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as borboletas, ou despindo as políticas do amor – witchwind

10-Jan-15
um texto que critica a construção cultural do apaixonamento, colocando este em contexto de terrorismo sexual masculino.

tradução por tulipa nihil

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“Homens mentem sobre tudo. Ou, em outras palavras, eles fazem as coisas mais atrozes e repugnantes conosco, e chamam isso de outra forma, por exemplo, eles chamam isso de amor.
Quando eu era nova eu sempre me perguntava o que significa “estar apaixonada”. Estava estampado em todos os lugares como o máximo, a melhor coisa para uma mulher viver, aquilo que você deveria experimentar para estar completa. Estar apaixonada sempre foi descrito como um estado super especial que você atingiu, e como um raio, transcendeu você e mudou a forma como você se comportava. É muito assustador quando você pensa sobre isso. Eu nunca me apaixonei por alguém quando eu era jovem, e eu estava sempre me perguntando se eu era normal ou não. Eu reclamava com as pessoas: “eu nunca me apaixonei” e elas me diziam: “ah você vai ver, o amor virá um dia quando você menos esperar”. Me senti exatamente da mesma maneira quando me explicaram o que era Deus e a fé, e supostamente eu deveria transcender por estes sentimentos maravilhosos durante os rituais em grupo ou algo assim, só que eu nunca senti nada e tudo era completamente artificial e degradante, ter que fingir, e me sentir culpada por fingir, exatamente como em um relacionamento.
Eu me lembro de um menino se aproximando de mim quando eu tinha 9 anos ou mais, e ele queria “sair comigo”. Nós supostamente devíamos dar as mãos, eu me senti completamente estranha e falsa (qual era a diferença entre “estar com ele” e “não estar com ele”? A insipidez e a falta de naturalidade eram absurdamente horríveis), eu não senti nada, exceto desconfortável por ter que dar as mãos só para mostrar ao mundo que eu pertencia à ele, e eu não gostei, por que pensava que era errado pertencer à alguém, mas eu também me senti culpada por não sentir aquele estado especial de amor que eu deveria sentir, eu achei que isso significava que eu era sem coração.
De qualquer forma, alguns estupros / PNV / relacionamentos abusivos depois, enquanto eu ainda era adolescente, eu “me apaixonei”, ao menos era o que eu pensava. Tudo o que eu sabia é que aquilo era muito intenso, e então eu supus que TINHA que ser amor, FINALMENTE!
Agora, o que era exatamente o que eu senti? Minhas respostas à primeiramente ser “seduzida” (perseguida) e beijada (fisicamente invadida e mantida em cativeiro) por um homem – e ele querer me ver de novo – incluem:
– A mente em branco
– Sem saber o que dizer ou fazer
– Meu coração acelerado
– Sudorese
– Pensamentos obsessivos e invasivos sobre ele, ao ponto que me impediam de me concentrar em outras coisas ou experimentar outras coisas plenamente.
– Passar horas ou um longo tempo preparando tudo o que eu diria à eles antes de vê-lo
– Nervosismo
– Insônia
– As denominadas “borboletas” no estômago, isto é, tensões no estômago
– Ficar corada
– Verificando me no espelho e controlando a aparência do meu corpo mais obsessivamente do que o normal, e tendo mais medo do que o habitual de ser feia, ou não ser inteligente o suficiente, ou qualquer coisa
– Espera desesperada de sinais de contato de sua parte. Um e-mail, um texto, um telefonema… Verificando meu telefone e-mails obsessivamente, e sentindo meu coração quebrar quando nada viria.
– Um sentimento doloroso de perda, separação, vazio (isso é, me sentir vazia, inexistente sem a presença dele) e até sentir o meu coração rasgado por dentro. Uma sensação que se intensificava na sua ausência, ou se ele estivesse sadisticamente frio ou distante, ou depois do PNV ou invasão física.
– Um constante estado de melancolia profunda, variando em intensidade. É um estado em que você esta preso entre um nada lá fora e o horror da sua própria solidão / vazio interior (ou o que você é sugestionado a acreditar que é a solidão da alma) assim eu me impulsionaria melancolicamente para fora de mim, implorando silenciosamente para ligar pra ele (ou outra pessoa.)
– Encontrar coisas bonitas no homem, onde não haviam nenhuma.
Sim. Nada disso é amor. É apenas terror de ser abandonada, terror e ponto final. Ou o que podemos chamar de união traumática. No entanto, em todos os lugares essas respostas muito normais ao dano, negligencia e aprisionamento por homens, são descritas como amor, mesmo quando a mulher (dizem em “romances”) morre desse suposto amor. E isso não é apenas projeção, em todo caso o abuso e ameaça por homens nos relacionamentos é real, por causa do PNV, porque homens são nossos opressões e raptores e nós temos medo deles, por que a invasão física compulsória que os homens definem como sexo, o verdadeiro descaso, mente e manipula, etc.
Sinto em dizer, essa primeira experiencia foi extremamente dolorosa. O cara era mais ou menos 13 anos mais velho que eu, eu ainda era menor de idade, e meu “amor” por ele seria ainda mais forte, ele era muito fugaz, mantinha contato comigo só de vez em quando, quando precisava de mim para foder (estuprar). Eu estava muito grata por ele prestar atenção em mim, até mesmo para prestar atenção em seu comportamento abusivo, ou entender o que significava. Eu estava confusa por que ele só queria me ver de forma esporádica, em vez de começar um relacionamento, que é a forma que este amor supostamente deveria ser expresso. Se ele gostava de mim o suficiente para me “desejar”, por que ele não queria um relacionamento? Não saber se ele me “amava” ou não, me deixava constantemente ansiosa. A distancia emocional, o abandono e a constante espera por ele geraram uma dor aguda.
Passando um ano, eu realmente percebi que ele me usou e não tinha respeito por mim. Eu decidi desistir de esperar que ele se “apaixonasse” por mim (ou entrasse no relacionamento prometido). No instante que eu percebi isso, eu senti uma maravilhosa sensação de liberdade. Era como se todo o peso do mundo tivesse de repente desaparecido. Eu não estava mais amarrada, ligada a ele. Eu era independente. Eu não tenho que viver a minha vida inteira de acordo com ele, esperando e ansiando por ele. As ilusões se desfizeram e eu o vi apenas como um cara inútil. Eu disse a mim mesma: Nunca mais vou ser tão ingenua com um homem! Tive azar, eu pensei, eu deveria apenas ter escolhido um homem melhor, e sido mais cuidadosa.
O problema é que nos próximos cinco ou seis anos, essa situação manteve se repetindo, e repetindo, e repetindo. Todos os homens eu me liguei traumaticamente ou estavam apenas interessados em me usar para PNV (estupro) ou não tinham nenhum interesse em mim. Eu pensei que tinha algo de errado comigo, talvez eu não fosse bonita o suficiente, magra o suficiente, peituda o suficiente, descolada o suficiente, madura, sedutora, tanto faz. Eu não conseguia entender o que faltava. Eu não entendia por que eu acumulei tantos fracassos. Por que eles nunca ficavam? Por que eu tinha tanto azar no “amor”? Como alternativa, eu decidi que não iria me ligar traumaticamente a ninguém, então eu estaria plenamente consciente de que eu não queria o PNV e a invasão física (quando eu não estava ciente com os outros, por causa da ligação-traumática) e seria ainda mais humilhante. Eu ainda era muito grata pela atenção para afasta-los, então isso seria dolorosamente nojento, e eu me odiaria por perceber que eu estava me traindo.
Quando eu estava “atraída” eles não queriam, mas quando eu não queria, eles queriam. Não fazia nenhum sentido.
Eu vi que existia um padrão e tentei diversas coisas para evitar sentir dor. Eu decidi que iria parar de manter PNV com homens que eu não conhecia bem, ou não tinha começado um relacionamento oficialmente. O objetivo era adiar o PNV com homens que estavam “atraídos” por mim até que eu tivesse os conhecido bem e soubesse que eles não iriam me usar / abusar somente para manter PNV, e iriam querer um relacionamento sério, comprometido e igual comigo, baseado em descoberta mutua, amizade, etc. Pelo menos se eu “me apaixonasse” por eles, eu não teria me ferrado, pensei. Bom, adivinhem? Tudo o que aconteceu foi que eu continuei a manter relações traumáticas com homens, só que depois deles “se sentirem atraídos” por mim (me convidarem para bares, ou tanto faz) eles simplesmente iriam perder o interesse em mim por que eles não podiam obter de mim o que queriam, e iriam encontrar outra mulher que era mais compatível, mais cedo ou mais tarde. Isso foi extremamente doloroso. E não impediu alguns homens de me estuprarem, de qualquer maneira.
Isso foi tão confuso e doloroso e eu pensava tanto nisso, que comecei a fazer diversas perguntas aos outros, para ver o que eles tinham experienciado. As coisas que eu comecei a perceber, pouco a pouco, foram:
1 – Que a intensidade da união-traumática poderia diminuir depois de algum tempo mantendo o homem como um amigo ou conhecido.
2 – Que o “amor” em questão não tinha nada a ver com o caráter individual dos homens ou o fato de eu aprecia-los pelo que eles eram, mas tudo a ver com o que eles representavam para mim – geralmente uma figura de autoridade, sendo muito mais velhos que eu, ou tendo um status mais elevado. Isso atualmente me permitiu ve-los pelo que eles realmente eram (mentirosos estupradores e cuzões). Quanto mais distante e frios eram, ou se não tivessem decidido me invadir fisicamente, mais doloroso o “amor” (união traumática) seria.
3 – Além disso eu reconheci para mim mesma que esse sentimento de “amor” foi muito intenso para suportar e nunca me levou a lugar nenhum, exceto à desolação. Não era natural e era um sinal de que o relacionamento não era saudável. Presumi que deveria haver um problema na forma como eu amava, e se isso era realmente amor não poderia ser tão doloroso e ilusório. Então eu comecei a procurar por que isso aconteceu comigo, para quebrar o padrão de alguma forma. Comecei a prestar atenção em como isso funcionou e o que causou à mim.
4 – Eu decidi parar de procurar um “relacionamento amoroso” com um homem até que eu tivesse me resolvido, e também, começar a procurar homens com quem eu pudesse estar em igualdade na idade e no status, para prevenir a ligação-traumática. Eu disse a mim mesma “você não vai sair com um homem até saber se pode “amar” sem sentir tanta dor”. Se eu fosse sentir afeto (amor), isso teria que ser um sentimento de calma e serenidade, de preenchimento e felicidade, e não deveria haver nenhum medo, aversão à perda, ansiedade ou qualquer coisa assim em relação ao homem, caso contrário, isso significaria que não era amor, mas sim uma união traumática, e eu deveria ficar longe do cara, ou esperar espairecer até tomar uma decisão consciente. A sedução em si era errada, artificial e alienante, por que me tratava como algo à ser possuído, então se eu fosse ter um relacionamento físico com um homem, isso teria que ser depois de algum tempo de amizade e afeto, e viria “naturalmente”.
5 – Logo depois eu percebi que estar constantemente e secretamente esperando por um relacionamento amoroso em qualquer lugar que eu fosse era em si doloroso, por que sempre acabava com um sentimento de solidão, insatisfação, como se algo especial não estivesse acontecendo – em um estado de expectativa de acontecer algo externo à mim, invés de me concentrar em mim. Isso me fez inerentemente sozinha e vazia, como sendo apenas metade de uma pessoa, com a necessidade de ser preenchida por um homem (ou outra pessoa). Uma falta inerente e não um preenchimento. Como se eu não pudesse suportar estar comigo mesma, eu tinha que desaparecer em um homem / relacionamento para “existir” – isso é um ódio extremo às mulheres e uma aniquilação da individualidade. Esperando para depender dele, e esperar por ele para receber amor, e é claro, isso nunca viria. Eu finalmente vi a reversão total e a mentira em toda essa merda. Eu percebi que eu tinha que desistir do intenso desejo de estar em um relacionamento e assim não me sentir constantemente alienada. Eu me lembro muito bem de marcar essa decisão e sentir um senso de liberdade e felicidade em estar comigo mesma depois disso. Pareceu como uma reconciliação.
A partir daí as coisas se desdobraram muito rápido. Isso foi quando eu me identifiquei seriamente com o feminismo, quando eu percebi que PNV, invasão física sexualizada das mulheres, e controle do nosso sistema reprodutor era a forma que os homens nos oprimem e nos prejudicam. Que PNV é inerentemente um prejudicial, humilhante e nós não deveríamos ser penetradas. E quando eu entendi a estrutura geral da violência masculina e do patriarcado, meu mundo inteiro desmoronou.
Bem, adivinhem? Os homens não estavam interessados em mim além de tudo. Por que eu sempre me mantinha fora de qualquer tipo de “sedução” antes de conhecer bem o cara, eles simplesmente se afastavam de mim rapidamente, antes mesmo de eu poder conhece-los de fato. Har har. Isso abriu meus olhos. Isso me fez ver que homens não estavam interessados em um relacionamento igual a pesar de tudo com mulheres. Nenhum deles. Não existiam “caras legais” ou exceções. Eles não estavam interessados em mim, nem mesmo como amigos, por que não podiam fazer comigo o que eles queriam. Tudo o que eles queriam era poder me usar como um buraco para manter PNV e como uma propriedade deles, por que essa era a minha função como mulher num mundo de homens, e se eu não poderia cumprir essa função, eu não era de interesse deles.
E depois de estipular algumas regras finais para interagir com homens, para me proteger de seu repugnante ódio às mulheres (abertura completa para o feminismo, sem nenhum sinal de misoginia, capaz de conversar sobre isso sem entrar em argumentos defensivos ou me fazer sentir estranha de qualquer maneira), homens simplesmente desapareceram da minha vida. Nenhum deles nunca preencheu o critério, mesmo que minhas regras não fossem radicais, mas individualistas.
Eu vi que por mais esforço individual que eu pusesse em uma relação com um homem, mesmo sem PNV ou “sedução”, seria sempre desigual, por que eles são nossos opressores e raptores, e eles se alimentam da energia que gastamos tentando muda-los. Nunca haveria proteção completa de uniões-traumáticas com eles, ou do medo da sua violência, ou de ser afastada de mim mesma. Não importa o que eles fazem individualmente para serem caras legais ou não, isso é o que eles são e representam como a classe masculina. Até hoje, se um homem é legal comigo, ou apenas sorri, eu ainda posso sentir esta “atração” e gratidão que eu sentia antes e tentei me livrar, o que simplesmente significa que homens ainda são nossos raptores e não existe uma maneira que possamos completamente fugir da síndrome de Estocolmo enquanto eles nos mantem em cativeiro. Que é precisamente por isso que eu sei que tenho que ficar longe deles o máximo que puder.
Então sim, o final do processo de desmascarar as mentiras dos homens sobre amor e relacionamentos foi o início do separatismo dos homens e o inicio do feminismo radical!”

