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Ódio Antigo e Sua Manifestação Contemporânea: A Tortura de Lésbicas

Susan Hawthorne, Ph.D.
Universidade de Victoria
hawthorne@netspace.net.au

RESUMO
Essa nota visa um número de diferentes elementos que fazem a experiência de tortura de
lésbicas no mundo contemporâneo. Eu tracei elementos da cultura popular junto com
testemunhos de lésbicas, relativos à tortura em diversos países, e também citando fontes
históricas. Eu examino as justificações e desculpas dadas pela tortura, incluindo a visão
de que estupro é uma parte normal da atividade heterossexual. Eu argumento que a
dominação é exemplificada na punição de lésbicas como profanas na cultura patriarcal,
particularmente quando grupos e nações vão à guerra, eu também viso o modo que tais
argumentos pela legalização da tortura compartilham similaridades com argumentos a
favor da prostituição, pornografia, e BDSM [Bondage, Disciplina, Dominação,
Submissão, Sadismo e Masoquismo] consentido. Eu desafio os defensores destas ações
e argumento que tal defesa é um caso de negligência moral. Eu concluo com a
controvérsia de que as lésbicas se libertarem da tortura e violência pode ser um
indicador da sanidade social de uma sociedade.
Essa nota é dedicada às incontáveis – e não contadas – lésbicas que continuam a ser
torturadas ao redor do mundo. {1}
As lésbicas não são a prioridade política de qualquer organização de formulação de
políticas bem financiadas {2}. Além disso, elas tendem a ser invisíveis tanto nas
políticas governamentais quanto nas agendas de organizações por justiça social. Quando
se trata de campanhas sobre violência contra a mulher, lésbicas são deixadas para trás
tanto quando incluídas apenas em uma nota de rodapé ou de passagem nos termos de
orientação sexual ou relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo ou minorias
sexuais {3}. Nenhuma dessas especifica as lésbicas. Em campanhas ou pesquisas
documentais nestes grupos, lésbicas são mais uma vez referidas em muito menos
detalhes, isso se forem incluídas. Porque lésbicas estão ”desaparecidas,” na terminologia
convencional, e porque ninguém quer fazer as lésbicas centro de qualquer campanha,
lésbicas continuam a ser torturadas ao redor do mundo. A tortura de lésbicas ocorre
dentro de qualquer tipo de regime político, e o então chamado mundo desenvolvido não
está imune. Mas quem se importa? É, como Monique Wittig argumentou, essas
”lésbicas não são mulheres” (Wittig 1992, 20), {4} ou, como o discurso popular sugere,
essas homossexuais não são lésbicas? {5}
1. O PARADOXO DAS LÉSBICAS DENTRO DO PATRIARCADO
… nenhuma sessão de treinamento me preparou para esta dor intensa… minha dor… a
dor que eu não escolhi… toda esta alienação, esse vácuo vazio…, meu corpo, minha
mente, minha dor… isto não está acontecendo… Eu sou uma pequena partícula no
universo… que universo?… o mundo não é mais… eu estou… desintegrando… pedacinho por pedacinho… grito por grito… elétrodo por elétrodo… A dor… toda essa dor aqui e
ali, abaixo em minha vagina… a agonia… onde estou? Onde está meu eu? (RiveraFuentes
e Birke 2001, 655; itálicos e elipses no original {6})
”Jogo de Rap,” Eminem
Quando eu vejo essa pequena (apagada) lésbica se rebaixando
Apague as luzes, vadia, adios, boa noite (sopre)
Agora coloque isso em sua pequena traqueia e deslize,
Pense por um minuto porque o moderno morreu,
Que eu não subo no escritório oval agora mesmo,
E sacudo qualquer coisa que não está amarrada de cabeça para baixo,
Eu sou totalmente pela América, foda-se o governo,
Diga esse fundilhos de leis, diga isso para chupar um pau
Ele está andando outra vez. Longos passos vagarosos. Ele brinca comigo. Oferece
remover o capuz. Diz que eu serei capaz de respirar mais facilmente. Eu quero isso, mas
eu não quero ele perto. Eu não quero concordar com coisa alguma. Ele faz uma pausa na
minha cabeça. Respira. Dá um passo. Pausa. Respira. Dá um passo. E outro até os lentos
passos tomarem um ritmo percuciente próprio. Ele para e outro alguém se move
rapidamente do outro lado da sala em minha direção. A corda que amarra a toca
afrouxa. Eu posso sentir o ar fresco correndo. Com o ar luz. Luz artificial. Eu relaxo.
Abaixo a guarda. Então eu sou chocada com algo forçado à minha boca. Duro. Metal.
Eu sufoco e vômito sai da minha garganta. Eu luto e me debato. Isso para. Eu luto para
respirar através do vômito. Eles me rolam para todos os lados. Não podem ter você
morrendo quando a diversão está apenas começando, vem uma voz aveludada. Ele se
volta e anda lentamente. A porta se fecha e eu estou tentando sentir se sobrou alguém no
quarto. Está quieto. Muito quieto. Eu não posso mover minhas mãos, então balanço
minha cabeça. Sinto o vômito nas minhas bochechas. Sinto asco contra a arma em
minha boca. E a excitação dele pelo meu medo. O prazer dele pelo poder. O poder
simbólico de uma arma rígida. (Hawthorne 2004d, 43)
Um modo de manter o bondage erótico é perguntar a si mesmo a questão ”Por que essa
pessoa está sendo amarrada?”. É porque você quer deixá-la sem reação à tortura?
Deixando seu sexo completamente acessível… como uma viagem de dor, ou como uma
privação sensorial? (Califia 1988, 55)
Consuelo Rivera-Fuentes foi torturada no Chile durante os anos 70. A questão que ela
levanta – Onde está meu eu – é central para as explorações deste artigo. Onde está meu
eu lésbico? Que tipo de eu lésbico está refletido nas palavras de Eminem? {7} Que tipo
de eu lésbico é negado pelo torturador em The First Songmanuscript [O Primeiro
Manuscrito da Canção]? Que tipo de eu lésbico é retratado por Pat (atualmente Patrick)
Califia em seu Manual Seguro de S/M Lésbico? Outras questões são onde está a
centralidade das experiências de lésbicas registrada e reconhecida? Onde está o
reconhecimento de que a violação de lésbicas acontece dia após dia e ninguém fala
disso? Nos últimos trinta anos, estudiosas feministas trouxeram à luz muitos aspectos da
violência contra a mulher. Mas quando eu começo a dar seguimento sobre a tortura de
lésbicas, sou confrontada por uma escassez severa de pesquisas e um excesso de
invisibilidade. {8}O outro lado da moeda é a erotização da tortura como outra qualquer excitação sexual.
