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Gênero e sexualidade

Durante um “feminário” organizado pelos membros da London Feminist Network (Rede Feminista de Londres) em maio de 2010, Debbie Cameron e Joan Scanlon, editoras da revista britânica Trouble & Strife, deram uma oficina sobre o conceito de gênero e seu significado para o feminismo radical. Nós apresentaremos uma transcrição revisada de suas proposições informais, sob o título geral “A respeito do gênero”, traduzido por Annick Boisset e revisado por Martin Dufresne.

Esta transcrição “A respeito do gênero” é apresentada em duas partes:
I. O que é gênero? De onde vem a confusão que o cerca?
II. Gênero e sexualidade: convergências e divergências do feminismo radical e da teoria queer

***

I. O que é gênero? De onde vem a confusão que o cerca?

Debbie Cameron: O objetivo da discussão de hoje é tentar elucidar uma parte da confusão teórica e política que cerca atualmente o conceito de gênero. Provavelmente seria útil começar por perguntar de onde vem essa confusão.

Em nossos dias, as conversas sobre o “gênero” muitas vezes encalham em problemas porque as pessoas que falam dele empregam a mesma palavra atribuindo-lhe superficialmente o mesmo significado, enquanto que, observando mais de perto, elas não falam das mesmas questões a partir da mesma abordagem. Por exemplo, quando lançamos a antologia The Troube & Strife Reader (1) na Feira do Livro Radical de Edimburgo, estudantes vieram nos expressar sua satisfação de ver esse livro publicado, mas também sua surpresa por ele tratar tão pouco da questão do gênero. No entanto, este livro não fala de outra coisa, do gênero, no sentido feminista radical da palavra, ou seja, o de relações de poder entre mulheres e homens, de maneira que a nossos olhos essa reação foi de fato surpreendente. Joan simplesmente não a compreendeu, de imediato. De minha parte, eu entendi sem dúvida o que elas queriam dizer porque eu ainda sou universitária, e na universidade se ouve muito a palavra “gênero” utilizada desse jeito.

Eis a chave do enigma. Durante os anos 90, *s teóric*s e ativistas queer elaboraram uma nova maneira de falar de gênero. Sua abordagem apresentava certamente pontos em comum com o vocabulário feminista mais estabelecido, mas tinha um enfoque diferente; uma teoria diferente a sustentava. No fundo se tratava da teoria pós-modernista de identidade, associada à filósofa Judith Butler, apesar de eu duvidar de que a própria Butler diria que as feministas não tinham análise crítica do gênero, ou que elas não faziam a análise certa, na medida em que suas ideias sobre gênero derivavam de “essencialismo” e não da “construção social” da identidade.

O que é gênero?

a. “Antigo” conceito de gênero
Trata-se de um sistema de relações sociais/de poder estruturado por uma divisão binária entre “os homens” e “as mulheres”. A divisão em categorias se faz habitualmente baseada no sexo biológico. Mas o gênero tal como o conhecemos é uma realidade social e não biológica (por exemplo, a masculinidade e a feminilidade têm definições diferentes em lugares diferentes e épocas diferentes).

b. “Novo” conceito de gênero
Trata-se de um aspecto de identidade pessoal/social, habitualmente atribuído no nascimento baseado no sexo biológico (mas essa correspondência “natural” é uma ilusão – assim como a ideia de que devem existir dois gêneros porque existem dois sexos.)

Por que esse sistema constitui uma opressão?

a. “Antigo” conceito de gênero
Porque ele é fundado sobre a subordinação de um gênero (as mulheres) pelo outro (os homens).

b. “Novo” conceito de gênero
Porque é um sistema binário rígido. Ele obriga cada pessoa a se identificar ou como um homem, ou como uma mulher (o que quer dizer que não nem um nem outro, não os dois ao mesmo tempo, não algum lugar entre os dois, e não uma coisa completamente outra) e pune quem quer que não se conforme a essa regra. (Isso oprime os homens e as mulheres, e sobretudo as pessoas que não se identificam completamente com o modelo prescrito por seu gênero.)

O que seria uma política radical de gênero?

a. “Antigo” conceito de gênero
O feminismo: as mulheres se mobilizam para reverter o poder masculino e assim o sistema de gênero em sua totalidade. (Para as feministas radicais, o número ideal de gêneros seria… nenhum.)

b. “Novo” conceito de gênero
“O queer”: mulheres e homens rejeitam o sistema binário, se identificam como “foras-da-lei do gênero” (o que quer dizer, como queer ou trans) e exigem o reconhecimento de uma gama de identidades de gênero. (Sob essa perspectiva, o número ideal de gêneros seria… infinito?)

