”, On Our Backs assevera que “uma lésbica é o desejo de todas as mulheres condensado até o ponto da explosão” . A frase aparece em cima da imagem de um torso de mulher embutido em um traje de couro negro, os peitos fortemente apertados. A mudança política se substitui pela satisfação sexual pessoal mediante a prática S/M.

[continua, está na metade]

notas de rodapé minhas.

[1] Será mesmo? Não acho que tem que combater a noção de que o sexo é mal, a verdade nos libertará. Nesta sociedade muito provavelmente será uma experiência má para maior parte das mulheres, porque nesta sociedade supremacista masculina está formulada para que sexo seja experiência da violação, do abuso e da coisificação, levando muito trabalho consciente e de éticas e cura de abusos e consciência ativa do que é abusivo e traz dano pra podermos construir outra sexualidade distinta disso nas nossas vidas privadas. Sexualidade é no Patriarcado, como diz Mackinnon, a experiência do prazer em sua forma de gênero, e por isso a colonização nos leva a erotizar a dominação, o poder e ser incitadas por discursos culturais e correntes a nos colocar em situações de risco por meio da sexualidade. Se não posso me cuidar, não é minha revolução. Sexualidade é um sistema político na teoria feminista radical. Se nos acusam de anti-sexo, talvez estejam identificando bem, que estar contra o sexo nesta sociedade é estar contra o Poder em sua forma erotizada. A distinção entre sexo e estupro no Patriarcado não passa duma ilusão na maior parte das vezes, não passa de manipulação. (N.T.)

[2] Traduzi ”genitais femininos” deliberadamente por ‘vulva’ porque acho mais interessante, também não verifiquei no original como está mas não duvido em nada que essa tradução para espanhol na qual estou me baseando não esteja bem ruimzinha em relação ao original. Caso verifique farei alterações no futuro. [N.T.].