Nós – pesquisadores – não notamos que ”lésbicas + tortura” digitado em uma pesquisa na
internet traz uma enorme quantidade de material pornográfico, mais do que material que
lida com a violência e tortura da lésbicas? Está o sadomasoquismo criando aceitação da
tortura política? É a pornografia usada para gerar e intensificar a violência contra
lésbicas?
Além disso, como vamos lidar com o problema da necessidade das pesquisadoras de ler
as entrelinhas dos relatos de tortura para encontrar os dados brutos referentes à tortura
de lésbicas? Quem pode se permitir denunciar sua própria tortura quando o ódio às
lésbicas persiste mesmo nas sociedades relativamente não conservadoras? Por detrás
dessas questões está outra: Por que essas lésbicas são tão raramente mencionadas na
literatura sobre tortura?
Um dos elementos definidores da existência lésbica no patriarcado é sua vulnerabilidade
às demandas de sigilo, silêncio e não existência. Como outros grupos marginalizados e
oprimidos, lésbicas são frequentemente presas em uma ”cultura de silêncio” (Freire
1972, 48). Mas as lésbicas continuam grandemente não reconhecidas quando se trata de
sofrer o trauma do desaparecimento e negação, negação do governo quanto ao uso, por
parte deles, da tortura. {9} No patriarcado a existência lésbica é negada, ou ilegal.
Lésbicas que foram torturadas sofrem múltiplas camadas de silenciamento e negação.
Lésbicas aparecem quando a atmosfera política está aberta, e desaparecem de novo
durante tempos de repressão ou backlash [repercussão].
Como o povo indígena que teve a cultura negada, e que através de longo ativismo
político construiu sustentação social dos mitos e orgulho na comunidade deles, ativistas
lésbicas feministas, desde o fim dos anos 60, vêm se engajando em um processo similar.
Mas eu continuo escutando as pessoas dizerem que não há cultura lésbica. [10] Como a
existência negra no Apartheid, a existência lésbica dentro do território inimigo é uma
afronta à ideologia da hipermasculinidade. Quando a conformidade se torna a norma,
quando o poder masculino é arraigado, e quando o governo sanciona abusos dos direitos
humanos ou usa da tortura, lésbicas estão entre as vítimas.
Para repetir minha questão, por que essas lésbicas são raramente mencionadas na
literatura sobre tortura? Uma pista está na afirmação seguinte de uma lésbica peruana:
Quando eu falo do meu direito a minha própria cultura e linguagem como uma mulher
indígena, todo mundo concorda com minha autodeterminação. Mas quando eu falo de
minha outra identidade, minha identidade lésbica, meu direito a amar, de determinar
minha própria sexualidade, ninguém quer ouvir. (ILIS Newsletter 1994,13)
É essa distância do suporte político dos outros, que se julgam eles mesmos progressivos,
uma característica da existência lésbica. Lésbicas se uniram a outros grupos para apoiar
e lutar por direitos políticos e sociais, mas frequentemente quando lésbicas pedem apoio
à própria causa delas, a falta de resposta indica que ”apenas outras lésbicas têm orgulho
das lésbicas” (Hanscombe 1992).
Kate Millett, em A Política da Crueldade: Um Ensaio sobre a Literatura do
Aprisionamento (1994), escreveu que ”a tortura é um índice de não-liberdade” (307).
Parece que nós temos um longo caminho a percorrer na criação de liberdade para as lésbicas. Talvez seja mesmo o caso da prática da tortura em lésbicas ser a questão limite
da liberdade social. Enquanto alguma lésbica for torturada e não houver protesto contra,
a sociedade está envolvida e sendo cúmplice nessa violência.
O relatório de Crimes de Ódio da Anistia Internacional conclui com a seguinte
afirmação: ”A luta para proteger os direitos humanos da população LGBT deve ser
travada por todos” (Crimes de Ódio 2001, 28). Eu concordo, mas eu acredito que é hora
de um relato focado especificamente nas lésbicas. {11}
II. SILÊNCIO, APÓS SILÊNCIO, APÓS SILÊNCIO [12]
A ênfase no silêncio não tem como ser exagerada. Lésbicas têm sido submetidas ao
silêncio, à negação, sido ignoradas no discurso dominante heterossexual. Lésbicas que
são torturadas enfrentam múltiplas camadas de silêncio. Em primeiro lugar, há o
silêncio acerca da existência lésbica. Em segundo, em muitas jurisdições há o silêncio
legal: Punição não é atribuída formalmente, mas ao invés acontece numa base informal,
infligida as vezes pelo estado e as vezes por membros da família da mulher ou sua
comunidade. Quando isso ocorre é muitas vezes difícil ter essa punição reconhecida
como uma violação dos direitos humanos da lésbica e como uma instância de tortura.
Nessas circunstâncias, o torturador pode continuar com impunidade, por que “ninguém
nunca vai saber, ninguém nunca irá te escutar, ninguém nunca descobrirá” (Millet 1994,
300).
O grito da lésbica torturada na família, nas prisões, nos manicômios permanece não
escutado. Ela pode pedir ajuda a outros na sua dor, mas ela não pode ser ouvida por que
ninguém parece estar escutando. Poucos ousam escutar. Quase ninguém toma posição.
E eu acrescentaria que poucos parecem se importar com a sua tortura, talvez por ela
ousar ser uma lésbica. No entanto, lésbicas tem falado a despeito das pressões para
permanecerem caladas, e é para as palavras dessas lésbicas que me direciono agora.
Tina Machida é uma lésbica do Zimbábue que mora em Harare. Ela escreve:

“Eles me trancaram em um quarto e traziam ele todo dia para me estuprar, para que eu
ficasse grávida e fosse forçada a casar com ele. Eles fizeram isso comigo até eu ficar
grávida.” (Machida 1996,123)
O estupro foi instigado pelos pais dela no meio dos anos 1980, em um esforço para
“curar” ela de sua existência lésbica.
Perto de Uganda, Christine e Norah foram torturadas pela policia militar, junto com três
gays homens ativistas em 1999. A orientação politica da Uganda é de esquerda, mas o
Presidente Yoweri Museveni, assim como Mugabe no Zimbábue, não possui tempo para
direitos dos homossexuais.
O relatório sobre Christine segue assim:

“Quando retiraram a venda, Christina se encontrou em um centro de detenção secreto.