Existem ao mesmo tempo semelhanças e diferenças entre essas duas versões. Em ambas, o gênero é relacionado ao sexo, mas não é a mesma coisa; em ambas, o gênero tal como o conhecemos é um sistema binário (existem, basicamente, dois gêneros); e as duas abordagens sem dúvida concordariam que o gênero é questão de poder E de identidade; mas elas diferem na importância atribuída a um fator e ao outro. Essas duas versões diferem igualmente porque os adeptos da versão queer não pensam em termos de opressão das mulheres pelos homens; eles e elas consideram que as normas de gênero são mais opressivas que o poder hierarquizado, e eles e elas querem mais gêneros em vez de menos ou absolutamente nenhum.

Para melhor compreender esses conceitos e decidir o que você acha disso, é interessante conhecer um pouco de história, da história das ideias feministas radicais e sexuais radicais. Há três questões principais que acreditamos útil que se explorem de forma mais detalhada:

1. É verdade que o feminismo radical é ou era essencialista em sua concepção de gênero?
2. Qual é e era a relação entre a política do gênero e a sexualidade?
3. Que têm em comum o feminismo radical e a política queer (também chamada gender queer), quais são suas diferenças de base e quais são seus respectivos objetivos políticos?

O feminismo radical é/era essencialista?

Comecemos por concordar com uma coisa: existem evidentemente variedades essencialistas do feminismo, correntes de pensamento para as quais, por exemplo, ao corpo das mulheres se veem atribuídos poderes místicos, ou os homens são vistos como naturalmente maus; certas formas que se identificam com essas ideias podem se reivindicar ou se pregar o rótulo de “feminista radical”. Mas se se considera ao contrário o feminismo radical como uma tradição política que produziu, entre outros, um corpus de textos feministas que chegaram a ser considerados “clássicos”, constata-se a que ponto sua concepção de gênero sempre foi não essencialista – o que pode surpreender, tendo em vista a insistência com a qual se acusam as feministas radicais de serem essencialistas.

A fim de ilustrar esse ponto, juntei algumas citações de mulheres geralmente reconhecidas como os arquétipos de feministas radicais, entre elas Simone de Beauvoir, que é frequentemente considerada a fundadora do feminismo moderno da “segunda onda”, com seu livro O segundo sexo (publicado pela primeira vez em 1949, vinte anos antes da eclosão dessa onda). Beauvoir não tinha nada de essencialista e, apesar de ela não utilizar um termo equivalente a “gênero” (uma palavra que continua não sendo de uso corriqueiro em francês), muitos de seus comentários são centrados na distinção entre o aspecto biológico e o aspecto social da feminilidade. Uma de minhas frases favoritas de O segundo sexo, por causa de seu lado gelidamente sarcástico, é a seguinte: “Todo ser humano fêmea não é portanto necessariamente uma mulher; é preciso que participe dessa realidade misteriosa e ameaçada que é a feminilidade”.

Uma outra feminista do início da “segunda onda”, Shulamith Firestone, autora de A dialética do sexo (1970), foi renitentemente taxada de essencialismo (por haver expressado a hipótese de que a subordinação das mulheres tinha sem dúvida suas origens em suas funções reprodutivas e nutridoras). Mas na realidade, Firestone não via nem como natural nem como inevitável a existência de uma hierarquia social erigida sobre a diferença dos sexos. Ao contrário, ela escreveu em A dialética do sexo:

“E exatamente como o objetivo final da revolução socialista não era a eliminação do privilégio da economia de classe, mas o da diferenciação entre as próprias classes, assim o objetivo final da revolução feminista deve ser não somente a eliminação do privilégio masculino, mas a própria distinção sexual: as diferenças genitais entre humanos não contarão culturalmente.”