Traduzido de: http://witchwind.wordpress.com/2013/05/08/the-butterflies-or-unpeeling-the-politics-of-love-part-i/

 

Definindo Sororidade

10-Jan-15
Para começar de forma objetiva, sororidade é a aliança feminista entre mulheres. A palavra sororidade não existe na língua portuguesa, entretanto, uma palavra muito semelhante, fraternidade, pode ser encontrada em qualquer dicionário descrita como: 1 Solidariedade de irmãos. 2 Harmonia entre os homens. Ambas as palavras vem do latim, sendo sóror irmãs e frater irmãos. Mas, na nossa linguagem usual, ficamos apenas com a versão masculina do termo, afinal de contas, a sociedade patriarcal nos ensina que relações harmoniosas somente são possíveis de se concretizarem entre homens.

Sororidade é uma dimensão ética, política e prática do feminismo contemporâneo. É uma experiência subjetiva entre mulheres na busca por relações positivas e saudáveis, na construção de alianças existencial e política com outras mulheres, para contribuir com a eliminação social de todas as formas de opressão e ao apoio mútuo para alcançar o empoderamento vital de cada mulher. A sororidade é a consciência crítica sobre a misoginia e é o esforço tanto pessoal quanto coletivo de destruir a mentalidade e a cultura misógina, enquanto transforma as relações de solidariedade entre as mulheres.

Como a misoginia é uma das faces do machismo, ao desmontá-la através da sororidade, afetamos a percepção do “homem” como centro do universo e da masculinidade, que devido ao empoderamento feminino, perdem seu valor. O “homem” desaparece quando a visão de mundo deixa de ser antropocêntrica e cada mulher passa a ver o mundo a partir de si mesma e de seu gênero, e de maneira crítica, recusa a supremacia e a centralidade do homem como símbolo universal da humanidade.

A identificação entre mulheres como semelhantes aumenta conforme maiores são as coincidências de condições de idade, geração, sexualidade, classe social, etnia, formação cultural, ideologia, atuação política, religiosidade, nacionalidade, etc. Semelhanças entre essas condições facilitam a identificação de forma positiva entre mulheres por pertencerem e por se identificarem com o gênero feminino. A sororidade possibilita criar mecanismos de defesa à agressões e à qualquer forma de violência, propaga o feminismo e combate o antifeminismo (forma fundamentalista da misoginia política), além de valorizar a sexualidade feminina que têm sido tão desvalorizada para eliminá-la como suporte político das mulheres.

O enfretamento misógino entre mulheres constitui a inimizade patriarcal que atua criando a rivalidade e impedindo que mulheres se identifiquem umas com as outras. Os mecanismos patriarcais fazem com que essas mulheres tenham a esperança de serem eleitas e assim conquistarem poder. Elas competem entre si com a falsa esperança de serem eleitas entre “as outras”, ocupar posições, formando muitas vezes alianças com os homens, fomentando uma escala hierárquica entre si. Cada mulher se compara competitivamente com a outra e se coloca como superior ou inferior em um eixo hierárquico de dominação e opressão, inferioridade e superioridade, mediado ainda pelas fobias classistas, racistas, sexistas e ainda lesbofóbicas e transfóbicas. Dessa forma se reproduzem entre as mulheres, de maneira acrítica, formas autoritárias e repressivas. Entre elas está o controle do conhecimento, das maneiras de fazer, o uso indevido de prestígio, a fama, o monopólio de recursos e oportunidades, permitindo a algumas mulheres avançar de forma injusta sobre as outras.

É imprescindível ter a consciência de que as mulheres são utilizadas para reproduzir a opressão de gênero entre elas, aniquilando o valor individual e coletivo. A política patriarcal usa as próprias mulheres para prejudicar outras mulheres, prometendo a elas a aceitação, a valorização e a ascensão. Para combater a crueldade e o equívoco da inimizade, o feminismo precisa fortalecer e promover a sororidade, eliminar a misoginia pessoal e coletiva, não reproduzir formas de opressão entre mulheres como a discriminação, a violência e a exploração.

As redes genealógicas de apoio entre mulheres têm se consolidado principalmente entre parentes, companheiras e amigas. Se remontam a várias gerações de parentesco entre mulheres e também de movimentos feministas do passado. As mulheres não teriam sobrevivido em condições tão opressivas se não tivessem contado com esses apoios vitais. O que seria de nós mulheres sem nossas mães, filhas, avós? O que seria de nós sem nossas companheiras e amigas? O que seria de nós sem nossas ancestrais?

A sororidade é um princípio de relação entre todas as mulheres e um recurso para enfrentar os conflitos que podem surgir entre elas, eliminando a misoginia. Ela possibilita estabelecer vínculos entre civis e governantes, militantes de partidos, sindicatos, mulheres cis e mulheres trans, indígenas e mulheres de outras culturas, jovens e idosas, assim como camponesas, operárias, urbanas, heterossexuais e lésbicas, intelectuais e mulheres com baixa escolaridade, entre dirigentes e mulheres “de base”, teóricas e ativistas. Ao não tratar as diferenças de forma preconceituosa, convertendo-as em rejeição e obstáculo, é possível que surjam semelhanças identitárias e empatia entre as mulheres. Reconhecendo sempre que as mulheres semelhantes também são diferentes e que a diferença é um capital e um poder. É preciso superar a exigência de sermos idênticas.

A sororidade busca e, ao mesmo tempo já é, a concretude de formas de empoderamento das mulheres. Plantar relações de sororidade significa a vontade de apoiar para empoderar. Por isso, a sororidade pode dar-se entre desconhecidas, parentes, colegas, companheiras e amigas. Não é preciso ser amiga para vincular-se de forma solidária. Mesmo entre aquelas mulheres que têm conflitos pode-se viver em sororidade. Sendo assim, nenhuma tratará de excluir, destruir ou causar dano a outra.

O sentido da sororidade é propiciar melhores condições de vida para as mulheres e derrubar muros patriarcais. A prática feminista da sororidade permite às mulheres serem coerentes e potencializa a cultura feminista.

 

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Marcela Lagarde y de los Ríos. Sororidad. In: GAMBA, Susana Beatriz. Diccionario de estúdios de género y feminismos. Buenos Aires: 2009.
Texto adaptado por Maiara Moreira 

Liberais, Libertarianismo e o Estabelecimento das Artes Liberais – Suzanne Kappeler

10-Jan-15
Tem havido uma mudança muit interessante no uso das palavras liberal e libertário nas políticas sexuais mais recentes. Na minha experiência, uma mudança no uso das palavras, nomes e rótulos nunca é algo insignificante. Considero significativo, por exemplo, que no uso popular e na mídia, nosso movimento tenha se tornado “o movimento de mulheres” ou “feminismo”, quando originalmente nós o havíamos chamado de “movimento de libertação das mulheres”. E essa mudança de nome acompanha uma tentativa de obliterar nossas metas políticas, ou seja, a libertação das mulheres da opressão, de forma que agora os termos “mulher” e “feminista” aparentemente se tornaram intercanbiáveis e substituíram o termo “libertadora das mulheres”[women’s libber].

Enquanto os termos “liberal”, “libertário” e “libertino” todos têm algo a ver com “liberdade”, eles adquiriram conotações diferentes e obviamente possuem historias diferentes. Enquanto que um libertino era, originalmente, um livre pensador sobre religião, o tal livre-pensar do Marquês de Sade deu a essa palavra um novo significado, que o dicionário de Oxford lista como um (homem) promíscuo. Similarmente, o termo libertário, definido por esse dicionário como “um crenate na liberdade de escolha (oposto de determinista); um advogado da liberdade”, adquiriu uma demanda excessiva por liberdade, que pode ser levado em conta para a mudança na política sexual contemporânea, de sexualidade libertária para sexualidade liberal: denotando um comprometimento mais moderado para com a liberdade. Em contraste, o termo “liberal” ainda tem certa sonoridade positiva, de generosidade, de mente-aberta, ausência de preconceitos e devoção a reformas democráticas. Poucas se lembram o significado que o dicionário dá para o primeiro e original significado de “liberal”: “digno de um cavalheiro”. O dicionário coloca que esse uso é raro hoje, exceto na educação liberal, que então significa uma educação digna de cavalheiros que é especificada como “direcionada à expansão dos horizontes mentais, não profissionais nem técnicos” e também “não rigoroso nem literal” (minha ênfase).

Na cultura política radical, “liberal” – ou geralmente “liberalismo fracote e impreciso” – tem a conotação negativa de “falta de rigor” e é apoiado na modinha do uso de metáforas que se alastrou por meio dos intelectuais liberais e políticos liberais. Como feministas, seria bom lembrarmos e frisarmos o fato de que a história do liberalismo, do libertarianismo e da libertinagem é a história dos homens advogando liberdade e licenças para outros homens – liberdades que, para serem exercidas, os direitos e liberdades de mulheres têm sido sacrificados rotineira e habitualmente. Assim como qualquer coisa dentro ad história dos homens e das ideias, o liberalismo contém e esconde um problema sobre políticas sexuais.

Mas existe mais na política liberal que concerne as feministas do que a “promiscuidade” [licentiousness] do liberalismo. Tradicionalmente, o liberalismo político tem se viso e tem defendido os interesses “do indivíduo” como antagônicos aos do Estado. Assim sendo, é uma concepção profundamente masculinista, edípica em sua concepção, situada no coração do pensamento ocidental, que estrutura o Eu [self] como oposto a uma autoridade maior: [o Eu sendo confrontado não apenas pelo poder de seu pai mas também pelo poder absoluto de deuses que teriam determinado seu destino]. […] em outras palavras, é um símbolo perfeito do estado de uma criança ainda não totalmente socializada que ainda não amadureceu para compreender e aceitar o fato de que há uma realidade (e não um cuidador) que coloca os limites de seu egoísmo infantil. […]

A teoria política masculina possui traços fortes dessa memória que o homem tem da sua relação crianca-pai. De um lado, o conservadorismo ou filosofia de direita assume o papel paternalista de “pais da nação” […] Do outro, o liberalismo defende o interesse dessas crianças da nação, no modelo do menino adolescente que tenta se livrar do controle parental e reduzir aquela autoridade em favor de uma liberdade pessoal aumentada e da auto-determinação. Ambas essas filosofias aceitam o modelo pai-filhos como um modelo apropriado de relação do individio com a sociedade e o governo.

No contexto dos tais “liberais sexuais”, ou libertários sexuais, temos o mesmo esquema de um indivíduo reivindicando uma liberdade pessoal maior para fora de uma autoridade social, moral ou legal. Nos anos 60, isso era posto exclusivamente em termos heterossexuais (masculinos), como maior permissividade em resposta a um passado de constrangimento moral e religioso. Nos anos 80, no Reino Unido, os figurões da liberdade sexual são predominantemente teóricos da sexualidade gay (masculina), que pediam uma maior tolerância sobre as formas minoritárias de praticas sexuais e orientações. O significante aqui é que ambos compartilham um conceito comum de autoridade social no qual a permissão é buscada e a tolerância é pedida. No próprio ato de pedir ou demandar uma maior liberdade pessoal (e sexual), essa autoridade está sendo reconhecida e assim validada. Isso pode sim ser apenas um sintoma da realpolitik, quer dizer, o reconhecimento de que a realidade do poder do estado sobre a sexualidade em uma campanha pela mudança na legislação (por exemplo, a descriminalizacao da homossexualidade masculina e a redução da idade de consentimento para homossexuais homens). No entanto, estou preocupada com o discurso teórico de sexualidade cuja polemica é direcionada não tanto contra o Estado e a legislação, ou contra a moral sexual conservadora aumentando, mas contra as políticas feministas e nossa crítica da sexualidade masculina. [Nesse discurso, baseado pesadamente em Foucault, o conceito de transgressão é central para a teorização do desejo e do prazer, sendo tão central quanto o “tabu” tem sido para os libertários sexuais dos anos 60: a reflexão da preocupaçãoo das autoridades e da lei, e o desejo adolescente […] de se rebelar contr o antigo e quebrar o segundo.]