Arrancaram suas roupas, a espancaram e os soldados que a guardavam ameaçaram-na com estupro. Ela então foi levada para outro centro de detenção, onde foi interrogada
acerca do grupo de direitos humanos que amigos haviam organizado e sobre sua
sexualidade.” (Crimes de Ódio 2001, 4)
Ela foi depois estuprada por três homens detidos. Nas palavras dela:

“Perto da meia noite, eles disseram, ‘Nós queremos mostrar algo a você.’ Eles tiraram
minhas roupas e me estupraram. Eu lembro de ser estuprada por dois deles, e então eu
desmaiei.” (Crimes de Ódio 2011, 4)
Existe um duplo perigo para lésbicas que são presas. Elas correm o risco de serem
torturadas não apenas pelos guardas, mas também, como a história de Christine indica,
por outros presos. [13]
Sua amiga Norah foi levada para outro local, um quartel militar. Sobre sua provação, ela
diz:

“Eu também fui espancada, abusada tanto sexualmente como fisicamente. Minhas
roupas foram arrancadas. Comentários desagradáveis foram feitos, de que eu deveria
ser punida por negar aos homens o que lhes pertencem de direito, e sobre quem eu
pensava que era para fazer algo que o presidente considera errado. Eles até sugeriram
que deveriam me mostrar o que eu estava perdendo, se revezando em mim.” (Crimes de
Ódio 2001, 5)
Eu gostaria de enfatizar o fato de que a tortura contra lésbicas continua.[14] Lésbicas
continuam sendo estupradas e assassinadas. No dia 29 de setembro de 2004, Fanny Ann
Eddy foi encontrada morta após ser repetidamente estuprada. Ela esteve trabalhando no
escritório da Associação de Gays e Lésbicas de Serra Leoa (Human Rights Watch, 4
October 2004, Morgan and Wieringa 2005, 20).
A África, no entanto, não é o único lugar onde a tortura de lésbicas tem aconteceu e
continua a acontecer. Na Romênia, Marina Cetiner foi presa em outubro de 1995, por
“tentar seduzir outra mulher.” Ela escreve:
“Criminosos são mais bem vistos do que uma relação entre duas mulheres… Então por
causa dessa coisa homossexual, lésbica.. Eu fui tratada como a escória da escória.”
(Crimes de Ódio 2001, 11)
Durante seu encarceramento, após reclamar sobre o tratamento recebido das autoridades
da prisão, Cetiner foi algemada a um aquecedor e obrigada a ficar 11 horas “em uma
posição como a de Jesus Cristo” sem comida (Crimes de Ódio 2001, 11).
Equiparar a existência lésbica a distúrbios psiquiátricos não é novidade. É uma forma
particular pela qual as famílias lidam com jovens mulheres desobedientes. Alla
Pitcherskaia, uma lésbica da Rússia, foi acusada do crime de “vadiagem” (Crimes de
Ódio 2001, 20). O resultado final para muitas mulheres jovens pode ser
institucionalização forçada por longos períodos [15], e, como no caso de Alla
Pitcherskaia, sua namorada foi também “levada a força para uma instituição
psiquiátrica” (Crimes de Ódio 2001, 20). O crime de Alla Pitcherskaia consistiu em
continuar trabalhando em uma organização de jovens lésbicas.Gigi Thadani (1996), em sua pesquisa a cerca das condições de lésbicas na Índia,
encontrou muitos exemplos de lésbicas cometendo suicídio. Ela cita os casos de Malika
e Lalita, ambas com vinte anos, que tentaram suicídio por afogamento juntas quando
uma delas não passou em um exame, o que significaria separação para elas; também o
caso de Jyotsana e Jayashree, que pularam em frente um trem, pois não conseguiram
suportar a separação causada por seus respectivos casamentos; o de Saijamol e Gita, que
cometeram suicídio em um envenenamento conjunto; de Gita e Kishori, ambas
enfermeiras de 24 anos que se enforcaram em um ventilador de teto em um quarto do
hospital (Thadani 1996, 102-104). Apesar da Seção 377 indiana não nomear
lesbianismo como crime, tem sido usada para assediar lésbicas e colocar pressão nelas
para que entrem em casamentos heterossexuais (Vozes Contra a Seção 377 n.d, 31-32).
Quando a pressão para heterossexualizar lésbicas é extrema, lésbicas sofrem e muitas,
como indicado pelos exemplos acima, são levadas ao suicídio.
Países ocidentais não estão imunes a participação em tortura. Prisioneiras lésbicas em
todo lugar, não importando a razão de seu encarceramento, serão provavelmente
sujeitadas à tortura e abuso. Um exemplo é o de Robin Lucas, que foi presa por fraude
de cartão de credito em 1995 na Califórnia. Como foi reportado,
“Em uma tarde em setembro de 1995, três homens internos abriram a porta de sua
cela, algemara ela e a estupraram. Robin Lucas sofreu ferimentos graves em seu
pescoço, braços, costas e nas áreas da vagina e do ânus.” (Crimes de Ódio 2001, 18)
Considere o tratamento dessa lésbica e então leia o que Pat Califa tem a dizer sobre
excitação sexual:
“Por reviver a noção de que sexo é sujo, impróprio e nojento, você pode excitar
profundamente uma sortuda e exaurida lésbica, transformando-a em uma privada
pública ou cadela no cio.” (Califa 1988, 52)
Esse “convite” me atinge como um insulto a todas as lésbicas que já foram torturadas ou
violadas, e ignora a realidade da vida de tantas lésbicas em tantos países ao redor do
mundo, nos quais ser lésbica é carregar uma sentença de prisão imediata: Argélia,
Burkina Faso, Etiópia, Marrocos, Tunísia, Bahamas, Trinidad e Tobago, Antígua e
Barbuda, Barbados, Omã e Romênia. Perseguição, no entanto, se extende para países
onde teoricamente ser lésbica não é uma infração da lei, mas na realidade permanece
sendo. Esse é o caso na Colômbia, Nicarágua, Sri Lanka e Brasil. Em outros, a pena é a
morte. Esse é o caso no Afeganistão, Bahrein, Irã, Kuwait, Mauritânia, Qatar, Arábia
Saudita, República da Chechênia, Sudão, norte da Nigéria, Taiwan, e Iêmen (Anistia
Internacional, 1997, 77-90). No Irã os métodos de execução são cruéis e doloridos:
“enforcamento, apedrejamento, ser jogada de um penhasco ou prédio alto, ou encarar
um pelotão de fuzilamento” (Reinfelder 1996, 12). Sob regimes fundamentalistas, a
tortura de lésbicas pode ser justificada nas bases de que o homem está fazendo seu
dever sagrado [16]. É também difícil atribuir a palavra “tortura” ao estupro
heterossexual quando esse é visto como normal. De fato, é forma essencial de tortura
usada contra lésbicas.
Estupro, espancamentos, humilhação, gravidez forçada, inflição de dor física e mental,
diagnóstico falso de doença mental, confinamento e detenção forçada e morte são evidentemente abusos que têm implicação imediata e a longo prazo para a lésbicas
afetadas. Ainda mais, a promoção de sadomasoquismo por Califa (1988), Weiss (2005)
e outras, contribui para o aumento da violência e aceitação social dela sob o lema da
“escolha livre.” Carole Moschetti (2006) nomeia esse conluio de “relativismo sexual.”