Pouco tempo depois em escritos da feminista radical materialista Christine Delphy, o gênero não tem sentido teórico que não o efeito de relações hierárquicas de poder; não é uma diferença pré-existente sobre a qual essas relações de poder serão em seguida sobrepostas. A posição de Delphy pode parecer extrema aos olhos das feministas menos radicais, mas independente do que nós achemos, ela não poderia ser menos essencialista. Como ela mesma disse:

“Quais serão os valores, os tratos ou a personalidade dos indivíduos, a cultura de uma sociedade não-hierárquica, nós não sabemos e temos dificuldade em imaginar. (…) talvez nós só possamos realmente pensar o gênero no dia em que pudermos imaginar o não-gênero.” (2)

As autoras que acabo de citar são todas mulheres que “podem imaginar o não-gênero”… e que o fizeram. Essa vontade de pensar seriamente no que, para a maioria das pessoas, inclusive feministas mesmo, é impensável – a saber que um mundo verdadeiramente feminista seria um mundo não somente sem desigualdades de gênero, mas também sem distinções de gênero – essa vontade, nos dirão, é uma das marcas do feminismo radical, uma das maneiras pelas quais esse feminismo se distingue como “radical”.

Um outro elemento que distingue o feminismo radical é a maneira como relaciona o gênero à sexualidade, e o gênero e a sexualidade ao poder. Os escritos de Catharine A. MacKinnon insistem fortemente nessa relação, como a passagem seguinte de seu livro O feminismo irredutível (2005):

“Na teoria feminista do poder, a sexualidade é marcada pelo gênero, como também o gênero é sexualizado. Ou seja, a teoria feminista analisa como a erotização da dominação e da submissão cria o gênero, a mulher e o homem, sob as formas sociais que conhecemos. A diferença dos sexos e a dinâmica de dominação-submissão se definem portanto mutuamente. O erótico é o que define o sexo como desigualdade, portanto como diferença significativa. Está aí, para mim, a significação social da sexualidade e a contribuição específica do feminismo na tomada em consideração da desigualdade de gênero.”

Isto mostra que certas feministas radicais mais conhecidas adotaram uma concepção não essencialista da sexualidade como também do gênero. De fato, uma das posturas mais radicalmente não essencialistas ou anti-essencialistas que conhecemos – uma concepção tão radical quanto a de não importa que teóric* queer a seu modo de rejeitar a ideia de identidades fixas e finitas – vem da feminista radical Susanne Kappeler, em seu livro Pornografia da representação (1986):

“Numa perspectiva política, a sexualidade, como a linguagem, poderia entrar na categoria de relações intersubjetivas: uma questão de troca e de comunicação. As relações sexuais – o diálogo entre dois sujeitos – determinariam, articulariam uma sexualidade dos sujeitos, do mesmo modo como as interações do discurso geram papéis de comunicação entre as interlocutoras. A sexualidade seria então menos uma questão identitária, de um papel fixo na ausência de uma práxis, que uma possibilidade, dotada de um potencial de diversidade e de intercambialidade, dependente de maneira crucial de um/a interlocutor/a, de um outro sujeito, e codeterminado por ele.” (Tradução nossa)

Explicaremos então por que pensamos que as ideias dessas feministas radicais a respeito de gênero, da sexualidade, da identidade e do poder lançam de fato um desafio muito mais radical ao status quo que as ideias de análises queer.

II. Gênero e sexualidade: convergências e divergências do feminismo radical e da teoria queer

Joan Scanlon: Como disse Debbie, eu fiquei completamente atônita quando as duas jovens que encontrei em Edimburgo me perguntaram por que The Trouble & Strife Reader (2009) não falava mais sobre gênero. Eu liguei para Su Kappeler (que acabaram de nos citar), e ela me disse: “Você sabe, Joan, é como o que Roland Barthes escreveu em algum lugar: Se você tem um guia de viagem para a Itália, você não vai encontrar a palavra Itália no índice, você vai encontrar Milão, Nápoles ou o Vaticano…” Repensei sobre isso e entendi que, apesar da coerência de seu comentário, tinha outra coisa aí por trás: era como se o mapa da Itália tivesse desaparecido completamente – um mapa bastante útil para situar reciprocamente Milão, Nápoles e o Vaticano – e como se tivessem substituído a realidade geográfica, política e econômica da Itália por um espaço virtual dentro do qual a Itália pudesse muito bem ser um baile de máscaras, uma bandeira tricolor, uma sorveteria, ou não importa que combinação de “significados flutuantes”. E assim, voltando ao conceito de gênero, eu entendi que tínhamos que reconstruir esse mapa, e que precisávamos olhar a questão em modo histórico para encontrar um sentido nesse deslizamento de significação.

