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Sexo e Gênero, por Nicole-Claude Mathieu (DCF) – Incompleto

[digitado do Dicionario critido do Feminismo, por N.S.]

De modo geral, opomos o sexo, que é biológico, aogênero (gender, em inglês), que é social. Na biologia, diferenciação é aaquisição de propriedades funcionaisdiferentes por células semelhantes. A diferença é o resultado de umadiferenciação. O estudo das sociedades anumais, incluindo a dos nossos primosprimatas, revela uma grande variedade (indo do maior contraste à quasesimilitude) de “diferenças” – a assimetria entre femeas e machos –características sexuais secundarias e comportamentos que asseguram areprodução, a criação dos filhotes e a obtenção de alimento (cf., por exemplo,Hrdy, 1981).

A humanidade faz parte das espécies de reproduçãosexuada, por isso ela tem dois”sexos” anatomofisiológicos com uma única funçãode sua perpetuaçãoo f’sica: a produção de novos indivíduos. No entanto, suamarca distintiva, já detect’vel nos primatas superiores, é a perda do estro(coincidência entre excitação sexual e período fértil, nas fêmeas animais).Donde, para as mulheres, há a possibilidade do desejo e de relações sexuais semrisco de gravidez, mas também de gravidez sem desejo sexual (estupro, um atosocial, parece um ato peculiar ao homem).

As sociedades humanas, com uma notável monotonia,sobrevalorizam a diferenciação biológica, atribuindo aos dois sexos funçõesdiferentes (divididas, separadas e geralmente hierarquizadas) no corpo social como um todo. Elas lhe aplicam uma“gramática”: um gênero (um tipo) “feminino” é culturalmente imposto à fêmeapara que se torne uma mulher social, e um gênero “masculino” a macho, para quese torne um homem social. O gênero se manifesta materialmente em duas áreasfundamentais: 1) na organização social do trabalho de procriação, em que as capacidades reprodutivas das mulheressão transformadas e mais frequentemente exarcebadas por diversas intervençõessociais (Tabet, 1985/1998). Outros aspectos do gênero – diferenciação davestimenta, dos comportamentos e atitudes físicas e psicológicas, desigualdadede acesso aos recursos materiais (Tabet, 1979/1998) e mentais (Mathieu,1985b/1991) etc. – são marcas ou consequências dessa diferenciação socialelementar.

Assim, a extensão para a quase totalidade da experiência humana daquilo que é apenas uma diferenciação funcional em uma área leva a maioria dos sereshumanos a pensar em termos de diferença entreos sexos como uma divisão ontológica irredutível em que sexo e gênero coincideme cada um deles é exclusivo em relação ao outro. Mas a gramática do gênero,ideal e factual, ultrapassa por vezes a “evidência” biológica da bicategorização– aliás, ela própria problemática – conforme o demonstram a complexidade dosmecanismos de determinação do sexo (Peyre e Wiels, 1997) e os estadosintersexuais. Algumas sociedades, mas não as ocidentais modernas, e algunsfenômenos marginais das nossas sociedades modernas mostraram que definições desexo e gênero, assim como as fronteiras entre os sexos e/ou entre gêneros, nãosão tão claras.

 

Outros sexos e outros gêneros

 

O conceito de seco parece ser universal. Héritier(1996, 19ss) vê na própria diferença anatômica entre os sexos uma barreiraúltima do pensamento, inserindo a oposição entre o idêntico e o diferente naorigem dos sistemas conceituais binários. No entanto, as teorias sobre a origemda sua bipartição, sobre a função na procriação, ou sobre o sexo “real” de umbebe são muito diferentes, desde antes de Aristoteles até os biólogos modernos,de um lado a outro do planeta. Conforme a sociedade, ou sempre houve dois sexos(ordem divina ou ordem natural), ou primeiro um só (sugestivamente, porém, jásexuado ou andrógino, o que dá no mesmo), ou dois seres do mesmo sexo. Para aprocriação, ou só o homem ou só a mulher, ou a mulher com a ajuda de umespírito, é que contribui para a concepção da criança; às vezes o pai é tãonecessário quanto a mãe para continuar a produzir biologicamente a criança apóso nascimento etc. E às vezes a criança muda de sexo no momento do nascimento ounão pertence ao seu sexo aparente. No entanto, apesar da diversidade dasrepresentações de sexo e da sexualidade, as sociedades instauram concretamente(por meio de ritos, regras de casamento e prescrições diversas) uma diferença entre os sexos e sua“complementaridade”, geralmente hierárquica (Mathieu, 1991b).

