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A Heresia Lésbica – Sheila Jeffreys – Introdução

A teoria política do feminismo lésbico transformou o lesbianismo de uma uma prática sexual estigmatizada em uma ideia e uma prática política que representava um desafio à supremacia masculina e sua instituição básica da heterossexualidade. Lésbicas Feministas articularam esse desafio nos anos de 1970. Elas eram heréticas. Foi um ato de heresia. Fundamental para a prática lésbica feminista era a rejeição da construção sexológica do lesbianismo. As ideias do estabelecimento médico – que o lesbianismo era uma anomalia congênita, que o lesbianismo era psicologicamente determinado, um resultado da inveja do pênis, que o lesbianismo era um desvio sexual que deveria residir nos textos sexológicos ao lado do abuso infantil e fetichismo – foram jogadas pela janela.

 

Nós estávamos construindo um novo universo feminista. Começando com a tomada de consciência em uma atmosfera de grande otimismo, nós re-nomeamos lesbianismo como uma escolha saudável para mulheres baseada no amor-próprio, o amor por outras mulheres e a rejeição a opressão masculina. Qualquer mulher poderia ser lésbica. Era uma escolha política revolucionária, a qual, se adotada por milhares de mulheres, levaria a desestabilização da supremacia masculina, pois os homens perderiam a base do seu poder no serviço “altruísta”e não pago, doméstico, sexual, reprodutivo, econômico e emocional exercidos pela mulher. Seria a base a partir da qual nós iriamos ir além para destruir o poder masculino. Seria um universo alternativo no qual nós construiríamos uma nova sexualidade, uma nova ética, uma nova cultura em oposição à cultura masculina dominante. Seria um núcleo energético do qual novos valores positivos feministas e lésbicos saíram para transformar o mundo para mulheres e levar a sado-sociedade ao fim.

 

Lésbicas feministas foram instrumentais na criação das bases  da comunidade lésbica que hoje em dia é tida como fato pelas jovens mulheres que começam a se entender como lésbicas. Nós organizamos editoras e arquivos lésbicos, festas, centros comunitários, grupos de suporte e desaguamos um oceano de ideias em jornais, revistas e livros. Algumas das que contribuíram para construção da cultura lésbica naqueles anos são agora profundamente criticas ao feminismo lésbico e estão se desassociando dele, mas eu continuaria a argumentar que a maioria, sejam lésbicas mais velhas ou novas lésbicas políticas, mantinham alguns valores lésbicos feministas daqueles tempos há apenas alguns anos, e que foi a energia criada por um movimento revolucionário que abasteceu esses desenvolvimentos. Lésbicas trabalhadoras, lésbicas negras, lésbicas de minorias étnicas e lésbicas indígenas estavam todas envolvidas desde o começo no feminismo lésbico em todos os países do mundo ocidental, apesar delas não terem sido a maioria e suas vozes não terem sido as mais escutadas antes do fim dos anos 70.

 

Esse livro foi escrito para ajudar a mim e outras feministas lésbicas a entender a reação contra [backlash] essas politicas que aconteceu nos anos 80 e 90. A reação contra o feminismo em geral foi poderosamente documentada por Naomi Wolf e Susan Faludi e a reação contra as análises feministas da sexualidade e pornografia foi bem traçada na excelente coleção The Sexual Liberals and the Attack on Feminism(1). A reação contra o feminismo é provavelmente quase sempre compreendida como um ataque proveniente das forças de reação da supremacia masculina, vindo de fora do movimento de liberação das mulheres. Tal ataque certamente tem acontecido como resultado do triunfo de politicas conservadoras no mundo ocidental na última década. Mas é necessário reconhecer que enquanto as forças externas ao movimento das mulheres aumentam suas pressões, haverá uma quebra dentro do próprio movimento. Como o volumeSexual Liberals mostrou, muitas daquelas defendendo pornografia nos anos 80 são feministas experientes, até mesmo professoras de estudos das mulheres, não apenas a indústria dominante da pornografia.