Claro que os mapas evoluem, como aconteceu com as fronteiras, mas não podemos ir muito longe sem eles. Temos então que analisar por que as feministas adotaram o termo “gênero” para descrever uma realidade material – a imposição sistemática do poder masculino – e para fazer dele uma ferramenta de mudança política. Vou começar por alguma definições, pois falarei brevemente da história da sexualidade, da relação entre o gênero e a sexualidade e da evolução dessa relação entre duas construções desde o começo do século passado. Darei um breve panorama dos pontos comuns e das diferenças chave entre o feminismo e as análises queer.

Definições: o feminismo, o gênero, a sexualidade

No fim dos anos 80, quando Liz Kelly e eu estávamos escrevendo algo juntas, decidimos que diante da proliferação dos “feminismos”, nós devíamos afirmar que o termo “feminismo” era vazio de significado se ele significava simplesmente o que quer que quisessem lhe dar como sentido. Ou seja: não podemos ter plural se não temos um singular. Então definimos o feminismo simplesmente como “um reconhecimento do fato de que as mulheres são oprimidas e como um engajamento em mudar essa realidade”. Para além dessa definição, podemos ter todo tipo de diferença de opinião quanto ao porquê da opressão das mulheres e todo tipo de ponto de vista diferente quanto às estratégias para transformar essa situação.

Para o décimo aniversário da revista Trouble & Strife, em 1993, nós pedimos então a várias mulheres que definissem o feminismo radical. Suas definições tiveram todas o seguinte ponto em comum: colocar como elemento central que o gênero é um sistema de opressão e que os homens e as mulheres são dois grupos socialmente construídos, que existem precisamente em razão da relação de poder desigual entre eles. Além disso, todas essas definições afirmam que o feminismo radical é radical porque põe em questão todas as relações de poder, aí inclusas as formas extremas como a violência masculina e a indústria do sexo (que sempre foi muito controversa dentro do movimento das mulheres e objeto de uma luta muito impopular a se levar). Em vez de se ater a ajustes periféricos à questão do gênero, o feminismo radical se concentra no problema estrutural que a sustenta.

Isto quer dizer que definir o gênero parece ser uma passagem obrigatória para compreender a proliferação de sentidos que se seguiu a seu uso ter se tornado plural. O termo “gênero” , tal como as feministas radicais sempre o compreenderam, descreve a opressão sistemática das mulheres, enquanto grupo subordinado, em benefício do grupo dominante: os homens. Não é um conceito abstrato – ele descreve as circunstâncias materiais da opressão, inclusive o poder masculino embutido nas instituições e nas relações pessoais: por exemplo, a divisão desigual do trabalho, o sistema judiciário penal, a maternidade, a família, a violência sexual… e assim por diante.

Gostaria de enfatizar aqui que muito poucas feministas sustentariam que o gênero não é socialmente construído. Acredito que se acusam o feminismo radical de essencialismo biológico, é porque ele teve um papel de fato central na campanha conduzida contra a violência masculina. Daí o fato de nos acusarem, por uma razão ou por outra, de crer que todos os homens são violentos por natureza. Nunca compreendi esse ilogismo: se você se engaja com uma política de mudança, seria definitivamente absurdo acreditar que o que você deseja mudar é inato ou imutável.

De fato, considerar que o gênero, dentro do sistema patriarcal, emana do sexo biológico, tem por efeito “essencializar” ainda mais a sexualidade, e ela passa a ser percebida como irradiada de nossa própria natureza, de desejos e sentimentos que escapam inteiramente ao nosso controle, mesmo que nossa conduta sexual pode ser regulada pelos códigos morais e sociais. Então, para concluir com algumas definições, vou tomar de Catharine A. MacKinnon sua definição da sexualidade como “um processo social que cria, organiza, orienta e expressa o desejo”. Isso indicando claramente que o feminismo radical interpreta a sexualidade como sendo socialmente construída, não me prolongarei sobre este assunto pelo momento, na medida em que espero que minhas próximas proposições esclareçam tudo isso.