A teoria política feminista constitui uma intervenção radical nas concepções masculinas do que é politico, baseadas no principio fundamental de que o pessoal é político e, em contraste com o que convencionalmente foi o político (isto é, impessoal), não apenas a relação do indivíduo com o estado que constitui o domínio do politico, mas também o domínio do interpessoal.

“O sexo heterossexual com penetração presume e requere uma sociedade e pelo menos duas pessoas antes que possa ocorrer; e o Estado se preocupa com a natureza daquela sociedade – como ela é construída, que será hierárquica e que será dominada pelo sexo masculino”. (Dworkin, 1987)

Do ponto de vista da política feminista, a relação entre mulheres e homens, e a relação entre mulheres e o Estado, são parte de uma situação em comum na política patriarcal, onde qualquer questão sobre o “individual”, caso se refira a uma mulher, é mediada pela sua relação de gênero para com os homens, e onde a relação do estado com as mulheres exprime a coletividade dos interesses dos homens. Enquanto que, para o “indivíduo” homem, há por um lado sua relação com o Estado que é pública e social, e de outro uma relação com as mulheres que é considerada parte de sua privacidade. A política feminista, baseada na experiência e ponto de vista das mulheres, reconhece que uma relação de dois é uma “sociedade”, é pública, e é regulada pelo Estado. Não como isenta de liberade pessoal mas como uma estruturação social do que é o pessoal.

Mas o reconhecimento que a teoria feminista teve de que o pessoal é politico também traz os conceitos de responsabilidade (social) para com a pessoa, que é entendida como totalmente emancipada, socializada, e um membro adulto de uma sociedade igualitária. [[As fronteiras da liberdade pessoal são vistas como derivadas de um interesse igual, da parte do indivíduo, na existência de de uma sociedade como em sua própria existência como pessoa individual??]]. O liberalismo masculino, em contraste, vê todos os indivíduos como integrantes daquela sociedade imaginária cuja intenção é restringir a liberdade ou licença do indivíduo (do sexo masculino). Em outras palavras, percebe cada outra pessoa como um inimigo em potencial. Frisar o feminismo é um desejo fundamental para viver NA sociedade (não apesar dela, não contra ela, não em competição com ela). É viver a vida como membra da coletividade humana e maximizar os benefícios mútuos da comunidade, da amizade, das relações, do trabalho, da cooperação e da comunicação, é ganhar e contribuir por meio do compartilhamento, em lugar do acúmulo privado no qual você tira dos outros tudo o que puder, isto é, publicamente.

O erro fundamental no coração do liberalismo sexual é obviamente o “sexual” construído como dimensão do indivíduo l: o indivíduo querendo mais liberdade sexual, ou mais liberdade de expressão. Não há espaço nessa concepção para o OUTRO sexual, a companheira sexual ou, da maneira que normalmente se coloca no discurso libertário, o objeto sexual. A liberdade que está sendo demandada desse Estado paternal ou da autoridade social é, na verdade, a licença para continuar a encarar o outro COMO um objeto sexual, veículo do prazer sexual de um indivíduo, e não ter que reconhecer esse outro como também um indivíduo que é sujeito.Apesar das questões do consentimento sexual – isto é, o consentimento do outro – estarem tendo que ser caladas devido a emancipação  técnica e legal das pessoas negras da subjugação colonial, das mulheres para longe da custódia masculina, conceitualmente a emancipação do outro ainda não respingou nas estruturas ideológicas do pensamento ocidental, estruturas essas criadas por senhores de escravos, donos de mulheres e imperialistas coloniais.

O sexual, ou a sexualidade, continua a ser construída como algo pertencente ao indivíduo – sexualidade em vez de relaçoes sexuais ou políticas sexuais – e as teorias dos libertários sexuais contemporâneos, no Reino Unido, estão significativamente formuladas em torno da “escolha de objeto”. Em uma contribuição para um volume sobre Diversidade Sexual, significativamente entitulado “Sobre a banalidade do gênero”, Simon Watney argumenta diretamente por uma redefinição do conceito de diferença sexual de maneira que não mais significaria a diferença macho/fêmea, mas uma diferença em sexualidade masculinabaseada em escolha de objeto. Ele dispensa a noção da diversidade sexual que “envolve uma distinção entre sexos que é tomada como pressuposta”, em favor “do outro grande pilar da diversidade sexual – aquele que Freud explora pelo nome de escolha-objetal, e para a qual Foucault dá o nome ‘sexualidade’” (Simon Watney, 1989). Como exemplo, podemos ver a significancia dessa mudança recente pois no Reino Unido temos tendido a substituir “gênero” por “diferença sexual” (ou seja, o que antes era “raça, classe e gênero” se tornou “raça, classe e diversidade sexual”). As políticas sexuais do gênero abrem caminhos para uma política do sexo que gira em torno da escolha-objetal; a diversidade sexual colocada como raiz do gênero abre caminho para a diferença na sexualidade do gênero masculino; e a opressão das mulheres [entendidas nesse texto como sexo feminino], central para a análise do gênero, é substituída pelo que a visão de Watney chamou de “a verdadeira opressão sexual”, isto é, a opressão sobre os gays (Watney, 1986).

Watney está preocupado demais com “a identificação de um certo indivíduo”, “a questão do desejo” para se incomodar com um conceito de classe ou um de gênero, ambos os quais compartilham, na visão dele, “o mesmo sentido de um único fator determinante de tudo”. Ou, como poderíamos notar, ambos descrevem coletividades ou fatores da coletividade em vez de “um dado indivíduo”, grupos sociais em relação de poder e luta com outros grupo sociais em vez de um indivíduo sujeito em relação a sua escolha pessoal de objeto.

O que é mascarado como uma afronta (masculina) à heterossexualidade compulsória é, na verdade, a demanda pelo aumento de possibilidade de escolha da parte do sujeito sexual, o indivíduo, o homem, a escolha advinda de um horizonte ampliado de objetos sexuais: não apenas objetos-mulheres, mas objetos-homens e objetos-crianças. Juntamente com o consumismo liberal da escolha-objetal vem a ampliação da escolha das praticas sexuais: sádicas, masoquistas, fetichistas; uma maior gama de formas de relação diferente do modelo monogamico heterossexual; as casas de banho, o turismo sexual internacional e a prostituição (com sua variedade de escolha-objetal), e entretenimento sexual ou pornográfico, também em todas as variações de escolha objetal: heterossexual, homossexual, lésbica; com os subgeneros pornográficos principalmente heterossexuais como crianças, deficientes, gravidas, idosos que já estão nas prateleiras (Harold Offerdal, 1986; Mazer Mahmood, 1986). E junto a tudo isso, vem o convite liberal a que todos, incluindo mulheres, crianças e outras minorias a compartilhar desse banquete sexual, para se tornarem consumidores do mercado sexual – ao menos em teoria.

Na prática, essa generosidade liberal, essa mente-aberta e reforma democrática anti-preconceito de estender o que é digno de um cavalheiro também para mulheres e negros é liberal de um jeito diferente, também: não rigoso, nem literal. Dado que esse prazer tão rigorosamente estruturado em torno da escolha-objetal, onde o objeto escolhido é um sujeito desqualificado, não poderia existir em uma democracia de iguais onde todos estivessem dignificados a serem um sujeito e um consumidor: não haveria mais ninguém para ser escolhido e consumido como objeto.

O que permite esse discurso sobre escolha objetal e desejo é muito mais do que apenas as políticas de liberação gay. Sào as estruturas ortodoxas do pensamento patriarcal ocidental, centrado em torno do indivíduo e a liberdade dele [frisa-se o masculino]. A mesma estrutura é visível no nosso consumismo e emrpeendedorismo culturais e econômicos, e obviamente no que é muito adequadamente chamado de “artes liberais”.É o estabelecimento das artes que conduz de maneira mais vigorosa a defesa do “principio” da liberdade de expressão que da a licença para a gigantesca indústria e cultura da pornografia, jamais se referindo à forma industrializada e comercial de expressão que defende. Liberdade de expressão, como todos os direitos humanos formulados por nacoes e nacoes unidas, concerne os direitos do indivíduo (do sexo masculino) em sua relação com o Estado e o defende contra as tentativas do Estado de restringir as liberdades pessoais. A liberdade de expressão não defende os direitos de um indivíduo sobre outro indivíduo, como as mulheres do mundo todo bem sabem. E enquanto o primeiro é protegido pela lei da nação no caso dos homens, a lei, como vimos, também regula os “direitos” dos homens à “privacidade”, OU SEJA, ÀS MULHERES, e assim ataca diretamente a liberdade e os direitos das próprias mulheres (Dworkin, 1987; MacKinnon, 1983).

A liberdade de expressão defendida pela instituição das artes, e isso é um FATO, e de outros defensores da pornografia, é a liberdade de produzir e de mercantilizar a expressão industrialmente e comercialmente, não o direito de um indivíduo de possuir e expressar visões e opiniões e de buscar informações. Na verdade, a produção capitalista da “expressão” pode ser entendida como uma militante direta contra o direito individual de expressar e buscar diversidade de informações e opiniões. No Reino Unido, nesse momento, o próprio governo está lançando um ataque na liberdade de expressão e acesso a informação, por uma clausula proposta, a clausula 28, que proibiria o governo local de

a) promover  homossexualidade ou publicar material que a promova

b) promover o aprendizado em qualquer escola publica da aceitabilidade da homossexualidade como uma suposta relação familiar com a publicação de tais matériais ou outras

c) dar assistência financeira a qualquer pessoa que se insira nos parágrafos a e b.

[O que é interessante nesse contexto é que o governo propõe não interferir na promoção da homossexualidade, seja sendo ela uma pretensa família ou uma escolha objetal superior, muito menos a promoção do ódio do (macho) heterossexual], a aceitabilidade da violência contra a mulher, e o pretenso prazer das mulheres nessa violência, onde essa promoção é um negócio comercialmente viável, isto é, pornografia, de maneira que não necessita subsídios. O que parece simplesmente uma preocupação moral com a “normalidade” sexual de acordo com a tradição heterossexista é na verdade uma supressão cuidadosa das informações produzidas pelo bem da própria informação, em vez de por lucro.

Também é interessante que seja a oposição das instituições das artes a essa clausula, em vez da oposição de lésbicas e gays, que tem tido tanta influencia no lobby da Casa dos Lordes. Uma vez que, especialmente, a arte performatica é um negócio comercial notavelmente inviável, e necessita subsídios públicos, os interessas das artes liberais (e portanto dos Lordes e dos cavalheiros) são vistas como sendo afetadas pela clausula, apesar dos argumentos girarem muito mais em torno da liberdade de expressão do que na questão do arranjo financiero com o setor publico que o apoia.

A noção de que o artista na verdade é conceitualmente intocável por quaisquer considerações legais: ele é nosso modelo do grande e livre individualista que se expressa pelo bem da auto-expressao. Não existe um reconhecimento explicito do fato de que qualquer artista que se qualifica para esse termo é um artista publicado – um artista que vende e exibe seus produtos por canais de estabelecimentos comerciais como editoras, galerias, cinemas, empresas de som e a industria do entretenimento de um modo geral. O termo artista não mais denota “criatividade”, mas fama publica. Também não existe muito reconhecimento e, muito menos, críticas, do imenso egoísmo envolvido em um comprometimento da expressão própria, onde a expressao, assim como a sexualidade, é concebida como uma dimensão dos direitos de um indivíduo (ou, melhor dizendo, privilégios). Há pouco sentido de que o artista queira alcançar voceno processo de comunicação onde voce, evidentemente, quereria expressar algo seu em troca: tudo o que o artista quer por você é sua atenção receptiva, seu dinheiro e seus elogios.