Na maioria das sociedades, a bipartição do gênero deveestar calcada na bipartição do sexo, realizada sob forma normal e normatizadana heterossexualidade. O gênero “traduz” o sexo. Deve haver umaadequação entre gênero e sexo, com umaênfase neste último. Daí a necessidade, para os transexuais modernos, de mudarde sexo para estar em conformidade com o gênero vivido: o do sexo oposto. Ou,como entre os inuit, a necessidade de vestir e criar um bebê-menina como menino(travestismo), se a pessoa que reencarnou nela era do sexo masculino (evice-versa), o que cria uma espécie de “terceiro sexo”, pelo menos até ocasamento heterossexual, quando a criança retorna ao seu sexo/gênero“biológico”.

Mas uma segunda maneira de conceber a relação entresexo e gênero é admitir a sua divergência eventual dando prioridade ao gênero,ou seja, à bipartição social de funções e atitudes. O gênero pode ser umsímbolo do sexo e vice-versa. É uma lógica pragmática, mais “heterossocial” doque heterossexual, que permite uma relativa flexibilidade de comportamentos,incluindo-se o sexual. Assim, os travestis modernos (desprezados) ou os berdaches ameríndios (indivíduospassando oficialmente ao gênero oposto) não querem mudar de sexo, mas simmarcar sua preferência pelo outro gênero. O caso africano de casamentosinstitucionais entre homens ou entre mulheres, em que as normas de gênero(prerrogativas do “marido” e serviços da “esposa”) eram respeitadas, atestamque o casamento não se define principalmente pela função reprodutiva – como bemo havia observado Lévi-Strauss (1956) – mas garante um conjunto de direitos dosexo/gênero “homem” sobre o sexo/gênero “mulher”.

 

As diversas análises da relação entre sexo e gênero

 

Não obstante algumas obras de autores importantescomo Friedrich Engels (1884), Virginia Woolf (1929; 1938) ou Simone de Beauvoir(1949), a questão da construção social das diferenças entre os sexos permaneceue ainda é marginal nas Ciencias Humanas, como o demonstra a invisibilidade ou odesprezo que ainda atingem os estudos feministas no mundo acadêmicos, na Françamais do que em outros países ocidentais. Antes do ressurgimento dos movimentosfeministas no final dos anos 60, a História se interessava eventualmente poralgumas mulheres de poder e/ou célebres: A Psicologia e a Psicanálise, pelas“diferenças entre os sexos” na fronteira entre biologia e socialização(controvérsia natureza x educação); a Psicologia e a Sociologia, pelos “papeissexuais” esperados ou prescritos (o que representava um progresso). A Etnologiaconstatava a “complementaridade dos sexos” e se questionava, às vezes, acercade seus fundamentos (controvérsia natureza x cultura).

Note-se queo início dos estudos feministas, nos Estados Unidos como noutros países, não sefalava de “gênero”, mas de mulheresede sua invisibilidade pela sociedadee por uma ciência androcêntrica, de suaopressão/exploração pelos homens, edas condições de sua libertação. “Como mulheres, nós pensávamos ereivindicávamos”. Mas o que é uma mulher? Os debates entre tendênciasdentro do movimento “de mulheres” revelam diversas concepções subjacentes da relação entre sexo e gênero, algumas dasquais não diferem muito das duas concepções mencionadas anteriormente. Umatendência francesa, inspirada numa dada corrente da Psicanálise, está associadaao primeiro modo de pensamento, baseado no sexo: homens e mulheres sãodiferentes; o problema é que a nossa sociedade não permitiu que a mulher“chegasse” psicológica e socialmente à sua especificidade. Mas as opções maiscomuns estão no segundo modo de pensamento, que abre espaço para a ambiguidadeentre sexo e gênero: elas abordam as modalidadesde construção do gênero, concebido como elaboração cultural  da diferença sexual, analisando e denunciandoas desigualdades entre os sexos a fim de rearranjar equitativamente osconteúdos dos dois gêneros.Finalmente,uma terceira corrente conceitual da relação entre sexo e gênero (apresentada naFrança pelo coletivo da revista Questoes feministas, 1977 ~ 1980) considera queos sexos não são simples categorias bisociais, mas classes (no sentido marxista)constituídas por e na relação de poder dos homens sobre as mulheres, que é o próprio eixo da definição de gênero (ede sua primazia sobre o sexo, cf. Delphy, 1991b/2001): o gêneroconstrói o sexo. As tendências lésbicaspolíticas próximas desta corrente encaram a heterossexualidade não como umcomportamento sexual entre outros, mas como o sistema fundador da definição de“mulheres” por uma relação obrigatória de dependência dos homens. Quando Simonede Beauvoir disse “não se nasce mulher; torna-se mulher”, Monique Wittig(1980/2001) acrescentou: “[…] ‘mulher’ não tem sentido senão nos sistemas depensamento e nos sistemas econômicos heterossexuais. As Lésbicas não sãomulheres”.