 

Dentro da comunidade lésbica tem acontecido uma reação contra paralela a essas. O conservadorismo dos anos 80 no mundo dominante teve um efeito particularmente prejudicial nas vidas de lésbicas e homens gays. Grupos conservadores e governos usaram lésbicas e homens gays como bodes expiatórios para divergir a atenção das amplas divisões sociais que a suas medidas econômicas estavam criando. Na Grã-Bretanha, a emenda ao Ato de Governo Local em 1998 proibiu a ‘promoção da homossexualidade’ e houveram tentativas, sem sucesso, de passar legislações similares nos E.U.A e em Queensland, na Austrália. A formulação dessas tentativas estava nos mesmos moldes e organizações internacionais patrocinaram e planejaram o ataque aos direitos de lésbicas e gays. Os ataques foram fundados pela histeria acerca da AIDS que tinham como alvo homens gays e lésbicas, mesmo lésbicas tendo pouquíssimos riscos de contrair o vírus através de práticas sexuais. O sentimento anti-gay levou a um aumento nos ataques físicos. Esse foi um tempo difícil para ser lésbica. As pressões levaram a mudanças na comunidade lésbica, a uma maior aceitação das prioridades e politicas de homens gays, e, interessantemente, a uma volta ao modo sexológico por parte algumas teóricas lésbicas. Começa então uma nova politica de marginalidade, de desvio sexual que reside nas construções da sexologia, uma politica que já estava bem desenvolvida por alguns homens gays e que estava em contradição direta à filosofia lésbica feminista.

 

Esse livro é sobre a fragmentação da comunidade lésbica quando as politicas feministas começaram a ser atacadas. Enquanto nos anos 70 a ideias lésbicas feministas pareciam ser dominantes nas politicas lésbicas, nos anos 80 essa situação foi evidentemente revertida. Quando o modelo sexológico, que feministas lésbicas estivaram tão determinadas a destruir, retornou, nós fomos atacadas como sendo anti-sexo, politicamente corretas, essencialistas e idealistas. Muitas feministas lésbicas que viam a comunidade lésbica como lar tiveram que aceitar que eram usualmente vistas por outras lésbicas como extremistas e uma minoria muito impopular. No começo dos anos 70 eram precisamente feministas lésbicas que organizavam o tipo de evento que permitiu às lésbicas construir uma comunidade. Foi o trabalho de feministas lésbicas que foi crucial nos países ocidentais para a criação de uma comunidade lésbica que está agora marginalizando o feminismo lésbico.

 

Eu suspeito que algumas leitoras lésbicas reagirão de forma indignada às minhas sugestões nesse livro de que a pornografia, o sadomasoquismo e os jogos de papéis são hostis ao projeto lésbico feminista. Nem todas aquelas envolvidas ou que se posicionam a favor dessas práticas rejeitam o feminismo. Algumas dirão que são feministas e ficarão compreensivelmente bravas que qualquer pessoa sugira o contrário. Por essa razão, eu penso que é útil fazer uma distinção entre feministas lésbicas e lésbicas que também são feministas. Na filosofia lésbica feminista as palavras ‘lésbica’ e ‘feminista’ são integrais uma a outra, o lesbianismo é feminista e o feminismo é lésbico. Existem muitas lésbicas que são ativas em uma politica lésbica de direitos iguais que não é especificamente feminista, elas podem de fato serem quase indistinguíveis daquelas de homens gays, e que são também feministas em relação a questões como pagamento igualitário, aborto, abuso sexual. Mas o lesbianismo e o feminismo estão separados. Eles existem em compartimentos que são hermeticamente fechados.

 

Na filosofia lésbica feminista a teoria e a prática do lesbianismo é construída através do feminismo. Logo, a compreensão feminista de que o pessoal é politico significa que todos os aspectos da vida lésbica serão examinando para ver como se encaixam a no projeto feminista. Uma ideia fundamental do feminismo é a importância do hoslimo e da conectividade. Tudo afeta tudo. Ninguém vive em um vácuo e nenhuma parte das nossas vidas está realmente separada da outra. Nos anos 70 havia uma determinação persistente de refazer nossas vidas de forma a se encaixarem na nossa visão de um futuro feminista. Para muitas esse é ainda o caso apesar de que as exigências da vida nos anos  80, a necessidade de arrumar empregos, o impacto dos governos conservadores tenham levados muitas de nós a sermos menos rigorosas.