Sequer importa qual é a orientação política daqueles que exercem nas instituições artísticas: a própria concepção de arte garante a continuação do individualismo liberal fundamenta, a manutenção de um principio fundado no que é digno de um cavalheiro. Então, um dos maiores críticos marxistas no Reino Unido nos diz que:

“artistas precisam de uma liberdade garantida para comunicar o que, em termos de seu próprio entendimento de seu trabalho, precisa ser comunicado. Isso soa como, e realmente é, a definição de liberdade individual.”(Raymond Williams, 1982)

Também soa como, e realmente é, a definição de quem é um indivíduo que merece liberdade, ou seja, artistas. Uma vez que você, ou nós, somos aqueles que precisam garantir a liberdade deles, e também precisamos estar disponíveis para eles comunicarem aquilo que, em seus próprios termos, eles sentem a necessidade de comunicar. Precisamos estar comunicativamente disponíveis para eles assim como precisamos estar sexualmente disponíveis para os liberais sexuais: somos os objetos de expressão deles assim como somos seus objetos sexuais. O artista, como o liberal, e como o adolescente, demanda que ele considera necessário, e a instituição das artes, como pais liberais indulgentes, justificam suas necessidades e sua responsabilidade reduzida. Na noção do artista nós defendemos a infantilidade fundamental do individualista; celebramos artistas como os enfants terribles [crianças malditas] da política corporal, que são travessos mas espertos, e cujo egocentrismo ousado nós invejamos. Nós moldamos, no artista, não apenas nossa concepção do Eu, mas em seu trabalho a nossa relação desejada com o trabalho, que está se tornando institucionalizada na ética do profissionalismo. Como profissionais, nós exigimos, como os artistas, satisfação por nosso trabalho e a oportunidade, ou a liberdade, de exercer nossos talentos pelo bem da auto-expressao.

 

O feminismo, portanto, está sob ataque não apenas por sua crítica da sexualidade masculina, que é vista como mantenedora da licença absoluta do homem heterossexual. Também está sob ataque devido a sua crítica ao pensamento patriarcal, que é centrado no indivíduo infantilizado, por positivar o político no nível pessoal, e por exigir daquele membro adulto da sociedade  que não apenas busque seus próprios interesses, mas responsabilidade sobre o outro e diante da comunidade. A prática feminista – do trabalho e dos servicoes, relacionamentos e sexualidade, conhecimento e pesquisa como abordagens coletivas e contribuições sociais em vez de uma plenitude pessoal derivada de uma ambição de carreira – coloca uma ameaça ao individualismo liberal muito maior do que qualquer política de oposição convencional. E é por isso que, com os liberais sexuais à frente, eles estão declarando a era do pós-feminismo.

o valor é o homem. teses sobre a socialização pelo valor e a relação entre os sexos

10-Jan-15

o valor é o homem. teses sobre a socialização pelo valor e a relação entre os sexos

por roswitha scholz

tradução retirada do site http://obeco.planetaclix.pt/

 

resumo

este artigo discute o problema da correlação entre capitalismo e patriarcado, que, segundo a autora, ainda permanece sem solução, após vinte anos de pesquisa feminista. a autora rejeita a tentativa que fazem alguns grupos feministas de – ao tentar introduzir a problemática dos sexos como relação social constitutiva na crítica marxista ao patriarcado – conferir ao trabalho doméstico o mesmo estatuto do trabalho assalariado, o que levaria a uma reificação ainda maior das relações sociais no plano teórico. e propõe a tese de que a contradição básica da socialização através da forma-valor é determinada com especificação sexual. tratar-se-ia, portanto, de compreender o trabalho abstrato e o valor como princípio masculino, caso contrário se recairia numa hierarquia conceitual, em que a distribuição dos papéis sexuais é remetida a uma correlação secundária.

palavras-chave: patriarcado; capitalismo; feminismo; marxismo; valor; socialização; relação entre os sexos.

1.

após vinte anos de pesquisa feminista, a correlação entre capitalismo e patriarcado ainda é um problema irresoluto. as feministas que insistem nessa questão, e que seguem marx e a teoria crítica, recorrem a um marxismo emprestado aos movimentos trabalhistas, cuja principal crítica à sociedade burguesa é a apropriação da mais-valia pelo capital. a ressalva que outras feministas mais à esquerda fazem a semelhante compreensão marxista é simplesmente que a questão do patriarcado permanece fora de consideração, ou seja, que apenas e tão-somente o antagonismo entre o trabalho assalariado e capital possui validade como referência central. a seu ver faltaria conceder o devido lugar à problemática dos sexos como relação social constitutiva. assim, a crítica ao patriarcado ficaria envolta numa concepção marxista antiquada e em grande medida a-histórica, na qual a problemática dos sexos, em última instância, reaparece forçosamente como corpo estranho, por ser apenas superficialmente introduzida.

nesta linha, muitas vezes se tenta elevar o trabalho doméstico, não considerado nas análises do capital, à mesma categoria do trabalho assalariado (isto é, do trabalho abstrato) e/ou determinar o “valor” do trabalho doméstico (cf. haug 1990, pp. 92 s. e beer, 1989, pp. 190 ss.) . semelhante ampliação do conceito de “trabalho produtivo” corre a meu ver o perigo – contra sua intenção – de abrir caminho a uma reificação ainda maior das relações sociais no plano teórico, uma vez que a “produção da vida”, assim chamada erroneamente, passa também ela a ser apreendida com categorias que se orientam pela produção de mercadorias.

uma saída para tal dilema poderia a meu ver ser oferecida por uma compreensão crítica da teoria de marx que justamente não superestimasse o “valor”, ou seja, a forma de representação do trabalho abstrato, diferentemente do marxismo cunhado pelos movimentos trabalhistas, o qual define o “trabalho” como característica do gênero humano (com o que concordam as feministas supracitadas). pelo contrário, tratar-se-ia de uma crítica do “trabalho”, que na qualidade de “consumo econômico-empresarial abstrato da força de trabalho e matérias-primas” se torna cada vez mais obsoleto e tem de ser posto em questão (r. kurz). salvo engano, é precisamente a ascensão do principio masculino (1) do “trabalho abstrato como um tautológico fim em si mesmo” (r. kurz) que traz como resultado o confinamento doméstico e a repressão da mulher na história ocidental, produzindo, ao fim e ao cabo, a perda da dimensão sensível das relações humanas, a destruição da natureza e a ameaça de guerra nuclear.

nesse sentido, o movimento feminista não precisa – para dar prova de seu valor (moral e econômico) – tentar a redefinição da atividade feminina em termos de trabalho, já que o “trabalho” é de certo modo a “raiz de todo o mal”. isso não significa, por sua vez, que a actividade feminina e as atribuições patriarcais a ela vinculadas, da forma como se manifestam hoje, sejam de algum modo “melhores” e permitam deduzir modelos para o futuro, como acreditam muitas feministas. de fato, a “esfera feminina” e as qualidades imputadas às mulheres representam somente o outro lado da moeda do “trabalho abstrato no patriarcado ligado à forma-valor. eis por que é tão errado referir-se positivamente à esfera feminina quanto ao “trabalho” em geral (2).

2

ao lançarmos mão da “crítica fundamental do valor”, nos moldes em que foi efetuada pelo grupo da revista krisis (3) , surge o problema de que, a exemplo do marxismo acima criticado dos movimentos trabalhistas, sua posição é a princípio sexualmente neutra. em suas obras, até agora, aquela crítica abstrai sua conotação sexual específica e não vê que o “trabalho” abstrato, alvo de suas objecções, constitui um principio masculino fundamental que anda de mãos dadas com relações sexuais assimétricas, ou melhor, com a dominação masculina. a “crítica do valor” comporta-se de modo masculinamente universal, como é típico do pensamento masculino do ocidente, e sugere ser igualmente válida para todos e para todas.

no conceito do indivíduo abstrato e “puntiforme”, livre de conteúdos sexuais, os textos do grupo krisis (até aqui) ofuscam o carácter sexual específico da lógica do valor (4) minha crítica vincula-se também ao fato de que o conceito de patriarcado (e, com ele, o carácter de dominação da relação entre os sexos na forma-valor) é em parte evitado ou mesmo conscientemente negado através do recurso ao carácter fetichista da sociedade mercantil. depois de intervenções críticas, o conceito de valor assexuado e a rejeição sumária do conceito de patriarcado foram parcialmente reformulados ou retirados, mas ainda está por vir uma verdadeira explicação conceitual (5) . o problema pode ser aguçado pela seguinte alternativa: ou bem o trabalho abstrato e o valor são compreendidos já em seu nexo constitutivo (e portanto em seu próprio núcleo) como princípio masculino, ou bem se volta a uma hierarquia conceitual, em que a distribuição dos papéis sexuais é remetida, como simples “problema derivado” ou de “concretização”, a uma correlação secundária.

nesse contexto, para evitar mal-entendidos que possam surgir do conceito de patriarcado, esclarecemos que, ao falar de dominação masculina, não queremos dizer obviamente que o homem se poste ao lado da mulher constantemente de chicote em punho, para fazer valer a sua vontade. no sentido aventado aqui, o domínio baseia-se essencialmente na institucionalização e na internalização de normas sancionadas pela coletividade. estudos feministas revelam que, historicamente, as mulheres não raro se ergueram em defesa de seu papel tradicional, oferecendo resistência e exigindo seus direitos a partir dele (cf. heintz e honegger, 1981). domínio masculino também não significa que as mulheres se encontrem absolutamente despojadas de seu poder de influência. este, contudo, restringe-se em boa parte à esfera que lhes é atribuída.

esse conceito diferenciado de dominação tampouco contradiz o carácter fetichista do valor. nos debates do grupo krisis, ao menos até recentemente, o conceito de fetiche foi frontalmente contraposto ao conceito de dominação e, portanto, ao de patriarcado. para tanto foi preciso supor um conceito de dominação simplificado e reduzido ao sujeito (6) . do meu ponto de vista, pelo contrário, a dominação é sem sujeito por sua própria essência, ou seja, os depositários do domínio não são sujeitos autoconscientes, mas agem no interior de uma moldura de sociabilidade dotada de constituição historicamente inconsciente. o valor sem sujeito remete ao homem sem sujeito, que na qualidade de dominador, de iniciador e realizador, colocou em movimento instituições culturais e políticas capazes de cunhar a história, que começaram a ter vida autónoma, inclusive com relação a ele (7) .

3

ao caracterizar o patriarcado, suponho que as diferenças sociais entre os sexos são produto da cultura, e portanto não de correm de dados biológicos (por exemplo, a capacidade de dar à luz) (8) . a existência do patriarcado não deve ser ontologizada, como mostram os estudos de cultura comparada:

se os exemplos etnológicos de relações equivalentes entre os sexos representam no cômputo geral uma clara minoria, ainda assim eles são numerosos o bastante para impedir que sejam descartados por completo como meras exceções que confirmam a regra universalmente válida da subordinação feminina (arbeitsgruppe ethnologie wien, 1989, pp. 15 s.).

mesmo onde surgem elementos patriarcais, eles não possuem sempre o mesmo significado. um patriarcado no sentido de uma determinação patriarcal das relações sociais por meio do trabalho abstrato e do valor é típico apenas da sociedade ocidental. por isso esta deve ser analisada em separado.

o núcleo de minha tese é o seguinte: a contradição básica da socialização através da forma-valor, de matéria (conteúdo, natureza) e forma (valor abstrato) é determinada com especificação sexual. todo conteúdo sensível que não é absorvido na forma abstrata do valor, a despeito de permanecer como pressuposto da reprodução social, é delegado à mulher (dimensão sensível, emotividade, etc.). há muito essa conexão é tematizada na literatura feminista como o mecanismo da cisão (9) , embora até onde sei nunca tenha sido referida à constituição negativa da socialização pelo valor, no sentido de uma crítica do valor e do trabalho. somente por meio dessa relação, porém, será possível explicar, para além do simples plano fenomênico, a problemática conceitual da cisão (10) .

no entanto, a cisão sexualmente especificada não pode ser inferida diretamente da própria forma valor. ao invés disso, ela é numa certa medida a sombra lançada pelo valor, mas que não pode ser apreendida por intermédio do instrumental “positivo” dos conceitos formulados por marx. as cisões de que resultam a esfera feminina, o contexto de vida feminino e o âmbito de atividades imputado às mulheres (administração do lar, educação dos filhos, “convívio social”, etc.) são portanto elementos integrantes, por um lado, da socialização pelo valor, mas por outro, lhe são também exteriores. como no entanto a cisão necessariamente faz parte do valor e com ele é posta, seria preciso criar um novo entendimento da socialização, capaz justamente de levar em conta o mecanismo patriarcal da cisão ¾ não no sentido de um acréscimo externo, mas no de uma alteração qualitativa da própria teoria do valor, que seria assim também uma crítica do patriarcado.

a constituição do valor, sexualmente específica, produz em última instância a repartição conhecida dos papéis entre os sexos; o “feminino” assim adjudicado torna-se a condição de possibilidade do princípio masculino do “trabalho” abstrato. a assimetria dessa relação, na qual o elemento sensível é marcado como feminino e por isso mesmo posto de lado e avaliado como inferior, justifica a fórmula algo sensacionalista com que caracterizamos o patriarcado sem sujeito: “o valor é o homem”. entretanto – e isso deve ser expressamente salientado – meu interesse é a investigação de uma estrutura cultural. não são tanto homens e mulheres empíricos que tenho em mira, embora é claro que as relações empíricas entre homens e mulheres sejam definidas por essa estrutura, sem contudo serem nela totalmente absorvidas.

