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Femmefobia: o que nos amedronta, de fato?

(traduzido de glosswatch.com)

Recentemente, comecei a me deparar com a palavra “femmefobia” usada para nomear críticas feitas à estereotipação feminina, à indústria da beleza. A femmefóbica é aquela que exibe um medo irracional de tudo aquilo o que é tradicionalmente associado à feminilidade. Ela tem preconceito com pessoas que usam a feminilidade como meio de expressão. Não seria porque ela esteja identificando uma estrutura opressiva que limita a escolha de todas, mas apenas porque ela não curte mulheres femininas. Ela é, em suma, intolerante.

Eu diria que sou um pouco femme. Curto maquiagem e prefiro vestidos a calças. Penso que carros e futebol são um tédio (porque eles são). Prefiro fazer crochet do que jogar Wii […] Portanto, tenho certo nível de empatia com aquelas que gritam “femmefóbica!”. Consigo ver esse posicionamento como um parente distante daquele adotado por feministas mais antigas, que buscavam reavaliar as atividades e culturas tradicionamente femininas. Não existe nada inerentemente trivial sobre o trabalho que as pessoas “femininas” fazem, sobre as poses que adotam, ou sobre os meios pelos quais elas se expressam. Além disso, desvalorizar o “feminino” não é somente machista, mas imperialista culturalmente, dado que definições de feminilidade variam entre diferentes culturas.

No entanto, ao passo que os trabalhos feministas anteriores tinham por meta reavaliar quais fatores que o construto da feminilidade podia oferecer para seres humanos em diferentes lugares e épocas, a ideia da “femmefobia” serve mais para silenciar críticas estruturais.Parece que não se pode atacar as indústrias e os ambientes sociais que exploram a pressão para que mulheres sejam “femininas”, porque isso significaria atacar as pessoas que são naturalmente “femme” (uma definição essencialista que é, em si, imperialista culturalmente). Eu acho isso absurdo. É obviamente absurdo, mas ainda assim essa palavra possui “fobia” em si, então não podemos falar isso muito alto.

Vejo isso acontecer demais: críticas feitas por mulheres são patologizadas, apresentadas como “fobias”, como uma resposta irracional à realidade, em vez de considerável, dotado de nuances e digno de consideração. Homens desafiam o status quo enquanto que mulheres, ao que parece, têm a escolha de refleti-lo ou de serem consideradas loucas ou malignas. Mulheres que não gostam da indústria da beleza são femmefóbicas. Aquelas que criticam a indústria do sexo, têm fobia de prostitutas. Aquelas que criticam estruturas familiares tradicionais “odeiam homens” e aquelas que apontam a objetificação têm “problemas paternos” ou “problemas com sexo”. Uma mulher que desafie a ordem social é tida como doente. É uma prática antiga – trabalhos de ficção feminista como “O Papel Amarelo” e “Wide Sargasso Sea” descrevem isso vividamente – mas é deprimente ver isso nos acompanhar ainda hoje, e mais ainda dado que é uma tática usada tanto por mulheres como por homens. Mesmo assim, consigo ver por que mulheres o fazem. Elas chamam outras mulheres de “fóbicas” porque elas próprias estão com medo. Todas estamos. Isso é o que o patriarcado te impõe.

Mas o que realmente nos amedronta quando usamos palavras como “femmefobia”, “fobia de prostituídas”, ou quando dizemos que mães trabalhadoras “odeiam” mães donas-de-casa? O que nos amedronta para usarmos acrônimos como TERF, sugerindo mau cartismo condições e patológicas em mulheres com as quais discordamos? Acho que tememos uma coisa: misoginia. Sabemos que a misoginia é real, mas ainda assim pensamos que se não dissermos isso em voz alta – se nós focarmos nossa atenção nas imperfeições de suas vítimas – ela talvez vá embora ou, ao menos, não nos afetará. 

Ninguém quer ser a mulher que gritou “misoginia!”, uma palavra mortalmente grave e que absolutamente ninguém leva a sério. Apenas tocar nela faz com que você soe histérica, infantil e fraca – todas as coisas que misóginos pensam das mulheres. É uma palavra que descreve uma fonte de opressão que, no entanto, se faz parecer vitimista/auto-complacente; apenas mulheres que não possuem problemas “reais” ficam irritadas sobre serem odiadas por serem mulheres. A misoginia é parte de grande parte das bostas que mulheres diferentes, em diferentes contextos, sofrem – ainda assim, o fato de que suas manifestações não são iguais, ao longo dos diferentes grupos, nos faz questionar a existência toda da misoginia. Acuse alguém de “femmefobia” e você, imediatamente, se distingue desde marasmo de mulheres mimizentas; acuse alguém de misoginia e você instantaneamente está fadada a provar quão patéticas e viciadas em vitimismo as mulheres do teu tipo são.

Coisificar as manifestações de misoginia – empacotando-as dentro de pequenas caixinhas que de maneira alguma se inter-relacionam – é confortável.  Teu problema deixa de ser um ambiente político, social e cultural que percebe mulheres como humanos inferiores. Deixa de ser um mundo no qual é considerada normal a objetificação, exploração e abuso de mulheres. Deixa de ser um mundo no qual você vai ouvir justificativas sobre como é ok estuprar mulheres como você, nem um mundo no qual a voz de qualquer mulher é considerada alta demais, nem um mundo onde a esmagadora maioria das decissões é feita por homens e para homens. Teu problema passa a ser apenas as femmefóbicas, as TERFs, as “fóbicas de prostituídas” e as feministas radicais que foram meio longe demais. Teu problema deixa de ser estrutural e vasto. São apenas meia dúzia de indivíduas que por acaso são intolerantes, erradas e mulheres. Bom. Conveniente, né?

Infelizmente, por mais confortável que isso possa ser, não está ajudando ninguém, ou melhor, talvez ajude algumas individuas a se sentir menos vulneráveis mas isto não fará as mulheres estarem seguras. Evitar falar em misoginia, reposiciona-la para ela parecer menos poderosa, não é uma solução. Todas nós temos palavras em nossas mentes e estórias a contar. Podemos inventar mais e mais, quantas quisermos. No entanto, quando nossa carne está sendo dilacerada, esquartejada, mortificada, modificada e abusada, não importa como nós recontamos a história. Isto é misoginia.

[grifos meus]

tradução n.s.