O relativismo sexual desculpa e invisibiliza a violência sexual contra mulher nas bases
de uma “naturalidade” e no “direito ao sexo dos homens”, ou na noção de que homens
têm inerentemente o direito de acesso sexual às mulheres. No contexto da tortura de
lésbicas, pode ser observada como a extrema violação de lésbicas por causa de sua
resistência à heterossexualidade e ao modelo do direito masculino ao sexo. O
sadomasoquismo por lésbicas complica a questão, mas dominação, uma parte integral
das práticas do direito masculino ao sexo, é o modelo para o sadomasoquismo lésbico.
As implicações de atos de violência para a saúde da matriz sexual a longo prazo são
também significantes. Quando uma sociedade permite ou autoriza a violência contra um
grupo de seus membros, há um impacto na saúde social. Tal violência gera medo e
desconfiança. Promove desconexões sociais. Faz apologia a violência. Pede por bodes
expiatórios e cria o que nós estamos vendo agora no mundo ocidental, um novo tipo de
fascismo: fascismo pós-moderno, escorregadio como uma enguia, multifacetado,
disperso, e quase sempre difícil de localizar com precisão. Num sentindo social, é como
a experiência de dor no corpo. É difícil de falar sobre, mesmo que muitas de nós sintam
a aflição e o desconforto. [17]
Deixe-me explicar uma apresentação feita numa conferência por Margot Weiss
(2005)[18]. Em seu trabalho Weiss discute a participação em um curso de BDSM [19]
(*N.T.: BDSM é um acrónimo para a expressão “Bondage, Disciplina, Dominação,
Submissão, Sadismo e Masoquismo. Fonte: Wikipedia) na Califórnia, no qual duas
pessoas – uma mulher e um homem – apresentaram “cenas” de BDSM, em voltas do
uso de uma “espiã.” A “espiã” – uma mulher – é penetrada com um cabo de martelo. O
uso de camisinha pareceu legitimizar essa ação nos olhos do apresentador. Um aparelho
de choque é usado na “espiã” – nesse ponto eu estava incomodada demais para ouvir o
terceiro elemento na “brincadeira de tortura.” Weiss disse especificamente que BDSM
não é tortura; de fato, ela descreveu como “consensual.” Ela seguiu dizendo que classes
de BDSM são “brincadeiras não-consentidas consentidas” e documentos da Anistia
Internacional são fontes úteis de ideias para criar cenas de interrogação. Depois, na
“brincadeira de tortura”, um dos participantes segura uma faca no pescoço da “espiã” e,
então, uma arma descarregada é a apontada para ela. As roupas são arrancadas do corpo
da “espiã”, que está deitada de bruços com as pernas abertas no chão. A “espiã” então
tenta chutar os “jogadores da tortura.” A “espiã” pode parar o “consentimento nãoconsentido”
usando a palavra “Rumsfeld.” Weiss questiona no fim de sua descrição da
“brincadeira de tortura”, “O que essa performance nos diz acerca dos fotógrafos de Abu
Ghraib?” Abu Gharaib, ela defende, é apenas uma cena, um espetáculo. E
sadomasoquismo serve como uma critica, já que perturba a forma como as pessoas
entendem o mundo. E mais além, que pelas cenas serem “paródias”, elas se tornam uma
re-encenação criativa sobre a falta de poder em relação a guerra. Mas a coisa sobre a
tortura é que você não sabe se estará viva no final do dia. Você não sabe quando irá
terminar. É mais do que apenas “falta de poder” é subjugação, degradação, abandono e
desumanização. Defender tais atos como “performativos” é uma instância de
negligência moral.Essa experiência fez com que eu fizesse perguntas difíceis a mim sobre cumplicidade,
sobre as formas sutis e não tão sutis pelas quais nós agimos de acordo a pressões
sociais. Quando está tudo bem fazer isso e quando não está? Graham, Rawlings e
Rigsby (1994) defendem que a relação social das mulheres com os homens sugere uma
forma social de Síndrome de Estocolmo, isto é, que a instituição da heterossexualidade
e os indivíduos que a mantêm – homens e apologistas do poder masculino – agem como
se mulheres fossem reféns dos homens. A cativa percebe esse comportamento dos
captores como indo de extrema violência a benevolência. A benevolência cria uma
crença de que há segurança em meio à violência e ao abuso. É esse aspecto que
considero interessante a luz das defesas de BDSM e sexualidade performativa no
feminismo pós-moderno. [20] A defesa de BDSM – inclusive em um cenário apenas
com mulheres – não é nada melhor que a defesa feita por pornógrafos, os clientes de
prostitutas e de quem faz apologia a torturadores.
Em relação ao “performativo” e à paródia, acho que esse deslize de responsabilidade, o
movimento de tirar o foco da vitima da tortura e colocar na audiência da tortura – sejam
participantes de um curso de BDSM ou aqueles que olham fotos de Abu Ghraib –
profundamente perturbador. A aceitação acadêmica – até mesmo a aparente aceitação
“feminista” – da tortura como um jogo é profundamente ofensiva. É apropriativa das
pessoas vivendo sob regimes totalitários que não têm o “luxo” de dizer “Não,” ou dizer
“Rumsfeld” como uma parodia. Esse movimento pós-moderno para uma análise
centrada na audiência e na performance terá terríveis consequências para todas as
vitimas de tortura, e adicionará uma deturpação significativa à tortura de lésbicas, que já
são abandonas como invisíveis e um grupo marginalizado que não precisa de
campanhas de direitos humanos.
Cumplicidade é o produto do medo. É como o fascismo aprofunda suas raízes. Isso me
faz lembrar de outros debates entre feministas. Temos de um lado teóricas/os
“feministas” pós-modernas defendendo o poder curativo o valor performativo da
tortura, enquanto do outro lado temos teóricos jurídicos – incluindo mulheres –
defendendo a legalização da tortura por que assim será mais segura. Isso se parece
muito com as alianças feitas acerca da prostituição (Sullivan 2004, 2006). Ambas são
instâncias libertárias e perigosas para o feminismo. Annie McCombs aponta que
“quando um homem é torturado até a morte em qualquer lugar, as pessoas veem isso
como perseguição politica; quando a mesma coisa acontece com uma mulher, as
mesmas pessoas enxergam sexo” (1985, 86). Quando representações de lésbicas são
vendidas como pornografia, um mesmo deslize ocorre.