4

essa estrutura básica da relação de valor tem correspondência com a formação de uma esfera privada e outra pública. a esfera privada, consequentemente, é ocupada pelo tipo ideal “feminino” (família, sexualidade, etc.), ao passo que a esfera pública (“trabalho” abstrato, estado, política, ciência, arte, etc.) é “masculina”. de forma ideal, a mulher seria assim o “recosto” social para o homem, que age na esfera pública. dessa relação (nossa velha conhecida no plano da aparência) entre esfera pública e privada pode-se deduzir uma diferenciação histórica do patriarcado, uma vez que tal relação deixou de ser parte evidente de todas as sociedades surgidas até hoje.

em sociedades agrárias, mesmo que patriarcais, o divórcio entre esfera pública e privada ainda não se acha configurado, ou apenas em pequeno grau; as mulheres, assim, guardam ainda uma parcela relativamente grande de poder de influência, na medida em que a esfera jurídico-formal e público-masculina não se tornou independente nem foi alçada à posição dominante, o que dá mais campo às estratégias informais:

sob os preceitos da economia familiar camponesa, as mulheres têm mais poder e influxo do que a aparência pública de dominação masculina deixaria entrever (…). o poder feminino em condições agrárias baseia-se (…) na produção e no controle direto de recursos vitais, assim como na condução indireta de decisões socialmente relevantes (heinzt e honegger, 1981, p. 15; cf. também, de forma análoga, nadig, 1988).

o patriarcado, nesse sentido, ainda não desfruta da mesma importância nem pode pleitear o papel universalmente determinante que ocupa nas sociedades ocidentais pautadas pelo valor. mas com isso não queremos edulcorar ou mesmo enaltecer as relações por vezes brutais no interior dessas sociedades não-europeias (ou também de velhas sociedades da europa, anteriores ao jugo do valor); trata-se, antes, de estabelecer o significado da separação entre as esferas pública e privada para a estrutura do patriarcado ligado à forma-valor.

simplificando ao extremo, poder-se-ia dizer: aquela divisão das esferas e o patriarcado guardam uma relação de reciprocidade. quanto menos desenvolvida é a esfera pública, mais difuso e menos nítido é o influxo do patriarcado na sociedade como um todo. e vice-versa: quanto mais desenvolvida é a relação de valor, quanto mais claro é o divórcio entre esfera pública e privada, mais inequívoca é a estrutura patriarcal. surge assim a possibilidade de um desenvolvimento contraditório, conforme se fale da sociedade como um todo ou somente da esfera público-jurídica tomada em si mesma: se é certo que o patriarcado ligado ao valor só se perfaz com a separação entre esfera pública e privada, ao passo que decresce o antigo poder informal de influência da mulher, não deixa de ser verdade, por sua vez, que a posição da mulher dentro da esfera pública (ou mesmo seu acesso a tal esfera) pode acusar simultaneamente uma melhora parcial.

a relação patriarcal de valor e dos sexos tem assim uma história de efectivação longa e contraditória. no que segue, trataremos de dar um breve apanhado histórico sob o aspecto da continuidade e das rupturas. meu interesse está voltado para uma abordagem histórico-sistemática, ou seja, não procederei à enumeração de fatos, mas antes a rápidos flashes do percurso em direcção da clausura doméstica da mulher e da exclusão do “feminino”, desde a antiguidade até os dias de hoje.

5

os pressupostos do patriarcado ocidental e cristão ligado à forma-valor têm origem na grécia antiga. é absurdo acreditar que somente os fundamentos da matemática e das ciências naturais tenham sido lançados na grécia. tais bases só puderam firmar-se sobre o solo de uma racionalidade específica, de cunho masculino e mercantil. a própria situação geográfica da grécia, sua dispersão em ilhas e o predomínio do tráfego marítimo, devido à falta de alimentos, favoreceram extraordinariamente a “intensificação da troca de mercadorias” (sohn-rethel, 1978, pp. 111), o que por sua vez ensejou a forma monetária. nesse espaço geográfico surgiu a primeira cunhagem de moedas (lídia), sendo adotada pelos gregos: segundo sohn-rethel, como sabemos, este foi um pressuposto histórico para o pensamento racional e abstrato, desvinculado do mito. nesse meio social, a antiga nobreza agrária foi privada de seu poder, sobretudo nas cidades jônicas; a fim de permitir os contratos no comércio multilateral de mercadorias, foi necessário criar um organismo jurídico e uma jurisdição pública.

tais instituições constituíram uma nova forma e um novo significado da esfera pública. o discurso perante o tribunal e a assembleia popular ganhou relevância; era imprescindível saber argumentar de modo abstrato e racional, a fim de grangear poder e prestígio. essa esfera pública que conduziu à criação da dialética, da lógica formal etc., era todavia reservada exclusivamente aos cidadãos masculinos. as mulheres atenienses viviam exiladas em casa, de onde deveriam sair o menos possível. a principal tarefa da mulher era conceber um filho; caso isso não ocorresse, sua vida teria sido em vão. a hipóstase da nova esfera pública, que exigia a conduta abstrata e racional, andava de mãos dadas com a degradação da sexualidade em geral (cf. reinsberg, 1989). a ascensão do pensamento racional associou-se já desde o berço à exclusão das mulheres.

a esfera pública, de quem também fazia parte a formação cultural, necessitava (na figura da esfera privada) de um domínio que lhe fosse contraposto, para o qual pudesse olhar do alto de sua posição. o homem precisava da mulher como “antípoda”, no qual ele projetava tudo o que não era admitido no âmbito público e nas esferas adjacentes. assim, já na antiga atenas, a mulher era tida e havida na conta de lasciva, eticamente inferior, irracional, intelectualmente pouco dotada etc. (cf. reinsberg, 1989, pp. 42 s. e pommeroy, 1985, pp. 362) – atributos esses que permaneceram em vigor até à modernidade. tal cisão é comprovada até mesmo nas mais abstratas concepções teóricas da antiga filosofia. para platão, por exemplo, a matéria é algo amorfo e dificilmente apreensível pelo pensamento, sendo definida (com gênero feminino) como a “hospedeira e ama das ideias”. também para aristóteles o amorfo como byle (traduzido em latim por cícero como materia, de onde vem a designação corrente entre nós) é um conceito feminino (cf. pauli, 1990, p. 197).

6

com a derrocada da sociedade antiga, o intercâmbio mercantil e monetário sofreu drástico retrocesso; paralelamente desmoronou a esfera pública separada e diferenciada, predominante na sociedade greco-romana. as tribos germânicas ainda não estavam estruturadas segundo o molde do valor. a despeito de fortes elementos patriarcais, a mulher desfrutava entre os povos germanos de uma espécie de significação mística. tácito relata que as mulheres germanas gozavam de alta reputação como feiticeiras, videntes e curandeiras. o patriarcado preso ao valor teria assim de começar do zero para reconstruir seu poder sob condições adversas.

na sociedade medieval, subsistiram por longo período resquícios “semimatriarcais” dos germanos no seio do patriarcado. por um lado, a mulher era juridicamente subordinada ao marido, precisava de um representante legal (pai ou cônjuge) e podia em princípio ser até negociada como cabeça de gado, escravo ou um objeto qualquer. seria entretanto ilusório deduzir que algo semelhante estivesse na ordem do dia na vida cotidiana. o direito e a esfera pública desempenhavam papéis inteiramente diversos e sensivelmente menores do que em sociedades dotadas de uma forma-valor mais desenvolvida. na alta idade média, era até mesmo permitido às mulheres dedicarem-se ao comércio e ocuparem-se de um ofício, embora não com a mesma assiduidade dos homens. ainda que o casamento fosse no fundamental uma relação de poder, a mulher desfrutava possivelmente de certa autoridade na família ¾ ela tinha a chamada “última palavra” como administradora do lar. as grávidas, em conformidade ao direito germânico, recebiam proteção especial (cf. entre outros, becker, 1977, pp. 41 ss). a própria imagem da bruxa não se definia de antemão como negativa. considerava-se que a magia podia ser boa e podia ser má. o curandeirismo e ofício de parteira estavam solidamente depositados em mãos femininas.

nessa época, foi sobretudo nas doutrinas da igreja que se preservou a antiga e inequívoca imagem negativa da mulher. como sucessora de eva, ela foi denunciada como causa de todo o mal e eterna sedutora da carne. a partir do século xii, eva, a pecadora, passou a ser confrontada com a virgem maria. desde então, a mulher devia ser quando muito um ente assexuado. em consonância à palavra de paulo, segundo a qual a mulher tem de calar-se na comunidade, ela perdeu sua razão de ser na esfera pública. mas como a “esfera pública” restringia-se praticamente à igreja, ao passo que a vida real centrava-se na “família produtiva”, o significado social dessa imagem feminina foi bastante limitado. nas massas camponesas, no seio das quais ainda subsistiam inúmeros resquícios pagãos e germânicos, a imagem cristã da mulher como “poço de pecados” foi incapaz de firmar-se sobre as pernas. de modo geral, os costumes sexuais não eram de forma alguma tão rígidos quanto os prescritos pela igreja (cf. becker, 1977, pp. 57 ss.).

7

se posição da mulher nas relações patriarcais da idade média ainda era dotada de um elemento contraditório, sua situação piorou drasticamente no início da idade moderna. a imagem feminina negativa brandida pela igreja tornou-se, sob as novas condições, mais eficaz na prática. a renascença, além de ser o “renascimento” do antigo mundo espiritual, estava vinculada também a uma respectiva mudança dos fundamentos sociais. a produção de mercadorias e o fluxo monetário ganharam novo alento e conduziram ao processo de reestruturação descrito por marx em sua análise da acumulação primitiva do capital. assim, constituiu-se novamente uma esfera pública no interior da sociedade:

embora os estágios evolutivos da idade média sejam bastante diversos no que respeita às mulheres, sendo muitas vezes contraditórios e avessos a uma imagem uniforme, podemos observar no início da idade moderna que a situação das mulheres piorou a olhos vistos, como dão prova as repressões por ela sofridas em todos os âmbitos sociais. quanto mais se desenvolvem uma esfera pública supra-regional, uma jurisdição estatal e uma ciência institucionalizada, mais nítido se torna o papel marginal atribuído à mulher (becker, 1977, p. 79).

francamente revolucionário foi o salto dado sobretudo pelas ciências naturais nessa época. a imagem de um mundo mágico e místico foi substituída pelas ciências experimentais e objetivas. tais alterações não retomaram simplesmente o antigo desenvolvimento greco-romano, mas foram muito além. com sua racionalidade, as ciências puseram em tela de juízo não apenas a imagem tradicional do mundo, mas tornaram-se também diretamente práticas na condição de experimentais, à diferença da antiguidade; com a difusão do conhecimento técnico, foi dado início à expansão da manufatura mercantil. este processo foi vertiginosamente acelerado com o descobrimento de novos continentes. as incisões sociais a que foi submetida a sociedade agrária foram portanto muito mais profundas do que na antiguidade e já deixavam entrever o capitalismo nascente. além de a posição da mulher agravar-se com o impulso renovado da sociedade do valor, foi instaurada literalmente uma campanha de aniquilação contra o “feminino”, sob a égide da caça às bruxas ¾ campanha esta responsável por abrir caminho a um processo que avançaria futuro adentro:

o “novo ser humano” da era industrial foi o homem. a imagem mágica e a mística da mulher permaneceu intacta no período burguês, embora ela não fosse mais considerada como sujeito da apropriação da natureza, mas como objeto da dominação da mesma natureza (bovenschen, 1977, p. 292).

ora, a mulher (na figura da bruxa) mantinha uma relação “simpática” com a natureza; de certo modo, ela fazia as vezes de natureza. para que a racionalidade do homem moderno pudesse impor-se na esteira do legado antigo e para além dele, era necessário portanto literalmente eliminar a mulher e tudo o que ela representava (o sensível, o difuso, o incalculável, o contingente, etc.). não se tratava apenas do fato de os homens expropriarem brutalmente a ciência medicinal empírica das mulheres; antes, o que estava em jogo era um projecto fundamentalmente diverso de relacionamento com a natureza (cf. bovenschen, 1977) (11) . a fundamentação teórica é fornecida sobretudo pelo chamado malleus maleficarum (o martelo das bruxas), de 1487, redigido pelos padres h. kraemer e j. sprenger. pais da igreja, poetas e pensadores antigos eram citados no fito de tornar plausível a inferioridade da mulher e sua predisposição à bruxaria e ao pacto com o demónio. imputavam-se mais uma vez às mulheres atributos como inconstância, concupiscência, raciocínio débil, extravagância, perfídia e credulidade (cf. becker, 1977, pp. 342 ss.) (12) .