 

A seriedade do feminismo lésbicos nos anos 70 pode ser ilustrada pelas discussões que aconteceram acerca de aspectos de politicas pessoais como atração simplesmente baseada em aparência física, ‘ficar afim/desejar’. ‘Ficar afim/desejar’ foi, e é, visto por muitas como objetificação, por ser baseado em regras acerca de perfeição física que eram profundamente discriminatórias, e até racistas e capacitistas, e que refletiam uma construção da sexualidade que era hostil aos interesses das mulheres. Sentia-se que uma necessidade física simples e aprendida em direção a uma estranha não era uma boa forma de começar relacionamentos. Nem todas as lésbicas sentiam que haviam superado, ou queriam superar, as práticas sexuais aprendidas de ‘ficar afim/desejar’, mas havia uma boa dose de vontade e comprometimento para discutir essas ideias. Apesar de talvez parecerem bizarras hoje, elas eram geralmente compreendidas entre homens gays envolvidos no movimento de liberação gay profundamente  infundido com princípios feministas. Alguns homens estavam escolhendo ter um olhar igualmente critico em relação às politicas do cotidiano.(2) Isso é difícil de dar crédito em uma cultura gay contemporânea na qual a mídia e os entretenimentos são patrocinados pela indústria do sexo e é baseada exatamente no principio do ‘ficar afim/desejar’.

 

Monogamia e não-monogamia eram debatidas calorosamente. A ética dos relacionamentos pessoais, que era entendida como um microcosmo dos relacionamentos políticos da supremacia masculina e não como algo sem importância, estava no foco das considerações politicas. Isso não é dizer que havia um acordo geral, o que seria muito pouco provável em qualquer grupo de lésbicas, mas todas estavam discutindo a partir da base de que a forma como tratamos umas as outras deveria refletir nossa visão e propósito feminista. Não havia nenhuma área na vida pessoal que fosse considerada politicamente fora dos limites. Posse de propriedades era sujeita à critica, vida em comunidade e compartilhamento de renda foram propostas e vividas. Havia e ainda há nos eventos organizados por feministas lésbicas uma preocupação em oferecer uma gama de preços e pensar formas de compartilhar acesso a recursos. Isso pode parecer demasiado singular agora que empreendedoras lésbicas e empreendedores gays buscam sobreviver operando dentro das regras de mercado.  Os negócios da vida cotidiana eram conduzidos, até onde fosse possível, de acordo com uma perspectiva feminista, que também era socialista e anti-racismo.

 

O feminismo do feminismo lésbico é diferente daquele que algumas teóricas lésbicas feministas têm descrito como ‘heterofeminismo’. O heterofeminismo assume que lésbicas são e sempre serão uma minoria e que a heterossexualidade é, por algum mistério, a preferência sexual majoritária. O feminismo lésbico transforma o feminismo por questionar a naturalidade da heterossexualidade, ao apontar que é uma instituição politica e buscar por um fim a essa instituição sob o interesse da liberdade das mulheres e sua auto-determinação sexual. Mais importante, o feminismo lésbico busca a criação de um mundo ajustado para lésbicas como um mundo em que todas as mulheres serão livres.

 

Algumas feministas lésbicas que, sentindo-se exaustas e desiludidas pela luta em convencer feministas hétero a levar lésbicas a sério, escolheram abandonar o nome feminista. Elas se nomeiam lésbicas radicais ou apenas separatistas. Eu não vejo como os interesses das lésbicas podem ser separados dos interesses das mulheres como uma classe e não penso que esses grupos mencionando realmente pensem que podem também. A famosa declaração de Monique Wittig de que ‘Lésbicas não são mulheres’ por que a mulher só pode existir em relação a homem e as ‘mulheres’ constituem uma classe politica, inspirou algumas a abandonarem a palavra feminista e a questionar se realmente é possível uma ‘liberação das mulheres’, já que nós devíamos estar buscando liberação de estar na classe politica das mulheres.(3) Wittig vê as lésbicas como refugiadas de sua classe. Mas até mesmo como refugiadas nós provavelmente seremos tratadas como membras da classe ‘mulher’ no ônibus, no trabalho. Mesmo que as lésbicas tenham feito uma quebra rumo à liberdade em relação a alguns aspectos fundamentais da opressão das mulheres, como trabalhado doméstico não remunerado, trabalho emocional para um homem e condições de trabalho apavorantes que podem as vezes prevalecer como formas de violência, ou gravidez indesejada, há alguns dos quais nós não conseguimos escapar facilmente.