D. A. Clarke defende que o uso de “pornô menina/menina” (2004, 198) como um
empreendimento comercial lucrativo é baseado no fato de que a atos privados serem
transformados em fantasias públicas – de outra forma inacessíveis aos homens – é
sexualmente excitante por que no processo lésbicas foram humilhadas. Como lésbicas,
elas são humilhadas quando o intimo é feito público; ou se são mulheres heterossexuais
posando como lésbicas, os atos sexuais são percebidos como humilhantes. Além disso,
ela defende que lésbicas, juntamente com os homens árabes nas imagens de tortura de
Abu Ghraib, representam a imagem ameaçadora do “Insolente Outro” (2004, 1998). O
eroticizado “quadro sugestivamente homossexual” é humilhantes para os prisioneiros de
Abu Ghraib. Eles são os corpos feminizados do inimigo. A pornografia que utiliza as
supostas imagens lésbicas, representam uma lésbica feminilizada, uma lésbica que foi
movida de volta para a categoria mulher, como descrita por Monique Wittig [21]. Através da pornografia, a lésbica volta para o controle patriarcal do quadro de mulheres
e homens naturalizados.
III. PORNOGRAFIA E TORTURA
Em uma sociedades onde grupos particulares são ”objetos de ódio”, o ódio é estendido a
imagens que rebaixam as pessoas desse grupo. É o que a pornografia faz para as
mulheres e lésbicas; A pornografia é violência sexualizada ou uma expressão de poder
para a gratificação dos violadores. A pornografia depende da erotização das diferenças
de poder, diferenças sistemáticas entre mulheres e homens ou entre classes de pessoas
(Kappeler 1986), ou que são ”contidas” pelas pessoas em uma relação baseada na
dominação e submissão. Como De Clarke observa, há uma ligação entre as imagens de
tortura em Abu Ghraib e a pornografia. Ela escreve:
O que ninguém quer admitir – na América, de qualquer maneira – é que essas imagens
não são apenas pornografia. Elas são pornografia, a essência crua da pornografia:
tirando fotos como troféus de pessoas sendo despidas, sexualmente humilhadas,
estupradas – então você pode se vangloriar disso depois. (Clarke 2004, 205)
Eu argumento que o Manual Lésbico de S/M Seguro (1988) é um manual de autoaniquilação,
na exterminação da cultura lésbica, ao exibir a pornografia como liberdade,
semelhantes aos regimes de política repressiva que falavam de libertação quando
queriam dizer morte. Para reforçar isso, me deixem citar outro extrato de Califa:
[Humilhação]. . . é o rebaixamento deliberado da passiva a uma erotizada, e ainda
estigmatizada, identidade. Isso pode incluir torná-la em: (1) um objeto ou máquina, (2)
um animal, (3) uma criança ou bebê, (4) um membro do sexo oposto, (5) um objeto
sexual ou genitália, (6) um servente ou escravo. A humilhação pode também envolver
trata-la como um membro de um grupo racial ou étnico, orientação sexual ou classe
socioeconômica que o superior simula {22} ressentir, opor-se, etc. (Califia 1988, 52)
Sadomasoquismo é uma forma de consumismo da experiência. De um modo similar ao
que a cultura ocidental apropriou-se das culturas de indígenas e povos não-ocidentais,
os praticantes de S/M estão se apropriando da experiência de povos oprimidos que
foram torturados por governos ditatoriais ou que foram escravos em regimes racistas ou
às lésbicas que foram torturadas por fundamentalistas e regimes militarizados. Como
Brennan (2003) indicou, a única coisa que todos os fundamentalistas concordam é a
importância da repressão da sexualidade das mulheres e da punição a qualquer quebra
do código heterossexual. {23} Os praticantes de S/M tornaram uma experiência
incontrolável de tortura em um jogo que pode ser parado (mas pessoas passando por
tortura real não têm a opção de dizer não). {24} A ”experiência de quase morte” de S/M
pode ser vista como apenas outro jogo consumista. O consumismo de bens materiais
alcançou seus limites, mas os praticantes de S/M não atentaram em simular a morte na
busca de mais uma emoção. S/M é um jogo de luxúria. É expropriação da
experiência. Afinal, é cheio de desprezo pelos outros.
Em uma sociedade onde a tortura pode ser descrita como ”performativa” ou como
”comunicação direta com prisioneiros iraquianos” {25} e BSDM pode ser apresentado
como uma série de categorias aos interessados em ”se curarem” {26} ou simplesmente
interessados na experiência de poder, estas são questões centrais da saúde social. Dado que são as marginalizadas, lésbicas inclusas, que são mais propensas a serem torturadas,
a questão da saúde social é um indicador importante do nível de justiça social em uma
sociedade.
Quando atos de tortura e atos de ‘’consentimento não consensual’’, como BDSM é
descrito por Weiss (2005), são colocados contra a realidade da tortura de lésbicas, que
afirmação é feita sobre a cultura contemporânea? Pornografia é um modo de ganhar
dinheiro com tortura, e é apropriação. Isso é apropriação das lésbicas que foram
torturadas porque eram lésbicas; de lésbicas que foram empurradas de edifícios no
Iraque, caindo para a morte, porque elas eram lésbicas; de lésbicas que foram
espancadas e estupradas porque eram lésbicas; de lésbicas que são açoitadas, têm as
mãos amputadas, que são forçadas a casamentos que não querem porque são lésbicas; e
de lésbicas na maioria dos países que são silenciadas porque são lésbicas. (Hawthorne
2004a; Hawthorne 2004b). {27}
Além disso, se Weiss (2005) pode argumentar (e a audiência dela pode se sentir
confortável aplaudindo seus argumentos) que atos idênticos à tortura – humilhação,
penetração violência com objetos, corte de roupas, bondage – são aceitáveis em uma
cena BDSM, e são considerados filosoficamente aceitáveis, onde o incerto desliza a um
começo e fim? Estas são questões complexas de moralidade. Eles se preocupam com
assuntos ao redor do consentimento, poder e falta de poder, justiça, e uma descrença na
justiça como central. O efeito da aceitação de atos de tortura é uma desmoralização da
cultura. Uma pessoa desmoralizada é uma que não pode se defender, que foi chutada
muitas vezes. O efeito não resulta da natureza de qualquer chute, mas do efeito
acumulado de múltiplos chutes, ‘’mil pequenos cortes’’ que levam a pessoa muito
desanimada a tomar uma posição. A desmoralização de uma vítima de tortura é
acumulativa e resultado de muitas humilhações, experiências dolorosas, isolação e atos
desumanos. Tal como na sociedade em que vivemos. Mesmo aquelas de nós que não
estão conscientes diariamente dos milhares de cortes são afetadas mesmo assim.
Aquelas que ignoram e recusam a dignidade lésbica são eventualmente afetadas
também. Entre feministas é argumentado que atos de racismo atormentam o tecido
social, criando a violência racial (seja contra diásporas e nativos da África, Ásia e do
Oriente Médio, ou contra povos indígenas do mundo colonizado). Por essa perspectiva,
a violência sexualizada contra mulheres – incluindo lésbicas – também dilacera o tecido
social.