não apenas os conhecimentos naturais heterodoxos das “mulheres sábias” medievais, mas também as qualidades “femininas” em geral (assim reputadas pelo patriarcado) devem ter aparecido como uma ameaça aos olhos da incipiente modernidade masculina, inclusive no tocante à economia afetiva e passional. na idade média, o controle dos afetos e das paixões era em regra pequeno: comia-se e bebia-se literalmente até cair, urinava-se pelos cantos e à vista de todos e assim por diante. agora era preciso modificar não apenas os costumes de mesa. o autocontrole do indivíduo é também o pressuposto de uma compreensão científico-racional da natureza e da sociedade em geral, pois em seu princípio está o distanciamento em relação ao objeto de interesse, fato que se acha incluso no controle dos sentimentos. também o comércio, a economia monetária, a divisão de trabalho e o convívio com estrangeiros requeriam em grande medida uma dilação das paixões e o controle dos impulsos (cf. elias, 1976). na caça às bruxas, portanto, estava claramente em ação o mecanismo das projeções: o temor aos próprios impulsos e afetos encontrava expressão na denúncia contra a mulher.

os séculos xvi e xvii foram aparentemente também uma época sacudida por crises e revoluções. guerras camponesas, inflação e carência de alimentos, dissolução das guildas, etc., impregnaram a imagem da sociedade; boa parcela da população tornou-se miserável. uma situação anômica como essa foi talvez decisiva para que a caça às bruxas instituída pela igreja encontrasse respaldo também na população (tanto masculina quanto feminina):

quando o processo de trocas materiais entre o homem e a natureza ingressou em seu novo estágio (…) a destruição da antiga relação com a natureza, especialmente seu estreito vínculo com a mulher, tornou-se imprescindível. os indivíduos teriam de orientar-se pelas normas de trabalho nos novos tempos (…). a bruxa encontra-se nesse ponto de intersecção do desenvolvimento histórico, no qual a exploração da natureza adquire seu carácter sistemático. vítima do controle necessariamente progressivo da natureza, ela sucumbiu desse modo ao triunfo da razão abstrata e da síntese formal entre identidade e não-identidade. seus traços desapareceram na generalidade dos conceitos com os quais o pensamento moderno organizou a natureza (bovenschen, 1977, pp. 290 e 292).

fica assim comprovado que a velha noção da caça às bruxas como um último estertor da “idade das sombras” não é de forma alguma adequada. pelo contrário, trata-se em certa medida de um primeiro fenómeno de modernização, de um pressuposto sangrento para a ascensão moderna da racionalidade masculina. como em toda a reviravolta histórico-social, as forças propulsoras eram contraditórias em sua ideologia. embora de um lado a igreja antipatizasse com as novas ideias (das ciências naturais), uma vez que elas punham em xeque a própria imagem do mundo, sua função no efetivo processo de revolução social foi ambivalente. por meio da caça às bruxas, de fato, a igreja forneceu o impulso decisivo para a destruição da antiga imagem mística do mundo, e nesse sentido foi plenamente propícia aos novos poderes e às novas idéias. em que pese sua “animosidade ao progresso”, a igreja atuou de certa forma como um algoz a serviço da nascente modernização. isso também é corroborado pelo fato de que “a neurose das bruxas não surgiu em áreas rurais, mas nas regiões industrialmente mais desenvolvidas e intelectualmente mais avançadas da europa” (cf. heinemann, 1989, pp. 37) ao passo que o malleus, por exemplo, foi rejeitado pela inquisição espanhola. o iluminismo, como o impulso seguinte da modernização patriarcal, ligada ao valor, pôde assim condenar a caça às bruxas com venerável indignação sobretudo porque essa “tarefa” já havia sido previamente realizada.

8

o potencial regulamentador da igreja, ainda bastante superficial na idade média, tornou-se objetivamente necessário com o início da idade moderna; o protestantismo foi o primeiro a ditar o figurino do superego nas novas relações. além de instaurar, com o movimento da reforma, uma religião individualizada, a ética protestante proclamou a redenção da alma por meio da conduta moral. nesse contexto, as ordenações patriarcais dos papéis imputados aos sexos adquiriram uma nova qualidade. a virulenta campanha contra o “feminino” manifestou-se (em complemento ao projeto científico de “controle da natureza”) como tendência a domesticar a mulher como “ente natural”, isto é, fazer com que a mulher, como representante da natureza (e a natureza como local de destino do mundo feminino) levasse uma vida serena, doméstica e controlada pelo patriarcado.

paralelamente à caça às bruxas, desenvolveu-se assim o ideal materno como nova imagem da mulher. os responsáveis para tanto foram a reforma e sobretudo lutero. segundo ele, à mulher competia a administração do lar (cuja importância diminuiu relativamente) e ao homem, a política, as querelas jurídicas, etc. (cuja importância aumentou relativamente). a maternidade, para lutero, era a vocação feminina. embora tenha em certa medida reabilitado a mulher dentro de seu papel restrito (em contraste à ideia de inferioridade pespegada pela igreja católica), na medida em que atribuía valor à sua atividade de esposa e mãe, a concepção de lutero implicava ao mesmo tempo o encerramento da mulher – e com ela a sexualidade e a sensibilidade – no claustro do casamento, ao contrário do que ocorria na idade média.

ratificou-se assim, desde lutero, uma nova codificação e funcionalização da sexualidade e sensibilidade. o ideal luterano da mãe dona-de-casa conjugava a imagem da bruxa e da virgem maria (que lutero rejeitava em sua versão católica). nasceu desse encontro a imagem da mulher burguesa domesticada, que representava, por um lado, a humildade, a amabilidade e a obediência e, por outro, também uma versão domesticamente comedida de paixão e erotismo (cf. hoher, 1983, pp. 49 ss.). nessa concepção, revela-se o posterior desenvolvimento da imagem patriarcal da mulher quando comparada às noções da antiguidade e da igreja medieval – imagem esta que correspondia às novas relações burguesas.

em lutero, é claro, tratava-se apenas de uma “primeira abordagem” relativamente tosca à moderna imagem patriarcal e burguesa da mulher, que de início recobria somente uma fina camada da sociedade. foi sobretudo entre o patriciado e os mestres de ofício que as atividades da mulher restringiram-se progressivamente ao homem e os filhos; num processo concomitante, houve uma mudança de sentimentos ¾ o amor entre cônjuges e entre pais e filhos foi descoberto como economia emocional domesticada:

(…) “domesticação” não significa o desaparecimento físico da esposa como individualidade sob a figura do marido, mas sim seu desaparecimento tendencialmente psíquico. a consciência da própria individualidade lhe era permitida somente nos limites de publicidade do lar. ora, na medida em que o lar resguardava suas funções públicas, isso não acarretava uma total exclusão da própria esfera pública (wunder, 1991, pp. 24).

especialmente no campo, uma rígida diferenciação dos âmbitos da atividade em “públicos” e “privados” levaria ainda muito tempo para concretizar-se. todavia, o esboço de uma feminilidade burguesa e votada à família esgueirou-se progressivamente por todas as classes e estamentos, e o desenvolvimento posterior recebeu dela uma marca indelével.

9

a era da ilustração deu novo impulso ao processo de domesticação da mulher. no início, havia ainda entre os primeiros ilustrados opiniões favoráveis a estender às mulheres o projeto de emancipação igualitária. tais projetos ideológicos da ilustração, devotados a uma racionalidade supostamente neutra em relação aos sexos, não foram capazes de se impor em face do peso de seu próprio fundamento social, a saber, a progressiva socialização pelo valor. esta, de fato, requeria a crescente diferenciação dos papéis patriarcais entre os sexos, tanto é que, na segunda metade do século xviii, criou-se uma imagem feminina que tornava a mulher novamente um ser da natureza. essa imagem, no entanto, adquiriu uma nova coloração e uma nova qualidade, de vez que a mulher estava destinada “por natureza” a não ser mais que esposa, dona-de-casa e mãe:

por volta de meados do século xviii, as normas de conduta restritivas professadas pela igreja foram substituídas pela doutrina da mulher como um ser eticamente natural, a quem era imanente um impulso irrefreável ao autosacrifício. embora a nova imagem que se delineava do caráter feminino ainda a descrevesse como um ser irracional e movido pelos desejos, introduziu-se uma mudança decisiva, pois cada vez mais atribuía-se aos cegos arrancos da mulher um propósito ético (bennent, 1985, p. 44).

o duplo conceito da mulher como santa e meretriz foi conservado e reforçado. rousseau, que é tido como o fundador ideológico do moderno patriarcado, considera a discrição, a obediência ao homem, a modéstia e a castidade as virtudes cardeais da mulher; ao mesmo tempo, contudo, ele a define também como astuta e coquete “por natureza”. estes últimos atributos, segundo rousseau, cabe a ela “cultivar” (dentro de limites, é claro), para assim contrabalançar sua subordinação em face do homem bem como sua fraqueza corporal, de raciocínio e de caráter (cf. rousseau, 1986, pp. 719 ss.).

na medida em que à mulher se imputavam novas qualidades como passividade e emotividade (se bem que agora restritas ao círculo familiar burguês) e ao homem, por sua vez, a ação e a racionalidade no espaço público da incipiente sociedade industrial, ocorreu uma “polarização de caráter entre os sexos”. a mulher e a família deviam converter-se em pólos de oposição ao mundo externo cada vez mais dominado pela racionalidade instrumental. cabia à mulher não apenas ser uma dona-de-casa exemplar, mas também tornar agradável a vida do marido com sua assistência, seus cuidados e seu interesse. essas tarefas adicionais representavam uma inovação (cf. hausen, 1978). à diferença dos primeiros patriarcados da antiguidade, presos à forma-valor, em que o homem ainda encontrava sua satisfação na própria esfera pública, elas são testemunha do quanto a racionalidade patriarcal e do valor fugiu ao controle do homem nesse meio tempo, do quanto ele depende agora de um “bem-estar doméstico” propiciado pela mulher.

10

no século xix, a “vocação materna” da mulher burguesa ganhou relevância ainda maior. as esferas de produção e reprodução cindiram-se cada vez mais. as atribuições sexuais adquiriram traços quase profissionais: a mulher estava “talhada” para atividades de cunho mais pessoal, e o homem para atividades produtivas na ciência, tecnologia e cultura:

quanto mais rápida e profundamente se modificava o mundo externo (…), e quanto mais ágil e vivo o empenho profissional e público dos homens, mais nítida era a discrepância entre a existência familiar feminina e a inclinação profissional masculina. se o homem dotado de ambição e disposição desempenhava o papel do descobridor e revolucionário progressista, a mulher burguesa viu-se confrontada com a tarefa de manter a família em equilíbrio, de desincumbir-se dia após dia dos afazeres domésticos e de funcionar como uma relojoaria de tique-taque cadenciado (frevert, 1986, pp. 65).

casamento e maternidade tornaram-se então o único locus social onde a mulher (burguesa) podia locomover-se; de resto, ela dependia inteiramente de seu marido. a domesticação da mulher atingiu no séc. xix um tal ápice que mesmo o forte instinto sexual imputado às mulheres ao longo do tempo chegou a ser desmentido. o absurdo era tanto que foram promovidos debates “científicos” entre os homens para saber se a mulher era capaz de prazer sexual. a domesticação, portanto, foi infletida como tendência a um ser absolutamente assexuado (cf. frevert, 1986, pp. 128 ss.).

mas o século xix viu nascer também o primeiro movimento feminista, cujos rudimentos remontam à revolução francesa. a exigência de emancipação própria à ilustração, que em sua abstração tem como fundamento o sujeito masculino da socialização pelo valor, foi então pleiteada pelas mulheres a partir de seu próprio modo de ser “divergente”, isto é, de acordo com sua posição social. o exílio no lar permaneceu assim indisputado. na esteira da revolução de 1848, luise otto postulava o direito das mulheres “à independência e maioridade no estado”. após sua proibição, o movimento feminista burguês recompôs-se nos anos 60 do século xix. exigiam-se sobretudo uma melhor formação cultural das estudantes e o direito à atividade remunerada, embora as mulheres devessem ocupar-se de tarefas correspondentes à sua “destinação natural” (comércio e ensino, e mais tarde também a assistência social). uma razão importante para exigir o direito à atividade remunerada residia no fato de que uma quantidade cada vez maior de mulheres burguesas permanecia solteira. a própria estrutura familiar sofreu mudanças na segunda metade do século xix: muito do que antes era produzido em casa passou a ser comercializado, e a importância da administração doméstica decaiu proporcionalmente (frevert, 1986, pp. 73 ss. e 174 ss.).

a atividade reprodutiva das mulheres devia então ser continuada dentro da esfera do trabalho. nos primórdios do movimento feminista, o que estava em jogo para a grande maioria não era de modo algum a plena igualdade de direitos. a maternidade já fora internalizada como uma “vocação natural”; as supostas “diferenças entre os sexos” não deviam ser violadas. até mesmo o objetivo social desses primeiros movimentos consistia somente no prolongamento social da feminilidade doméstica: o mundo frio e exclusivo dos homens devia ser humanizado pelo “natural sentimento materno” da mulher (cf. frevert, 1986, pp. 124 ss.). ao lado dessa maioria dos movimentos feministas burgueses, havia ainda uma pequena e radical minoria, representada por helene stöcker com sua “nova ética”. esta facção punha em tela de juízo a domesticação patriarcal, exigia um direito próprio às mulheres em relação a sua sexualidade, a revogação do parágrafo 218 [referência à disposição legal sobre o aborto contida no código penal alemão (n.t.)], proclamava o livre conúbio como alternativa ao casamento, voltava-se contra a estigmatização jurídica e social de filhos ilegítimos e reclamava o sufrágio feminino, em contraste ao comedimento típico da maioria (cf. schenk, 1980, pp. 32 ss.).