Uma breve história da sexualidade

É apenas a partir de 1870, mais ou menos, que o discurso médico, científico e jurídico começou a classificar e categorizar as pessoas por tipos sexuais – e que isso criou a ideia, hoje reconhecida pel*s historiador*s, de uma identidade especificamente homossexual ou lésbica. Antes do fim do século 19, concebíamos a conduta sexual em termos de pecado e de crime, portanto em termos de atos sexuais mais que de identidades sexuais. Em Royaume-Uni, a homossexualidade masculina foi penalizada até 1967, e o lesbianismo, sem jamais ter sido ilegal, se viu reprimido por outras vias: até a Segunda Guerra mundial, não era uma opção economicamente possível para mais que uma muito pequena minoria de mulheres privilegiadas e financeiramente independentes. A sexualidade das mulheres sempre foi controlada pela coerção, pela dependência econômica dos homens, e em muito grande parte, pela ideologia. O ensaio de Adrienne Rich, Heterossexualidade compulsória e existência lésbica (1979) detalha a amplitude e a inventividade desses meios de controle.

O gênero é um dos meios mais eficazes de controlar a sexualidade: dada a constante reafirmação do sistema binário de gênero como aparelho de controle social, se você sai do papel de gênero que lhe foi atribuído, você fica suscetível a ser estigmatizad* como homossexual. Ou seja, se você renuncia às gratificações da feminilidade, por exemplo se tornando encanadora, ou não depilando as pernas, ou dizendo a uma homem que a assedia que vá se foder, vão provavelmente acusá-la de ser lésbica. (Um homem que não se conforma às convenções da masculinidade, e que é visto empurrando um carrinho de bebê, segurando uma rosa, ou que não gosta de futebol será também provavelmente tratado por gay.)

Da mesma maneira, se você é lésbica, espera-se que você se comporte como um homem, que demonstre um desejo masculino – e as mulheres heterossexuais creem sem dúvida que você se interessa por elas, e são encorajadas a evitar os espaços reservados a mulheres, com medo de que pulem em cima delas. (Isto é talvez menos real atualmente, mas o problema aparecia sempre por ocasião de eventos “somente para mulheres” no início de meu engajamento feminista, no sentido de que as heterossexuais acreditavam que “reservado para mulheres” significava “para lésbicas” e tomavam por pressuposto que esses lugares e eventos seriam sexualizados.) De todo modo, isto é em parte o que apontava MacKinnon quando dizia que “o gênero é sexualizado e a sexualidade é generizada” – ou seja, que o diferencial de poder entre os homens e as mulheres é erotizado, e nós não reconheceríamos alguma coisa como sexual se não fosse questão de poder – de maneira que tudo isso que é percebido como sexual, como a identidade gay e lésbica, é lido através desse prisma, e é assim generizado.

Os primeiros sexólogos tiveram um papel importante em criar e consolidar o mito segundo o qual as lésbicas eram fundamentalmente mulheres masculinizadas e segundo o qual os homens homossexuais eram por natureza femininos. É igualmente em suas obras – por exemplo, a de Richard von Krafft Ebing – que se encontra antes de tudo a noção de um homem nascido no corpo de uma mulher, e vice-versa. Embora os primeiros sexólogos tenham desmitificado muitas outras crenças a respeito das condutas sexuais e que tenham contribuído com a contestação à criminalização da homossexualidade apresentando-a como “natural” e “inata”, eles confirmaram, assim, a ideia segundo a qual a sexualidade era uma parte essencial da natureza humana, que era ou um perigo que se precisaria controlar medicamente, ou uma força positiva que se precisaria liberar das amarras repressivas da civilização. Esses sexólogos estavam em frequente desacordo e mergulhados em contradições, mas coletivamente eles acreditaram e confirmaram o mito segundo o qual todos nós temos uma “verdadeira identidade sexual”, que a sexologia pode ajudar a revelar. Alguns de seus escritos parecem hoje uma completa rede de absurdos, mas não seríamos capazes de subestimar a importância desses textos para a literatura e para o imaginário popular de sua época.

Para dar um exemplo: Richard von Krafft Ebing (cujos estudos de caso serviram de modelos aos personagens de Radclyffe Hall em seu romance lésbico O poço de solidão) sustentou que as personagens homossexuais não eram nem doentes mentais, nem moralmente depravadas – elas tinham apenas sofrido uma inversão congênita do cérebro durante a gestação do embrião. Além do mais, ele era convencido de que se podiam encontrar as marcas de masculinidade nas “invertidas” do sexo feminino, confirmando assim a causa genética de seu estado. Havelock Ellis, que prefaciou O poço de solidão, compartilhava essa posição e iria até sustentar que se podia fazer uma distinção entre as verdadeiras “invertidas”, de natureza permanente e inata, e as mulheres atraídas pelas “invertidas”. As segundas, apesar de mais femininas, não eram “muito bem adaptadas à maternidade”, e eram por consequência pouco dispostas a uma sexualidade heterossexual procriadora.