 

Capítulo por capítulo A Heresia Lésbica examinará alguns dos desenvolvimentos dentro da comunidade lésbica que minaram qualquer tipo de consenso lésbico, desenvolvimentos que transformaram o feminismo lésbico em heresia não apenas contra o heteropatriarcado mas, aparentemente, dentro da cultura lésbica também. O Capítulo 1, ‘A Criação da Diferença Sexual’, focará na controvérsia que se desenvolveu entre historiadoras lésbicas acerca do impacto da sexologia na construção de uma identidade lésbica no começo do século vinte. Algumas historiadoras, como Caroll Smith-Rosenberg e Lillian Faderman, viram o impacto da sexologia como prejudicial, pois estigmatizou as amizades apaixonadas entre mulheres e minou o feminismo. Outras, como Esther Newton, e alguns historiadores homens gays, viram a construção sexológica da homossexualidade como útil por fornecer um papel e uma identidade lésbica e permitir que lésbicas fossem serem sexuais de uma forma que as amizades apaixonadas do século dezenove não faziam.  Eu argumento, em acordo com Caroll Smith-Rosenberg, que ao adotar as definições sexológicas, as lésbicas da década de 20 perderam contato com uma geração anterior de irmãs feministas e vivenciaram um abismo intransponível na comunicação.  Eu sugerirei que um processo similar aconteceu nos anos de 1980, quando uma nova geração de lésbicas re-adotou a linguagem da sexologia, de comportamentos desviantes e congênitos, butch e femme , de uma maneira a criar um igualmente destrutivo abismo de comunicação com as feministas lésbicas dos anos 70. Nos capitulo subsequentes eu examinarei as formas pelas quais o lesbianismo foi reconstruído por algumas teóricas lésbicas, por lésbicas da indústria do sexo e terapeutas sexuais e por lésbicas pornografas nos anos 80, para se encaixar na prescrição sexológica.

 

O capítulo 2, ‘A Revolução Sexual Lésbica’, olhará para a importância de abordar a prática sexual politicamente e as maneiras pelas quais os conceitos e a linguagem do liberalismo tornaram isso difícil. Eu desafiarei a ideia de que existe alguma área da vida sexual que possa ser inteiramente neutra politicamente, privada e individual, e pensarei por que é tão difícil politizar a prática sexual sem ser acusada de moralismo e de estar julgando por outras lésbicas. É então traçado o desenvolvimento de uma indústria sexual lésbica nos E.U.A, Grã-Bretanha e Austrália. Eu olharei para as politica da erótica lésbica, brinquedos sexuais lésbicos e prostituição. Mostrarei os perigos ao se aceitar que lesbianismo é simplesmente sobre sexo e de pensar que o caminho para liberação lésbica é expandir a indústria do sexo.

 

O capítulo 3 se volta para o lugar de onde a teoria das novas políticas sexuais lésbica está saindo, uma parte vital da indústria do sexo lésbica e da terapia sexual. Eu farei a sugestão de que as novas terapeutas sexuais lésbicas estão ensinando uma sexualidade baseada em princípios heteropatriarcais de dominação e submissão, objetificação e ódio às mulheres. Elas estão explicitamente se opondo aos esforços lésbicos feministas de reconstruir a sexualidade em linhas igualitárias e de amor às mulheres, que podem empoderar lésbicas e contribuir para a liberação de mulheres e lésbicas.

 

Feministas lésbicas tenderam a tomar um posicionamento extremo de construcionismo social em relação à identidade lésbica, resumido no slogan, usado em emblemas nos anos 70, de que ‘Toda mulher pode ser uma lésbica’. Isso certamente perdeu força nos anos 80 e 90 entre teóricas lésbicas. É por algumas terapeutas sexuais lésbicas que um novo essencialismo está sendo propagado.  A terapeuta sexual JoAnn Loulan afirma em seu livro de 1990, A Dança Erótica Lésbica, que ‘Algumas de nós apenas nascemos assim.'(4) O capitulo 4 se voltara para o renascimento do essencialismo na teoria lésbica. Esse novo essencialismo tem sido utilizado em particular para defender a reintrodução da erotização do desequilíbrio de poder na forma de jogos de papéis butch e femme. O conceito de butch e femme está sendo usado atualmente para definir não só o erotismo lésbico, mas todos os aspectos da cultura e da ‘estética’ lésbica. Eu defenderei a continuação da importância de uma abordagem construcionista social radical à identidade lésbica e a desafiarmos a intrusão orquestrada da polaridade, divisão e hierarquia erotizadas dentro da cultura e da comunidade lésbica.