se não diferia quanto ao resultado, pelo menos no tocante ao ponto de partida a situação das trabalhadoras era diversa. a classe operária surgida com a industrialização era a mesma que, ainda no século xx, vivia quase como um corpo estranho, à margem da sociedade burguesa oficial e por ela conscientemente excluída. neste setor, a domesticação da mulher ocorreu num grau muito menor, embora as antigas formas agrárias de existência da feminilidade tivessem sido aniquiladas para dar lugar ao nefasto trabalho de mulheres e crianças nas fábricas. as associações femininas burguesas foram as primeiras a cuidar das trabalhadoras, ao passo que o movimento trabalhista masculino, por razões de concorrência, portava-se com acentuada reserva (schenk, 1980, p. 48). como a tendência objetiva do movimento trabalhista consistia em inserir sem restrições a classe operária na socialização burguesa pelo valor, ele estava condenado a reproduzir o próprio padrão de hierarquia sexual burguesa. a “questão da mulher” foi subsumida à “questão das classes”. as contradições resultantes permanecem intactas. a social-democracia, para dar um exemplo, exigia de um lado o sufrágio feminino e a melhor remuneração das atividades femininas, mas de outro, afirmava que o salário de um trabalhador masculino haveria de ser suficiente para “alimentar uma família”, o que implica a domesticação burguesa da mulher trabalhadora. dessa contradição não escapou nem mesmo o movimento feminista das proletárias, que, apesar das reinvindicações mais ou menos veementes a favor da remuneração condigna, em boa parte afirmava a maternidade como a “vocação natural” da mulher (frevert, 1986, pp. 134 ss.). a contradição apontada aqui se agravou por volta do final do século xix e persistiu até meados do século xx.

a crescente inserção de mulheres em atividades não remuneradas alcançou seu auge na i guerra mundial, já que elas foram obrigadas a substituir nas fábricas os postos vacantes dos homens recrutados pelo serviço militar. essa tendência não progrediu linearmente. após o fim da primeira grande guerra e durante a crise econômica mundial, as mulheres foram as principais atingidas pelo desemprego. ao contrário de sua propagação do ideal materno e do da dona-de-casa, os fatos indicam que no fascismo – talvez em virtude dos preparativos de guerra a partir de 1935 – houve um recrudescimento da atividade profissional feminina (cf. daubler-gmelin, 1977, pp. 28 ss.). não obstante todas as mudanças na atividade feminina remunerada, o padrão de hierarquia sexual manteve-se bastante estável. o movimento feminista moderado, que sempre propalara de maneira conservadora o ideal materno, dissolveu-se com a ascensão ao poder dos nazistas em 1933. pode-se afirmar com certa justiça que, com sua ideologia da maternidade, ele foi propício à imagem feminina do fascismo.

11

na segunda metade do séc. xx, a relação entre os sexos parece sofrer nova mudança radical. as novas condições do problema podem ser expressas com auxílio da consagrada “tese da individualização” de ulrich beck. por “individualização” entende beck o processo segundo o qual as pessoas libertam-se dos papéis sexuais que lhes foram introjetados pela “sociedade industrial”. a elas cabe reconstruir sua vida (se necessário, contra os vínculos familiares) acima do mercado de trabalho, da instrução escolar e das imposições de moradia (beck e beck-gernsheim, 1990, pp. 13 s; cf., para o que segue, beck, 1990). tal evolução ocorreu principalmente graças ao vertiginoso aumento das atividades femininas remuneradas após o término da ii guerra. surge assim um novo potencial contraditório. de acordo com beck, o núcleo familiar e seus papéis sexuais são, por um lado, a base da sociedade industrial, mas, por outro, o surto de individualismo produzido pelos mecanismos cegos de mercado atinge progressivamente também a mulher e torna a tradicional repartição de papéis mais problemática do que nunca. outros aspectos relevantes são a possibilidade de prevenção da gravidez, os processos de racionalização da economia doméstica, etc.. ao mesmo tempo, porém, a mulher vê-se presa ao seu papel tradicional tanto pela responsabilidade que lhe é atribuída no tocante aos filhos quanto pelo fato de que as mulheres são sempre as mais atingidas pelo desemprego em massa:

estamos portanto – com todos os antagonismos, oportunidades e contradições – apenas no início do processo que nos libertará das atribuições “estamentais” do sexo. a consciência da mulher adiantou-se às relações sociais. que os ponteiros de sua consciência possam voltar atrás é algo improvável. tudo depõe a favor da prognose de um extenso conflito: a contraposição dos sexos define os anos vindouros (beck, 1990, p. 24, grifos no original).

beck demonstra empiricamente a disparidade da situação entre homens e mulheres com base em dados contraditórios da emancipação feminina. as mulheres, por exemplo, equiparam-se aos homens na obtenção de diplomas escolares, embora a disposição de estudo das jovens tenha simultaneamente decaído. as jovens de hoje têm melhor formação que suas mães, embora muitas vezes escolham disciplinas “mal remuneradas” nas áreas linguística e pedagógica ou se dediquem a profissões extra-académicas fortemente ameaçadas pela racionalização (por exemplo, secretária). em geral, vale a regra de que as mulheres são encontradas principalmente nos patamares inferiores das áreas dominantes da sociedade (política, economia, ciência, mídia). não é nada raro os homens reagirem às atividades femininas altamente qualificadas lançando mão de razões biológicas para resguardar a velha hierarquia.

segundo beck, é justamente a forte equiparação entre homens e mulheres no processo de individualização que traz nitidamente à consciência todas as assimetrias ainda existentes na relação entre os sexos. quem educa o filho, quem sustenta a família, quem segue o parceiro quando seja necessário mudar de cidade por exigências profissionais, quem decide se as crianças devem ser criadas dentro ou fora do casamento – tudo isso deixou de ser inequivocamente claro e assentado:

em todas as dimensões da biografia irrompem possibilidades de escolha e obrigações de escolha. por princípio, os projetos e ajustes necessários são revogáveis e dependem de legitimação no que se refere aos encargos desiguais neles contidos. em tais consensos e dissensos, os erros e conflitos fazem aflorar com crescente nitidez os diferentes riscos e consequências para homens e mulheres (beck, 1990, p. 52, grifos no original).

essa constelação profundamente conflituosa não conduz com exclusividade ao divórcio ou ao celibato:

a esperança da vida conjugal é a última grande comunhão que a modernidade permitiu ao indivíduo numa sociedade despojada de sua tradição. é nela, e talvez somente nela, que se enfrentam e padecem as experiências sociais, numa sociedade cujas realidades, perigos e conflitos resvalaram para o abstrato e se furtam mais do que nunca à percepção e ao juízo sensíveis (beck, 1990, p. 21, grifos no original).

segundo beck, portanto, trata-se antes de uma “libertação rumo à família”, num momento em que os mecanismos de individualização atuantes na família modificam e tornam instáveis as formas de convivência. a relação entre existência individual e familiar assume novo aspecto. a família não se desagrega, embora não seja mais a instituição solidamente estruturada pela qual homens e mulheres orientam toda sua vida. em vez disso, surge uma sequência temporalmente justaposta e imbricada de diversas formas de vida como família, celibato, comunidades de moradia, novamente família, etc., pelas quais transitam mulheres e homens individualizados. cada um(a) tem de talhar sua biografia de maneira precária. não é simples acaso, na óptica de beck, que a relação entre os sexos só se tenha tornado conflituosa na modernidade tardia (ele vislumbra nela o “conflito do século”), já que somente agora as classes se vêem privadas de sua tradição e a racionalidade abstracta da sociedade industrial começa a infiltrar-se na esfera até então particular do casamento e da família.

a investigação de beck presta-se bem a demonstrar as modificações empíricas na relação entre os sexos durante as últimas duas décadas e sua história pregressa desde a ii guerra. a estrutura patriarcal torna-se precária à medida em que as mulheres são capazes, por intermédio do desenvolvimento social, de se distanciarem do seu papel, o qual nem por isso, contudo, é superado (13). a meu ver, entretanto, a estrutura teórica de relações da análise de beck é fundamentalmente equivocada. embora o autor, no contexto teórico, afirme que a divisão dos papéis sexuais seja a “base da sociedade industrial”, o conceito de patriarcado é cuidadosamente evitado. da mesma forma, já se vê, ele tampouco relaciona o fundamento patriarcal (apenas indirectamente mencionado) com a socialização pelo valor, da qual nem mesmo faz ideia. apesar de constante, o uso de conceitos como a “modernidade”, “a sociedade industrial”, etc., é bastante difuso e nunca chega a uma definição da sociedade ante o pano de fundo de seu desenvolvimento androcêntrico e ligado ao valor. para ele, em última instância, a relação patriarcal entre os sexos e sua distribuição de papéis não passam de “fenómenos” empiricamente comprováveis. nisso ele enxerga apenas um problema entre tantos da “sociedade pautada pelo risco” (cf. beck, 1986).

por apegar-se, em último recurso, a uma estrutura teórica de relações sexualmente neutra (“sociedade industrial”), beck se vê por fim legitimado a neutralizar a mudança empírica das relações entre os sexos com auxílio do conceito de “individualização”, que em sua obra adquire o estatuto de “chave teórica” para a análise das alterações. no plano conceitual, portanto, e como simples consequência da linha argumentativa de beck, a relação assimétrica entre os sexos é novamente posta em xeque por uma categoria sexualmente indiferente. a “individualização”, e não a problemática dos sexos, aparenta ser com isso o profundo e “verdadeiro” problema. a argumentação de beck coincide neste ponto com o conceito de “indivíduo abstracto” (igualmente neutro em referência aos sexos) da crítica do valor realizada pelo grupo krisis. ignora-se o facto de que esse “indivíduo abstracto”, precisamente em sua constituição ligada à forma-valor, é incapaz de desvencilhar-se de seu papel sexual, porque o valor (a forma mercantil da sociedade) é ele próprio sexualmente constituído.

enquanto essa relação não se firmar no pano teórico-conceptual, a argumentação estará condenada a justificar a crise dos papéis sexuais com motivos meramente sociológicos, como ocorre em beck, ou até mesmo a fazer referência a uma crescente “dissolução” dos papéis sexuais (14) e das determinações patriarcais já “dentro” de uma socialização pelo valor, que restaria então como o último “verdadeiro” problema (sexualmente neutro) da modernidade (como, em linhas gerais, no trabalho de turcke, 1991). em vez disso, seria preciso encarar de frente a própria constituição patriarcal da relação de valor, ou seja, o pressuposto sexualmente patriarcal da produção e troca de mercadorias, que já se encontra na raiz da socialização do valor e não pode ser apreendido por uma concepção “sociologista” abreviada dos papéis (como em beck).

12

quanto mais coisificadas as relações humanas se apresentam, e portanto quanto mais desenvolvida for a relação de valor patriarcal e a-subjectiva, mais nítidas despontam as cisões patriarcais, que hoje já não se alinham com a mesma evidência de antes, ao relacionamento homem-mulher. tais cisões, além de problemas individuais, tornam-se também uma questão pública, isto é, política. sobretudo os “novos movimentos sociais”, que subiram ao palco social nos anos 70 e 80 compreendem a si mesmos como reação ao carácter anónimo e abstracto das relações sociais. se atentarmos no leque de temas ao redor dos quais se agrupam tais movimentos, saltará aos olhos a espantosa correspondência que eles guardam com as atribuições patriarcais referentes “à mulher”.

a temática dos movimentos pacifistas, ecológicos e psiclógicos está em correspondência com as ideias segundo as quais a mulher é um ser natural mais pacífico e emocional do que o homem. no próprio movimento alternativo está contida “a questão da mulher”, na medida em que ele se volta contra o trabalho abstracto e alienado – uma esfera que, apesar de todas as mudanças na actividade remunerada, nunca absorveu as mulheres com a intensidade com que absorve os homens. com isso, o trabalho doméstico ainda é tido como um polo oposto ao trabalho abstracto. não admira, pois, sob tais condições, que o novo movimento feminista tenha surgido sob o signo dos movimentos de protesto. quando tudo o que é oprimido e marginalizado se faz ouvir em massa, a depositária social dessa repressão, “a mulher”, torna-se também necessariamente rebelde. os mecanismos objectivados da socialização do valor em forma patriarcal são eles próprios responsáveis não apenas por conduzir ao distanciamento da mulher em face do papel que lhe é atribuído (constituindo assim um pressuposto para sua luta emancipatória), mas também por transformar em objecto de crítica social o “potencial de destruição da dimensão sensível” desses mesmos mecanismos – potencial este desenvolvido historicamente através de catástrofes sociais e ecológicas. nesses termos, poder-se-iam mesmo considerar os movimentos de protesto dos anos 70 e 80 como idealmente femininos, como expressão da mulher total, ainda que isso não seja necessariamente reconhecido por suas integrantes e o embate entre os sexos dentro deles permaneça obviamente virulento. segundo k. w. brand, os novos movimentos sociais “não seguem mais a linha tradicional do movimento trabalhista”. em vez disso:

eles inflamam-se sobretudo em torno de problemas da reprodução social(…). de um lado, a progressiva destruição dos espaços de vida natural e colectiva, a crescente concentração tecnocrática de ordens sistémicas e de coerção, o perigo iminente de uma guerra atómica; de outro, tentativas de edificar contextos vitais de organização autónoma, voltados para as próprias necessidades, e de estender as possibilidades de participação política e de consciência individual – estes são os temas de primeiro plano dos movimentos políticos e contraculturais de protesto (brand, 1984, p. 9).