Uma posição mais clara foi a de Edward Carpenter, reformador socialista e filósofo utopista: Carpenter, que utilizava a palavra uraniano (um adjetivo que significa “celeste”) para designar as pessoas atraídas por aquelas de seu próprio sexo, tinha uma perspectiva mais mística e lírica sobre toda essa questão. (Sempre se zomba dele porque uma espécie de culto se formou em seu redor; não contente em fabricar suas próprias sandálias, ele fabricava também todas as de sua comunidade, que vivia numa aldeia perto de Sheffield, na Inglaterra.) Mas sob muitos aspectos, Carpenter foi o mais radical de todos. Ele era muito mais interessado em características de temperamento e de sensibilidade das pessoas que em seus sinais (biológicos) aparentes de desvio em relação às convenções da masculinidade e da feminilidade. Ele acreditava também que as pessoas que pertenciam ao “sexo intermediário” poderiam um dia servir de passarelas entre as diferentes classes e raças e agir como intérpretes entre os homens e as mulheres, pelo fato de partilhar características dos dois grupos. *s economistas e *s polític*s do movimento rejeitaram as visões de Carpenter como um bocado de disparates sentimentais mas é ele, de tod*s *s sexólog*s, que chega o mais perto de afirmar que é o gênero em si que é o problema, e que os pólos extremos do sistema binário de gênero são prejudiciais à sociedade ideal que ele imagina.

Não vou passar em revista o conjunto de sexólog*s do século 20 – sem dúvida vocês estão a par dos trabalhos de laboratório de Masters e Johnson, e dos excelentes estudos por sondagem sobre as condutas sexuais e a prevalência do desejo homossexual dentro do total da população heterossexual americana. A principal característica comum a ess*s sexólog*s da segunda onda é que fizeram do sexo um assunto de estudo científico, e que muito poucos entre el*s estudaram o gênero em si mesmo, ou o contexto social e o significado da sexualidade.

A influência do movimento das mulheres e do movimento gay

A relação do gênero com a sexualidade mudou no fim dos anos 60 e durante os anos 70 em grande parte por causa da emergência do movimento de mulheres e do movimento de liberação gay. Com a ascensão do feminismo e com a publicação de numerosos textos-chave como A política do macho, de Kate Millett (1970), não se considerava mais o lesbianismo como uma subcategoria da homossexualidade masculina, e não mais somente como uma identidade sexual, mas como uma identidade política, dentro de um contexto de relações de poder generizadas. Em outras palavras, tornou-se possível ver que ser lésbica tinha relação com o fato de se ser uma mulher, de por em questão a heterossexualidade como instituição, e de contestar o poder dentro de relações íntimas. Eu considero uma imensa sorte de minha parte ter conhecido o feminismo no fim dos anos 70 (no início dos meus vinte anos), senão, se eu tivesse nascido mais cedo, teriam me convencido completamente de que eu era uma “invertida” ou, deus me livre!, uma “uraniana”, ou qualquer outra identidade. O movimento das mulheres do fim dos anos 60 e dos anos 70 ofereceu a muitas mulheres uma oportunidade sem precedentes de dar sentido à sua vivência de mulheres, de teorizá-la, e de agir para transformá-la.

Muitas vezes esquecemos que os teóricos do movimento de liberação gay tinham, no início desse movimento, muito em comum com o feminismo: a desconstrução da masculinidade, um requestionamento da família nuclear, a contestação da misoginia e a busca de uma sexualidade igualitária. Mesmo as feministas tendo continuado a trabalhar muito em colaboração com os homens gay – face a uma opressão comum, a heterossexualidade institucionalizada – nós também constatamos que a ênfase que dávamos à construção social dispensava a concepção dominante no seio do movimento gay, segundo a qual a sexualidade era inata.