 

O capítulo 5, ‘Retorno ao Gênero’, reflete sobre a ‘alta’ teoria que está sendo usada para justificar práticas como jogos de papéis. Se volta para o impacto das ideias pós-modernas em um ramo particular da teoria lésbica e gay. Argumentará que essas ideias, que normalmente são derivadas dos trabalhos de intelectuais homens franceses que não consideraram mulheres, imagine então lésbicas, na construção de suas teorias,  são, não surpreendentemente, hostis às politicas do feminismo lésbico. Se concentrará na forma pela qual algumas teóricas lésbicas que seguem os mestres pós-modernos estão defendendo que se pode brincar com o gênero de um jeito revolucionário para desestabilizar o heteropatriarcado. Essas teóricas defendem que o gênero não pode ser deixado de lado ou rejeitado e que as tentativas feministas de fazer isso são essencialistas ou fadadas a falhar. Algumas dessas teóricas lésbicas não veem o feminismo lésbico, e sim os jogos de papéis, drag e transsexualismo, como os únicos caminhos a diante para lésbicas e gays politicamente.

 

O pós-estruturalismo, a teoria do pós-modernismo, foi muito influente na academia nos anos 80 e 90, pois é uma filosofia adequada a tempos conservadores, uma que está engajada ao fatalismo e a não-ação, mas ainda assim uma que consegue parecer interessante por que muitos dos seus avatares eram gays ou sadomasoquistas ou por que fingiam se importar com as políticas de minorias. Devido a sua hegemonia dentro desses lugares onde muito da vida intelectual das comunidades lésbica e gay flui , teve um impacto considerável.  O feminismo lésbico e o feminismo radical em geral foram consistentemente escarnecidos na teoria pós-moderna. Tal teoria sob o seu disfarce lésbico forneceu uma base de poder para o ataque ao feminismo lésbico e uma justificação teórica vital, usando a desculpa de brincar com o gênero, ou ‘difference’, para aqueles desenvolvimentos que foram os mais centrais para o enfraquecimento do projeto lésbico feminista.

 

O capítulo 6, “A lésbica marginal”, se ocupa da atração romântica pela marginalidade e a decadência compartilhada por lésbicas de  diversas tendências, incluída eu mesma, versão lésbica do que o círculo de Oscar Wilde denominava na década de 1890 nostalgie de la boue [nostalgia da lama]. Esta decadência incluía a identificação com os grupos marginalizados da cultura heterorrelacional, frequentando por exemplo os fumadores de ópio ou simplesmente os bares de proxenetas (bordéis). Existia uma idealização da própria opressão e da marginalidade que esta supunha, simbolizada nos títulos de algumas novelas, como por exemplo Despised and Rejected [Desprezado e repudiado] de A. T Fitzroy [5] . No feminismo lésbico o valor e a rebeldia da lésbica marginal tiveram sua expressão política na  desestabilização do poder masculino. Outras formas mais tradicionais da decadência gay mantêm atualmente seu atrativo e os teóricos gays do pós-modernismo as legitimam, apresentando-as como uma reinterpretação transgressiva. Critico aqui a política da transgressão e postulo que reconsiderar a visão romântica da marginalidade lésbica pode nos ajudar a compreender os papéis lésbicos e o sadomasoquismo. Este poderia ser o ponto de partida para uma re-orientação da rebeldia lésbica para o desafio à supremacia masculina, no lugar de idealizar nossa própria opressão.

 

O capítulo 7, “Uma cópia mal-feita do macho” estuda a influência da cultura gay masculina sobre a cultura e a política lésbicas. Nos escritos de muits lésbicas atuais, de algumas terapeutas sexuais, de novelistas e pornógrafas, resulta evidente sua admiração e seu propósito de copiar a cultura e a prática dos gays. Para essas autoras, as lésbicas são chatas, reprimidas e inferiores a seus irmãos gays. A norma dos homens gays se converte em alguns setores da comunidade lésbica na medida de todas as coisas. Esta identificação total com os homens gays vai unida necessariamente a um ataque contra o feminismo lésbico que pretendeu diferenciar a cultura e a política lésbicas da dos homens gays. Sublinho a contradição que existe entre a agenda tradicional dos homens gays e a agenda política do feminismo lésbico. Me pergunto por que algumas lésbicas se sentem tão deslumbradas pelos homens gays, até o extremo de declarar publicamente seu desejo de sê-lo e inclusive de submeter-se a operações de mudança de sexo [6] para conseguí-lo. Sugiro que talvez possa explicar-se em parte pelo dinheiro e o poder que dispôem os homens, que parecem oferecer às lésbicas um glamour e uma influência indiretas ou inclusive reais e, também, pelo profundo auto-desprezo das lésbicas dos 90, que se sentem decepcionadas pelo fracasso dos sonhos feministas e tentam voltar a somar-se à corrente masculina dominante. Me pergunto se é inevitável que o feminismo lésbico se apague na sombra deste poderoso setor da cultura masculina gay financiado pela indústria do sexo, indiferente ante o feminismo lésbico e diretamente contrário a nossos interesses.