As criticas feministas das ciências focaram, entreoutras, a naturalização da categoria “mulher”. Dado o amalgamabiofisiopsicológico que a definia e a ocultação de relações de poder que aconstituem, fazia-se necessário introduzir análises e, portanto, os termos,mostrando claramente o funcionamento social da categorização por sexo. Daí oadvento, na França, das noções de “sexosocial” (Mathieu 1971/1991a), de “sexagem” (Guillaumin,1978/1992) para descrever, em relação a certas formas de escravidão e servidão,um sistema de apropriação das mulheres (“sexismo”, mais restrito, se referiamais a atitudes), e da expressão, rapidamente generalizada aos paísesfrancófonos, “relaçõessociais de sexo”, correspondente àinglesa gender relations(relações degênero). Nos Estados Unidos, o termo gender,até então ocasionalmente utilizado em estudos psicológicos sobre a identidadepessoal (por exemplo, o trabalho de John Money e Stoller, 1968), ganha umaacepção sociológica (por exemplo, Oakley, 1972). E a antropóloga GayleRubin (1975/1999) propôs a expressão sex/gender systems para destacar ainterdependência sistêmica entre os regimes matrimoniais que oprimem asmulheres (nos quais elas não têm sobre si mesmas, sobre outras mulheres e sobreos homens, os “direitos” – privilegio de gênero – que estes têm sobre elas esobre a sua sexualidade) e os processos econômicos e políticos globais.

 

Desvios da noção de gênero

 

Desde os anos 80, nota-seuma tendência nos escritos em inglês, feministas ou não (e, mais recentemente,em francês) de um uso exclusivo do termo “gênero”. Isso acarreta vários problemas:

 

1)    O termo “gênero” isolado tende a ocultar que o “sexo”(a definição ideológica e prática que lhe é dada) funciona efetivamente comoparâmetro na variabilidade das relações sociais concretas e das elaboraçõessimbólicas. Quaisquer que sejam os modos de articulação entre sexo e gênero,detecta-se constantemente um funcionamento assimétrico do gênero (e de suastransgressões) em função do sexo. Sem dúvida há o gênero “homem-mulher”, mas nabase inferior da escala do gênero há fêmeas: sexo social “mulher” (Mathieu,1989/1991a). Como no caso dasubstituição do termo “raça” por “etnia”, deixar o sexo fora do campo do gênerode manter incontrolável o seu estatuto de realidade. (E de realidadeimutável, esquecendo-se de que a “biologia” e, em especial a fisiologia dafecundidade, é amplamente dependente do ambiente social).

2)    Evidentemente, as análises feministas mostram que ofuncionamento do gênero, incluindo as estruturas sociocognitivas (Hurtig ePichevin, 1991) é hierárquico. Mas otermo continua a ser usado pelas pessoas como uma bicategorização inofensiva. Falar degender studies é então bem menos comum(ou “particularista”) do quewomen’sstudies ou gay and lesbian studies,e parece mais tranquilo (ou “objetivo”) do que feminist studies. Issopermite estudar os aspectos simbólicos e ideológicos do masculino e dofeminino, sem referência à opressão do sexo feminino.

3)    Pode-se constatar que muitos escritos em inglês,inclusive feministas, utilizam gender emdiversos sentidos, e principalmente como um eufemismo para sexo (o que aumenta a confusão frequente entre sexo e sexualidade).Segundo Brigitte Lhomond (1997), o abandono de toda distinção entre sexo egênero conduz ao risco de naturalizar gênero.

 

4)    A partir dos anos 90, surge nos Estados Unidos umnovo desvio do gênero, representado em alguns espetáculos da cantora Madonna epromovido por ativistas e alguns universitários com o nome de movimento eteoria queer (queer: bizarro,ambíguo, insulto usado para designar homossexuais, reivindicado aqui paraafirmar e reunir todos oscomportamentos diferentes daquele da heterossexualidade normativa:homossexuais, lésbicas, bissexuais, transexuais, travestis etc.). Inspiradospor uma forma de pós-modernismo e reprovando os movimentos feministas, lésbicose gays anteriores e por terem centrado o seu foco sobre questões relativas asidentidades coletivas consituidas, os queer consideram que as cateogiras deoposição binaria (homens/mulheres, homo/heterossexual) são ultrapassadas oumesmo “essencialistas” (enquanto nós havíamos demonstrado que elas sãoconstruídas pela opressão!). Trata-seentão de ultrapassar o gênero (transgendering), embaralhando, desordenando,“perturbando” (Butler, 1990) as categorias de sexo e sexualidade. Eles seinteressam pelos sexos como uma “representação” quase teatral (performance),que cadaindivíduo poderiadesempenhar à sua maneira (ver os artigos críticos de F. Collin, 1994; Charest,1994; Mathieu, 1994). Os aspectos simbólicos, discursivos e paródicos do gênerosão privilegiados em detrimento da realidade material histórica das opressõessofridas pelas mulheres, e essa tendência encontra forte oposição entre algumaslésbicas e feministas, especialmente as feministas não-brancas americanas e asdo Terceiro Mundo