Por exemplo, no fim dos anos 80 na Grã-Bretanha, durante a campanha lançada contra a cláusula 28 do Decreto do governo local (que interditava às autoridades locais a “promoção” nas escolas da homossexualidade e de suas “falsas” famílias, quer dizer, as homoparentais), o argumento principal utilizado pelo movimento gay era que não se pode chamar qualquer um de gay, que os gays constituíam apenas 10% da população, que se nascia gay, e que esse grupo não representava então qualquer ameaça à ordem estabelecida. E nós, é claro, como feministas, sustentamos o contrário, nós dissemos que se podia de fato mudar a sexualidade, e que nós tentávamos exatamente ser uma ameaça à ordem estabelecida.

A epidemia de AIDS politizou muitos homens gays em torno da sexualidade, numa defesa de sua liberdade sexual individual contra a política repressiva da extrema-direita. Mas clamando mais uma vez pela tolerância por parte do mundo heterossexual, e exigindo acesso aos privilégios dos heterossexuais (parcerias civis, etc.) – o que se tornou uma estratégia eficaz para o sucesso desses objetivos, precisamente porque não pareciam ameaçar a ordem estabelecida – esse movimento abriu caminho a uma política que não apenas colocava em questão as condutas heteronormativas, mas também procurava criar um espaço para todas as vítimas do gênero expulsas do sistema binário de gênero e de uma concepção binária paralela da sexualidade. Pode-se responder a isso que o feminismo parecia precisamente abrir a via a uma tal política e a um tal espaço; eis por que é importante debruçar-nos sobre as diferenças entre o feminismo e o movimento queer.

O que o feminismo radical tem em comum com o movimento queer:

– Uma inteligência do fato de que o gênero e a sexualidade são construídos socialmente.

– Um reconhecimento do fato de que papéis binários de gênero são opressivos.

– Uma inteligência do fato de que papéis de gênero são produzidos para uma performance e são confirmados por sua constante encenação.

– Um engajamento com o questionamento dos postulados e práticas heteronormativos.

As diferenças entre o feminismo radical e o movimento queer são as seguintes.

O feminismo radical

O feminismo radical é uma análise materialista que defende que o gênero não é produzido apenas pelo discurso e pela performance, mas que é um sistema dentro do qual um gênero (o masculino) possui poder econômico e político e o outro (o feminino) não o possui – e um sistema onde o grupo dominante tem interesse em preservar essa situação.

O feminismo radical inclui um reconhecimento do fato de que não se pode produzir (ou questionar) o sistema de gênero somente pelo discurso ou pela performance individual – como adotar certas vestimentas, uma certa linguagem, ou mesmo por modificações anatômicas. Fora de certos contextos limitados, a cultura dominante interpretará sempre esses gestos à luz dos códigos sociais dominantes, e buscará classificar a você dentro da categoria homem ou mulher. (Ou seja, no metrô, no supermercado ou no trabalho, estes gestos individuais ou enunciados performáticos serão ininteligíveis e de fato ineficazes como contestação do sistema de gênero.)

Judith Butler sustenta que o feminismo, por afirmar que as mulheres constituem um grupo detentor de características e interesses comuns, reforçou a concepção binária do gênero, onde os gêneros masculino e feminino são construções sobre os corpos masculinos e femininos.

As feministas dizem com efeito que as mulheres têm um interesse político comum (em vez de simplesmente apresentarem características comuns). Elas dizem que as mulheres sofrem uma opressão comum (que elas vivem de diferentes maneiras ligadas a outras formas de relações de poder, como a raça e a classe), e que o corpo das mulheres é a sede de boa parte dessa opressão. Mas isso não implica de forma alguma que a categoria mulheres seja uma categoria indiferenciada. É simplesmente afirmar que, por as fêmeas serem oprimidas por serem fêmeas, elas precisam de uma identidade política comum, a fim de se mobilizarem eficazmente em resistência a essa opressão.

O feminismo radical tem por projeto transformar o sistema de gênero e contestar a opressão sob todas as suas formas. Assim nós não esperamos nada da ideia de ser fora-da-lei, ideia que deriva de uma concepção romântica da opressão. Por outro lado, se sentir oprimid* não é a mesma coisa que ser oprimid*. Para celebrar sua identidade como fora-da-lei, nós devemos arrancar do sistema alguma coisa que faça de nós foras-da-lei.