 

Finalmente, o capítulo 8, “Uma separação mais profunda”, considera de que modo pode ajudar-nos a construção de uma amizade, uma comunidade, umas éticas e uma teoria lésbica, baseadas nos valores feministas, a manter a visão e a prática de um feminismo lésbico no futuro. Elogia o separatismo lésbico ao mesmo tempo que se pergunta: qual é a via mais adequada para a sobrevivência das separatistas na nova situação do lesbianismo nos 90. Como pode subsistir a noção de comunidade frente ao sadomasoquismo lésbico, contrário aos valores fundamentais do feminismo lésbico como são a Igualdade e a luta contra qualquer forma de hierarquia de poder? Penso que as comunidades lésbicas sofreram profundo dano ao colocar em suspeita seus valores feministas fundamentais e me pergunto se estabelecer uma separação mais profunda, sobretudo uma separação intelectual e ética com respeito aos valores do heteropatriarcado, poderá ajudar-nos a manter a heresia lésbica e o desafio feminista lésbico frente à supremacia masculina. O apêndice “Sadomasoquismo: o culto erótico ao fascismo”, escrito inicialmente em 1984, se publicou nos E.U.A. em 1986, dentro da antologia Lesbian Ethics [Ética lesbiana]. Concebe uma crítica contra o movimento S/M (sadomasoquista) por sua exaltação erótica do domínio e a submissão e inclusive do próprio fascismo. Compara a situação em Londres com a de Berlim a princípios dos 30, quando os gays conotaram eróticamente os costumes e a violência do fascismo que os acabaria destruindo. O texto, escrito desde uma postura de militância ativa na campanha política “Lésbicas Contra o Sadomasoquismo” (LASM) – iniciada para lutar contra acontecimentos que vivíamos como uma séria ameaça contra a ética e a política geral do feminismo lésbico -, conserva seu valor histórico. Demonstra que desde um primeiro momento existiu uma forte oposição contra esta nova política, não apenas por parte de LASM, senão também de outras feministas lésbicas estado-unidenses e australianas, e revela t

oda a magnitude do impacto que sofremos naqueles primeiros tempos da revolução sexual lésbica ante a firme decisão de muitas lésbicas de abandonar a filosofia igualitária que encarna o feminismo.

 

 

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[1] Susan Faludi, Backlash. The Undeclared War Against Women, Londres, Chatto and Windus, 1991. Naomi Wolf, The Beauty Myth, Londres, Vintage, 1990. Dorchen Leidholdt e Janice G. Raymond (comps.), The Sexual Liberals and the Attack on Feminism, Oxford e Nueva York, Pergamon Press, 1990.

[2] Ver Aubrey Walters, Come Together: Collected writings from Gay Liberation in the UK, Londres, Gay Men’s Press, 1980.

[3] Monique Wittig, The Straight Mind and Other Essays, Boston, Beacon Press, 1992

[4] JoAnn Loulan, The Lesbian Erotic Dance, San Francisco, Spinsters, 1990, pág. 193.

[5] 5 A. T. Fitzroy, Despised and Rejected, Londres, Gay Men’s Press, 1988. Primeira edição de 1918.

[6] A autora fala “cirurgia de mudança de sexo” para se referir às cirurgias de “transexualização”. Eu discordo deste conceito por achar impossível a mudança do sexo por conta duma cirurgia, já que o sexo é um elemento dado ao nascer e cirurgias estéticas apenas podem modificar a forma destes e sua aparência e no máximo a forma como são lidos socialmente, coisa que entendo como mutilação para adaptar-se aos binários de gênero. Ninguém deixa de ser mulher ou homem por retirar seios, colocar seios de silicone ou fazer do pênis uma réplica duma vulva natural (fariam um útero?). O gênero é uma construção e uma vivência social que não se apaga por mera intervenção médica-farmacológica-estética e o feminismo se volta para a destruição do gênero e não sua adaptação à estes. Ser mulher é uma vivência política de se encontrar, nascer, na classe subjugada e explorada pela classe dos homens e essa realidade não se modifica nem é socialmente superada com a política transgênero de mutilação das corpas [N.T.]

[tradução: lesboterroristas]