A cada dia eles tiram os pontos de uma parte nova de mim. Há uma batida implacável.
As lembranças da arma. Meu cérebro estala a cada momento que penso nisso. A marca
da violência deles está aumentando. Uma voz aveludada me visita aleatoriamente.
Quando eu ouço os passos dele, o medo vem como vômito. Hoje me colocaram esticada
no chão. O rosto para baixo. Urinaram enchendo minhas narinas. Ele passeou
diminuindo em forma de espiral. Rindo do peso da espiral. Eu vou mostrar a você para
que é a espiral, ele disse. E pisou na minha mão esquerda. Livre-se da mão esquerda,
ele disse. Eu conheço você como jogos e linguagem. Irmã sinistra. Ele pisou na minha
mão direita. Rosie, abaixo os dedos, sua puta. Ele pisou e torceu seu pé pesadamente
nos meus dedos. Sem mais fingersmithing [pisar de dedos?] para você. Ele pisou e
torceu. Passeou e pisou e torceu de novo. Os ossos quebraram. Os dedos chatos e
inúteis, como ele queria. Ele sempre me deixava com dor. Ele sempre me deixava e eu
estava sacudindo em soluços. O horror pelo que ele fez. Meus dedos esmagados como galhos quebrados. Minhas mãos como tocos apodrecidos. No Irã, eu me lembro, eles
amputaram as mãos das lésbicas. (Hawthorne 2004d, 48)
IV. FUGINDO DA TORTURA: LÉSBICAS REFUGIADAS [28].
Na 8ª Conferência Internacional Interdisciplinar das Mulheres do Mundo em Kampala,
2002, eu estava falando sobre questões lésbicas em uma sessão no final da conferência.
Uma mulher se aproximou de mim e disse que existiam muitos problemas para as
lésbicas em Uganda e que conseguir reconhecimento como refugiadas era
particularmente difícil para elas. Esse parece ser o caso tantas vezes, que alguns autores
sugerem que há não evidência documentada de lésbicas (McGhee 2003; Magardie
2003).
Isso apesar do bem documentado caso das duas lésbicas já mencionadas – Christine e
Norah – que foram torturadas em 1999. Elas estavam com tanto medo pela sua
segurança, que fugiram para um país vizinho. Lá também a existência lésbica era
criminalizada e então elas não puderam pedir asilo. Elas “foram forçadas a passar vários
meses escondidas enquanto tentavam arrumar uma forma de conseguir proteção como
refugiadas” (Crimes de Ódio 2001, 5). Coisas desse tipo são o que diferem refugiadas
lésbicas de outros grupos perseguidos por razões políticas, religiosas ou étnicas.
“Tratamento” e “cura” retiram o elemento político.
Parece, então, que a evidência existe, mas não é vista. [29]
Alla Pitcherskaia da Rússia, que foi para os EUA depois de receber ameaças a sua
liberdade, devido a sua suposta “vadiagem” e seu ativismo, apresentou um pedido de
asilo. Inicialmente ele foi rejeitado por que “eles alegaram que o motivo de
institucionalização forçada era o desejo de “tratar” ou “curar” e não punir, logo não era
“perseguição” (Crimes de Ódio 2001, 19)
Monika Reinfelder nota que em 1990 o governo alemão deu asilo a uma lésbica iraniana
“que seria levada à pena de morte se fosse obrigada a voltar para o Irã” (1996, 18).
Há um problema na invisibilidade de lésbicas como refugiadas. Os casos não são
numerosos, mas eles existem e precisam ser feitos visíveis. Como Reinfelder comenta,
“O ódio a lésbicas na maioria dos países tem prevenido muitas lésbicas perseguidas de
pedirem o status de refugiadas por motivos se sua orientação sexual” (1996, 18). Muitas
lésbicas, então, pedem asilo por motivos de perseguição política. Mas isso pode resultar
numa impossibilidade de provar seus status de refugiadas, já que os piores abusos
ocorreram a elas por serem lésbicas. Se essas circunstâncias não podem ser reveladas, o
caso é enfraquecido. [30]
A ONU tem um objetivo declarado de proteger aquelas/es prejudicadas/os pela
discriminação, mas a realidade é de que quando orientação sexual vai a voto, alianças
prejudiciais são feitas entre Arábia Saudita, Irã, EUA e o Vaticano, apenas para
observar alguns países que já votaram juntos na ONU. A ONU tem uma série de
disposições que cobrem a discriminação na base de orientação sexual. Elas incluem o
Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos Direitos (PIDCP), a Organização
Internacional da Discriminação no Trabalho (emprego e ocupação) Convenção de 1958 (“111 da OIT”), e o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais
(PIDESC). A proteção, no entanto, não é garantida se o governo de um país não tiver
assinado os acordos, e muitos não assinaram. Não há disposições que especificamente
cubram a discriminação contra lésbicas, que geralmente sofrem pelo menos uma dupla
penalização, de sexualidade e de gênero, além da de classe, casta, etnia, discriminações
culturais, religiosas ou raciais.
Claire, uma lésbica refugiada de uma família poderosa na Uganda, agora vivendo no
Reino Unido, teme diariamente pela segurança de sua namorada que a ajudou a escapar
e depois a seguiu para o exilio. Claire não sabe o paradeiro de sua namorada e teme que
ela esteja morta ou que tenha sido empurrada para prostituição para pagar suas dividas
(Townley 2005).
Na época em que esse artigo estava para ser publicado, eu tinha acabado de ver em
Melbourne um novo filme, Unveiled (Fremde Haut), feito por Angelina Maccarone. É
um filme sobre uma lésbica iraniana procurando asilo na Alemanha. A personagem
principal, Fariba Tabrizi (interpretada por Jasmine Tabatabai), havia tido um
relacionamento no Irã com uma mulher casada que foi descoberta e deixada pelo
marido. Quando ela é entrevistada pelo policial alemão no aeroporto, ela não pode falar
sobre o que aconteceu com ela e apresentar suas verdadeiras razões para procurar asilo,
em parte pela presença de um tradutor iraniano. O filme mostra as dificuldades
extraordinárias encontradas por lésbicas e o que elas precisam fazer para sobreviver.
V. TORTURA, ESCRAVIDÃO, MULHERES, E A VERDADE.
Um “curioso dispositivo [foi]… moldado como uma pêra, feito de madeira, mas com
partes de metal e madeira pontiagudas fixadas nele. A legenda dizia que o torturador
colocou ele dentro da vagina de uma mulher e gradualmente enfiou dentro do corpo
dela até que quebrou” (du Bois 1991, 3).