O queer

O movimento queer me parece federar os párias mais extremos do sistema de gênero e inventar um guarda-chuva que abrigue, de um lado, as pessoas que são as fora-da-lei involuntárias (vindas geralmente das categorias mais pobres e mais alienadas da sociedade, sem cobertura de proteção contra os preconceitos sociais, e portanto marginalizadas sem o tenham escolhido) e, por outro, as pessoas para quem brincar de ser fora-da-lei é um exercício intelectual de privilegiad*s em vez de uma dura realidade vivida.

O queer reagrupa, segundo sua própria definição, tudo o que se desvia do normal, do legítimo, do dominante. Portanto, o queer se define “não por uma positividade, mas por um posicionamento em relação ao normativo” (3). Daí segue que o movimento queer não tem objetivos políticos particulares, à parte de desafiar os discursos normativos dominantes; e se esses discursos vierem a mudar, os movimentos queer devem então mudar de posição, se opondo ao que quer que venha a se tornar normativo. Eu não vejo portanto muito bem quais são seus objetivos políticos particulares.

O queer abarca um largo rol de identidades e práticas sexuais não normativas, das quais algumas são heterossexuais: “O sadismo e o masoquismo, a prostituição, a inversão sexual, o transgênero, a bissexualidade, a assexualidade e a interesexualidade aparecem aos olhos d*s teóric*s queer como oportunidades de analisar as diferenças de classes, de raças e de etnicidade, e como oportunidade de reconfigurar as concepções de prazer e de desejo.” (4). Por exemplo, Pat(rick) Califia elogia o modo pelo qual o sadomasoquismo encoraja a fluidez e questiona o aspecto natural das dicotomias binárias dentro da sociedade:

“A dinâmica entre uma top e uma bottom é muito diferente da dinâmica entre um homem e uma mulher, entre brancos e negros, ou entre burgueses e operários. Esse sistema é injusto por que atribui privilégios em função da raça, do gênero e da classe social. Durante um encontro SM, os papéis são atribuídos e encenados de diversas maneiras. Se você não gosta de ser uma top ou uma bottom, passe para o papel oposto. Tente portanto fazer isso com seu sexo biológico, sua raça ou seu status sócio-econômico.” (5)

Esta opinião posiciona ess*s teóric*s do queer em conflito com a concepção feminista radical segundo a qual o sadomasoquismo, a prostituição e a pornografia são todas elas práticas opressivas.

O feminismo radical sustenta que todas as diferenças de poder são sexualizadas, inclusive aquelas construídas através da raça e da etnicidade, da classe e da deficiência física, e que a pornografia e a indústria do sexo em geral são de suas manifestações mais claras e mais perniciosas. A diferença de poder erotizada é a essência mesma do pornô, e ela é posta em cena sobre corpos de verdade e não apenas na imaginação do consumidor. Além disso, importa elucidar do prazer de quem e do desejo de quem estamos falando, dentro do contexto de uma indústria baseada na exploração e na violência sexual. O SM foi objeto de muitos debates acalorados no seio do feminismo dos anos 1980, e ainda nesse tempo, o feminismo radical não viu nada de novo ou de radical no fato de recriar dentro de relações não heteronormativas a dinâmica de dominação-subordinação já predominante na heterossexualidade.

Todos esses fenômenos, aclamados como anti-heteronormativos pelo movimento queer, são já aclamados pelo patriarcado, e portanto nada têm de revolucionário. As feministas radicais procuram não somente questionar as estruturas do patriarcado, mas desmantelá-las, já que o desafio oferecido pelo queer à cultura normativa é uma provocação, sem objetivo político de desmantelar a norma, da qual depende, por sua própria definição, para existir enquanto postura de oposição. Parece, assim, que o queer não procura se liberar do sistema de diferença de gênero, mas simplesmente tomar liberdades com ele.

Se queremos transformar o aparelho social que cria a diferença de gênero que conhecemos, devemos levar em conta as estruturas subjacentes que engendram e sustentam essa diferença – e devemos procurar erradicar o próprio gênero.

Sem o gênero, sem diferencial de poder, a sexualidade poderia ser simplesmente a expressão de desejo entre sujeitos iguais. (Ver a citação de Su Kappeler.)

No começo dessa conversa, Debbie citou Shulamith Firestone, e me parece então realmente apropriado concluir parafraseando um argumento chave de sua A dialética do sexo, argumento que resume bem a visão feminista radical sobre o gênero como um sistema que cria e mantém a desigualdade. A tarefa política do feminismo é erradicar o gênero.

***
(tradução: C.C.)