Um artefato da história europeia, esse objeto é um lembrete do quão longo é o ódio
contra as mulheres e como as práticas acerca desse ódio, especialmente o ódio a
lésbicas, [31] têm persistido.
Na antiga Atenas e na Florença renascentista – dois períodos marcantes da história
ocidental de aparente florescimento da “liberdade” – tortura foi usada como meio de
conseguir evidência (du Bois 1991; Lapierre 2001). Tortura era colocada como a melhor
forma de extrair a verdade de testemunhas. Eu menciono esses exemplos, pois é
importante reconhecer como a violência contra a mulher e a tortura de mulheres estão
estruturadas na história da cultura ocidental, até mesmo – ou talvez especialmente – nos
seus supostos altos momentos de civilização. Na Inglaterra e França dos séculos
dezesseis e dezessete – outro aparente momento alto de civilização – mandados de
tortura foram emitidos. [32] Isso nos lembra que tortura não é algo que alguém lá fora,
diferente de “nós”, faz contra lésbicas. É um lembrete de que tortura aconteceu – e
continua a acontecer agora – ao redor do mundo em supostamente civilizados países. É
um lembrete de que aparentemente civilizados países são os treinadores dos torturadores
de países mergulhados em conflito, guerra e desassossego civil. É um lembrete que
mulheres – e logo, lésbicas – que pisam fora dos modos comportamentais patriarcais e
heterossexuais serão punidas. Lésbicas são a epitome do “outro” na tradição filosófica
ocidental, e o corpo lésbico é evidentemente um mundo de “alteridade”. Como tenho discutido em outros lugares (Hawthorne 2003), a não-existência e o apagamento de
lésbicas no discurso heterossexual é central para estrutura normativa de nossa
sociedade. Lésbicas compartilham com a tortura a negação de sua existência.
Não é atribuída muita importância à negação, mas qualquer pessoa que já tenho sido
ostracizada ou que tenha a experiência ser membra de um grupo desprezado, irá
testemunhar sobre a dor que acompanha tal negação de existência, ou negação de
experiência. A tortura aniquila a vítima. A prisioneira não pode determinar quando a
tortura vai parar, mesmo fornecendo respostas honestas e verdadeiras às perguntas feitas
a ela.
VI. O CORPO FORA DO CONTROLE.
“O corpo lembra de novo e de novo… e de novo… O corpo lembra e a dor se torna
parte dos nossos sonhos e dos nossos pesadelos, por que nós não temos uma válvula
para liberar eles de nenhuma outra forma. O corpo deseja ser um corpo de novo, ter
uma mente… o corpo deseja uma alma” (Rivera-Fuentes e Birke 2001, 657; itálico e
pontos do original).
Entre as dificuldades experienciadas por qualquer pessoa sujeitada à tortura, está a de
como transmitir a experiência de dor dentro do corpo. Elaine Scarry, em O Corpo com
Dor: O Fazer e Desfazer do Mundo (1985), defende que a dor em si mesma “é
linguagem destruindo” (1985, 19). Para uma lésbica isso é duplamente difícil, pois o
discurso heteronormativo da sociedade não está aberto para os enunciados de lésbicas. É
difícil o suficiente conseguir que as pessoas empatizem com e entendam uma pessoa de
outra cultura, outro regime político, um país desconhecido. Adicione a esse prospecto a
existência lésbica e a cultura lésbica, e a dificuldade da tarefa é ainda maior. Aqui eu
estou intencionalmente falando como se o/a leitor/a fosse heterossexual. Para a leitora
lésbica a experiência é provavelmente muito diferente.
Dentro do discurso heterossexual, a lésbica é a epitome do corpo desimpedido. O corpo
lésbico é o corpo fora do controle em um sentido heteropatriarcal; isto é, não é
governado pelas regras heteropatriarcais. Para o torturador, o corpo da prisioneira
também se torna um corpo fora do controle, e essa falta de controle é mostrada a cada
vez que dor é infligida.
“… toda onda após onda de eletricidade, nenhum controle… Eu estou perdendo
controle de mim mesma… Eu não posso parar a merda, o mijo, as lágrimas, os
babacas, os gritos.” (Rivera-Fuentes e Birke 2001, 665; itálico e pontos no original)
Elaine Scarry escreve sobre a falta de controle da prisioneira, e a forma pela qual
responsabilidade sobre isso é jogada de volta na prisioneira, para que a confissão “seja
entendida por outros, é um ato de auto traição.” (1985, 47)
Há um elemento aqui de se perguntar por que é que orientação sexual foi considerada
externa ao âmbito de Direitos Humanos da ONU, e por que lésbicas refugiadas precisam
lutar tanto para serem reconhecidas, ouvidas, e aceitas como refugiadas “genuínas”. É
sobre a auto traição do corpo. Se a existência lésbica é uma escolha, então segue o
argumento, então a lésbica pode facilmente escolher não ser lésbica. [33] O problema é
que o corpo dela a trai. O discurso dela como lésbica é tomando como uma auto traição. A situação é lida dessa forma, ao invés de ser lida como um problema do patriarcado e
da opressão. É uma instância do que Mary Daly nomeia “reversão”, na qual a vitima é
percebida como sendo a errada, e não o perpetrador.
O torturador, ao longo desse processo, dispensa toda a culpa, toda a responsabilidade
pela dor infligida na pessoa torturada. Sua consciência está limpa. É tudo culpa dela. Se
ela ao menos fizesse o que é melhor para ela, ela não teria que sofrer. De fato, ele a
ajudará estuprando ela, mostrando para ela o que um homem de verdade pode fazer para
ela, como o que ela precisa é “uma boa foda, de um homem de verdade” (RiveraFuentes
e Birke 2001, 656). Essa postura psicológica, sugiro, é a fonte da proliferação
da fantasia sexual masculina sobre a tortura de lésbicas.
Resumindo meu argumento: A prisioneira da tortura é considerada fora de controle; a
lésbica é considerada fora de controle. A lésbica torturada está, então, duplamente fora
de controle ( e numa sociedade na qual lésbicas são definidas como doentes mentais,
triplamente fora de controle). Já que ela está tão evidentemente fora de controle,
qualquer coisa que aconteça a ela é sua culpa, pois se ela escolhesse se comportar
diferentemente, ela não seria torturada. O torturador/ homem que fantasia/ pornografo é,
logo, capaz de abandonar qualquer senso de responsabilidade pelas suas ações e pelas
suas crenças acerca de lésbicas. Está no interesse dela que ele a torture, a estupre,
mostre a ela como é bom. Ou, como Elaine Scarry escreve, “Toda arma têm dois fins.
Ao converter a dor de outra pessoa em um poder seu, o torturador experiencia todo o
ocorrido exclusivamente do lado não-vulnerável da arma” (1985, 59).
VII. SE LÉSBICAS NÃO SÃO MULHERES, AS LÉSBICAS PODEM
REIVINDICAR OS DIREITOS HUMANOS?
Monique Wittig, em seu extraordinário ensaio ”Não se Nasce Mulher,” {34} escreve:
A lésbica é o único conceito que eu conheço que está além das categorias de sexo
(mulher e homem), porque o assunto designado (lésbica) não é uma mulher, nem
economicamente, politicamente ou ideologicamente. Pelo qual se faz uma mulher em
uma específica relação social para um homem, uma relação que nós previamente
chamamos servidão, uma relação que implica compromisso pessoal e físico, assim
como compromisso econômico (”residência forçada,” trabalho doméstico, deveres
conjugais, produção de crianças ilimitada, etc.), uma relação que as lésbicas escapam ao
recusar se tornarem ou continuarem heterossexuais. (Wittig 1992, 20)
Esse desafio confrontando o ”naturalismo” patriarcal é uma pista para a razão por trás
das lésbicas terem sido fortemente punidas no patriarcado. A própria existência de
lésbicas é um desafio aos direitos de propriedade dos homens como um grupo. Isso
desafia a suposição de que há algo natural sobre as categorias de mulheres e homens, e
isso sugere que há uma alternativa para essas categorias naturalizadas. Isso desafia o
domínio proprietorial da categoria das mulheres, de um modo que recorda o desafio
representado pelo Direito à Terra Nativa dos povos indígenas. Para as pessoas indígenas
a terra não é propriedade, ela é mantida por atividades responsáveis, muitas delas são
consideradas sagradas. A manutenção coletiva da terra não tira os povos indígenas dos
direitos humanos. De modo similar, lésbicas que querem viver vidas livres da servidão
heterossexual, livres da violência e da gentileza alternada pelo grupo dominante, não
abandonam seus direitos humanos, não desistem de um direito de serem respeitadas. De fato, essas lésbicas que usam isso como um modelo para suas vidas podem fornecer um
modelo de liberdade para todas as pessoas. Com isso eu quero dizer, a capacidade de se
mover livremente, amar quem quiser, rir e andar de modo que denote alegria.
Como FannyAnn Eddy, lésbica ativista assassinada em Sierra Leone, disse menos de
um ano antes de sua morte:
Silêncio cria vulnerabilidade. Vocês, membros da Comissão dos Direitos Humanos,
podem quebrar o silêncio. Vocês podem reconhecer que nós existimos, em toda a África
e em cada continente, e que as violações dos direitos humanos baseadas na orientação
sexual ou identidade de gênero são cometidas todos os dias. Vocês podem nos ajudar a
combater essas violações e alcançar nossos direitos e liberdades completas, em todas as
sociedades, incluindo minha amada Sierra Leone. (Eddy 2004).
VIII. COMO ESTA PESQUISA PODE AFETAR A POLÍTICA SOCIAL?
Porque as lésbicas têm necessidades distintas e porque a vida lésbica diária delas –
embora elas dividam alguns elementos com o grupo ”mulheres” e ”LGBT” – confrontam
problemas diferentes, é essencial que a política e pesquisa não resultem em mais
invisibilização de lésbicas. Lésbicas serão ”vistas” apenas se:
 pesquisas focadas nas lésbicas sejam realizadas;
 pesquisas nomeiem lésbicas mais do que tentem escondê-las atrás de termos
como ”identificadas-com-o-mesmo-sexo” ou ”minorias sexuais”;
 pesquisadores respeitem os nomes que as lésbicas escolheram usar no próprio
local de contexto delas;
 pesquisadores entrevistem lésbicas e peçam que elas identifiquem tratamento
que esteja conectado a sexualidade lésbica delas;
 pesquisadores e decisores políticos reconheçam que lésbicas são violadas por
pelo menos duas razões: como membras da classe mulheres (ou não-homens) e
como membras da classe não heterossexual;
 pesquisadores e decisores políticos reconheçam que lésbicas são violadas por
uma terceira razão: como membras da classe não-homem, não-mulher e nãoheterossexual,
e que são as lésbicas;
 pesquisadores e decisores políticos reconheçam que as lésbicas vêm de todos os
grupos étnicos, culturais, religiosos e sociais, e, pelas necessidades de segurança
pessoal, elas algumas vezes se escondem em grupos de homens, mulheres e
heterossexuais;
 lésbicas, que nunca foram o foco de qualquer campanha bem-financiada, são
tratadas do mesmo modo que qualquer grupo marginalizado e perseguido cuja
segurança pessoal e coletiva está em risco.X. CONCLUSÃO
Vivemos tempos perigosos. Eu acredito em um novo fascismo, fascismo pós moderno,
que está crescendo. Isso toma a forma de defesa da liberdade onde o poderoso que odeia
o discurso é protegido: corporações, exércitos, homens, ricos, e a elite. Isso defende
pornógrafos e cafetões, companhias farmacêuticas e equipes de reconstrução, soldados e
torturadores. Agora nós sabemos como essas políticas públicas funcionam. É através da
falsa benevolência (Graham et al. 1994); isso vem envolto na escolha; vem com a
palavra liberdade estampada. Nós precisamos inventar estratégias para expor esses
sistemas de injustiça pelo que eles são. Nós também precisamos inventar modos de
combater a desmoralização e aumentar a ”cola” [?] social. Comunidades indígenas na
Austrália (d´e Ishtar 2005) descobriram que o crescimento do poder social da mulher
fortaleceu o tecido social e reduziu a violência. Nos últimos trinta anos, como uma
feminista radical, eu estive ativa nas comunidades de mulheres que estão criando um
feminismo vibrante e culturas lésbicas e em grupos que trabalham para reduzir a
injustiça social. Contudo, em 2005 eu vi feministas e lésbicas apoiando a prática da
tortura porque isso era chamado BDSM, porque isso era categorizado como ”jogo” e
como ”consentimento não-consensual”. Isso em um país envolvido em abusos de poder
generalizados, incluindo tortura contra eles mesmos e outros povos. Se as feministas e
lésbicas se articulam pela ”violência consensual”, podemos esperar para ver o
crescimento da violência contra a mulher e indiferença pela tortura de lésbicas.
Se a violência contra as lésbicas é um assunto indiferente, e lésbicas continuam fora do
escopo da reforma da justiça social, então os direitos civis e políticos de todos
continuam em risco. As reformas políticas mais difíceis a fazer são, a longo prazo, as
mais importantes, porque elas nos dão uma pista sobre os limites de nosso estado de
preparação para viver uma existência ética. Se nós não estamos aptas a nos
preocuparmos com as vidas e bem estar das que são mais diferentes, então nós somos
incapazes de defender a justiça para todas – até no nível básico, que envolve liberdade
de associação, liberdade para amar.