ora, seria possível objectar que os nossos movimentos de protesto e seus temas não são tão novos assim. como o próprio movimento feminista, eles tiveram seus precursores históricos. todo o processo de modernização, desde o séc. xix, foi acompanhado pelo surgimento de correntes de crítica à civilização dotadas de conteúdos análogos. na alemanha, por exemplo, podemos citar o movimento de reforma da vida (lebensreformbewegung), surgido na segunda metade do séc. xix e o movimento da juventude (jugendbewegung), que teve origem no início do séc. xx:

o lebensreformbewegung compunha-se de pequenos movimentos parciais, cujo objectivo comum – a despeito de toda a heterogeneidade – consistia na recriação de um modo de vida “natural” que assegurasse a unidade entre homem e natureza por meio da modificação da conduta individual. alimentação saudável, moradias em ambiente natural, cura através das forças naturais, contacto corporal com os elementos da natureza (luz, água) e uma vida em comunidade eram os pontos norteadores dessa específica concepção de mundo (raschke, 1985, p. 44).

o jugendbewegung buscava igualmente produzir a “unidade com a natureza” por meio da peregrinação e da vida grupal. de certa maneira, isso nos recorda o “acesso simpático à natureza” outrora imputado à bruxa ou à mulher. supostos espaços naturais eram buscados em espaços que, também supostamente, encontravam-se à margem da indústria.

salta aos olhos, porém, que tais movimentos de crítica à civilização davam mostras de um pendor masculino não apenas quanto à composição dos integrantes, mas também ao expressar sua exigência de uma nova relação com a natureza numa forma falicamente distorcida. logo surgiram no jugendbewegung, que originalmente guardara distância do patriotismo e da germanofilia, fortes correntes anti-semitas, racistas e nacionalistas. os partidários de tal movimento exigiam uma

reformulação nacional consoante às formas de organização da juventude. da comunidade dos grupos peregrinos surgiu por essa via a comunidade popular, do líder do grupo surgiu o líder do povo. camaradagem, lealdade e sectarismo foram realçados militarmente e guindados a virtudes políticas universalmente obrigatórias (raschke, 1985, p. 49).

em parte, as razões para tanto podem ser buscadas numa diferenciação contemporânea da classe média, que foi afectada e totalmente transformada pela ampliação do trabalho abstracto. foram justamente os “perdedores” masculinos desse período que se sentiram acossados pelo processo de modernização e reagiram com “regressão”.

no antigo movimento pacifista que começou a formar-se a partir de 1890, a participação feminina foi ao contrário relativamente grande e houve mesmo coincidências pessoais entre seus líderes e os do movimento feminista (cf. raschke, 1985, p. 42). neste último também era evidente, no entanto, o ideário de crítica à civilização. a massificação, a desespiritualização e a objectivação foram vistas assim como resultado da racionalidade masculina; o movimento feminino faria frente a tais fenómenos negativos com o “espiritual sentimento materno”. em muitos textos da parte mais moderada do movimento, porém, essa crítica era traspassada pelo ideário “popular”. a crítica da racionalidade masculina, portanto, não estava isenta de “identificações fálicas” (hass, 1988, p.85). isso pode ser ilustrado por uma passagem de gertrud baumer, num texto escrito em 1914:

na verdade o que esses tempos fizeram de nós? (…). como eles nos transformaram? (…). a experiência mais pungente, universal e arrebatadora é a revelação em nós da consciência do povo. não, não somos pessoas isoladas, apesar de todo o refinamento dissoluto (…) hoje não estamos sós, hoje somos um povo, unidade de sangue e de raça, de índole e de cultura (baumer, cit. por hass, 1988, p. 84).

poder-se-ia nesse sentido arriscar a afirmação de que, num certo estágio de evolução do patriarcado em sua forma-valor por volta da passagem do século, a bruxa reprimida fez seu retorno sob uma roupagem fálica – e isso no seio do próprio movimento feminista. o elemento sensível recalcado, que fora enfeixado na figura da mulher e graças ao qual ela acabara nas fogueiras dos autos de fé, fluiu nessa época rumo ao elemento popular falicamente distorcido, ou mesmo à truculência militar das corporações masculinas. essa distorção paradoxal revela apenas, porém, que a sensibilidade, a emotividade, a espontaneidade etc., não representam qualidades “femininas”, pura e simplesmente. trata-se antes de momentos cindidos no interior da natureza histórico-social da espécie, que podem manifestar-se de forma também estranha no polo sexual oposto. por certo se pode afirmar com alguma plausibilidade nesse sentido que, a exemplo da ideologia do “sentimento materno” dos primeiros movimentos feministas em específico, as correntes de crítica à civilização a partir de fins do século xix também ajudaram, em geral, a limpar o terreno para o fascismo (embora seja necessário aqui proceder a análises minuciosas, para evitar falsas generalizações). nefasta e catastrófica não foi a pura e simples tematização do carácter reprimido histórica e socialmente, mas a forma inconsciente e falicamente pervertida em que foi realizada.

é sobre esse pano de fundo de reflexão histórica que caberia a discussão dos “novos movimentos sociais”, na qual se analisa e critica já desde os anos 70 a suposta primazia da ideologia de sangue e de solo, também no caso das concepções feministas. tal crítica será falsa e imprecisa se, fundamentada ela própria num falso vínculo imediato, não levar em conta a estrutura patriarcal do valor como tal, nem sua evolução histórica. que o clamor pela natureza e a sensibilidade pudesse manifestar-se em forma falicamente distorcida ainda no fascismo está relacionado, a meu ver, com o facto de o princípio masculino do “trabalho” abstrato na época estar ainda em progresso. se as cisões internas da relação homem-mulher irrompem mais uma vez em toda a sociedade, a partir das décadas de 70 e 80, isso está ligado à obsolescência do próprio conceito de “trabalho” abstracto.

dessa nova situação histórica resultam, apesar de conteúdos análogos, diferenças decisivas entre as correntes críticas de hoje e as de então. ao contrário dessas últimas, os novos movimentos de finais do séc. xx distinguem-se precisamente pelo incisivo anti-racismo e antinacionalismo. suas preferências valorativas ressaltam o desdobramento próprio da personalidade e a igualdade de direitos. a participação numérica das mulheres é bastante grande e, além disso, a possibilidade de se imporem estruturas autoritárias (apesar de seu surgimento ocasional em seitas “psi”, por exemplo) é muito menor. feitas as contas, o lado de choque dos novos movimentos é mais “brando” que o dos antigos. todas essas diferenças não podem ser simplesmente ignoradas.

igualmente falso seria criticar a irracionalidade de ambos os movimentos críticos do ponto de vista iluminista ou racionalista (e portanto também “masculino”), isto é, despejar a criança junto com a água do banho. pois essa irracionalidade expressa o próprio “reverso”, cindido e obscuro, da socialização patriarcal do valor e, por via de consequência, da razão e do racionalismo masculinos. em forma distorcida, os movimentos de crítica à civilização encerram momentos de verdade, na medida em que representam um protesto irracional e imediatista conta a “lógica de consumo económico-empresarial” e contra o carácter mediato e abstracto da moeda. o fascismo, todavia, mostra por onde pode enveredar tal protesto inconsciente e distorcido. em seu falso imediatismo, estes movimentos talvez sempre contenham um potencial de barbárie, ainda que hoje isso se revele sob aspecto diverso do que antes da metade do século.

não se trata, portanto, de simplesmente render homenagem aos movimentos de crítica à civilização, mesmo que em sua forma actual. um imediato “regresso à natureza” não seria apenas impossível, mas também bárbaro e reaccionário. a noção heurística da “repressão das naturezas interna e externa”, absolutamente adequada para caracterizar a estrutura patriarcal, tem de ser por sua vez historicizada. o indivíduo (o homem e em igual medida a mulher) é parte da natureza. a assimilação de tais conhecimentos aparentemente banais é hoje mais urgente do que nunca. contudo, não há natureza pura e simples, na medida em que as ideias que a cercam acusam sempre um carácter histórico e cultural. não se pode simplesmente fazer que “retroceda” a roda da história. a cultura patriarcal do ocidente, em seu desenvolvimento, não encerra apenas um potencial destrutivo, mas também momentos de progresso num sentido plenamente positivo, como por exemplo a ampliação das necessidades, benefícios médicos, etc.. por isso o objectivo da crítica não pode ser o retrocesso a um nível de civilização aquém do já atingido. nesse respeito, as correntes de crítica à civilização, mesmo em sua forma hodierna, representam na melhor das hipóteses um mero estágio transitório. ainda assim, tais mudanças nas preferências dos novos movimentos sociais poderiam ser uma oportunidade ou um ponto de referência para, em vez de tomar o caminho de volta, finalmente ultrapassar o patriarcado em sua forma-valor.

os aspectos da reprodução social delegados “à mulher” neste patriarcado contêm “desde o início” os problemas essenciais que afloram de maneira clara e irrecusável no estágio final da socialização pelo valor. mas tal reconhecimento só se torna possível em nossos dias. na história até hoje, disparidades de toda sorte puderam ser problematizadas: a relação senhor-escravo, suserano-vassalo, capitalista-proletário; caracteristicamente, porém, todas elas erguem-se no plano homem-homem. só depois de meados do século xx foi possível vir à tona a problemática básica até então oculta do patriarcado ligado ao valor ¾ a cisão em termos da relação homem-mulher. só agora atingimos a raiz do problema, pois os mecanismos patriarcais passaram a conduzir-se com necessidade, e em todos os níveis, ad absurdum. embora já estivesse na ordem do dia no século passado, como problema supostamente isolado, a “questão da mulher” foi relegada a um segundo plano (sobretudo pela “questão de classe”) devido ao baixo grau de desenvolvimento da socialização pelo valor. somente depois que a antiga questão de classes passou para o segundo plano e se revelou um problema imanente ao patriarcado do valor, foi possível conduzir o patriarcado como tal, e portanto o valor como tal, ao centro das atenções críticas.

é certo que os novos movimentos de protesto em sua forma actual de imediatismo equívoco (pela qual não devemos derramar nossas lágrimas), já se encontram há anos em declínio e em parte já desapareceram sem deixar vestígios. uma vez que seus conteúdos se difundiram por toda a sociedade, houve uma crescente desradicalização. todavia, é mais do que provável que o leque de temas pelos quais eles se interessaram continue a seduzir os movimentos sociais no futuro. pois a problemática ecológica, pacifista e aquela vinculada à relação entre os sexos serão agravadas, em escala mundial, na mesma proporção que a crise económica do “trabalho” abstracto – e isso quanto mais evidente for o “colapso da modernização” (kurz, 1991) e a crise do patriarcado do valor.

13

“o valor é o homem”, não o homem como ser biológico, mas o homem como depositário histórico da objectivação valorativa. foram quase exclusivamente os homens que se comportaram como autores e executores da socialização pelo valor. eles puseram em movimento, embora sem o saber, mecanismos fetichistas que começaram a levar vida própria, cada vez mais independente, por trás de suas costas (e obviamente por trás das costas das mulheres). como nesse processo a mulher foi posta como o antípoda objectivo do “trabalhador” abstracto – antípoda obrigado a lhe dar sustentação feminina, em posição oculta ou inferior – , a constituição valorativa do fetiche já é sexualmente assimétrica em sua própria base e assim permanecerá até cair por terra. hoje parece chegada a hora em que este fim se aproxima historicamente, pois o homem deixou de ser literalmente “senhor” de seus próprios monstros e de si mesmo. o homem aparece como um aprendiz de feiticeiro, só que agora não há mais um mestre patriarcal capaz de consertar a situação.

georg simmel foi um homem que já no início do nosso século fez a observação crítica do pendor assimetricamente masculino de “nossa” cultura oficial. o quanto o carácter social masculino tem por centro o “trabalho” abstracto é a propósito demonstrado por simmel em forma que o ensaísmo agrega:

(…) a especialização que caracteriza nossas profissões e nossa cultura em geral é de natureza totalmente masculina. pois ela não constitui algo meramente externo, mas só é possível através da mais profunda particularidade psicológica do espírito masculino; concentrar-se numa tarefa absolutamente unilateral, diferenciada da personalidade como um todo, de modo a fazer com que a acção objectivamente especializada e a personalidade subjectiva desfrutem cada uma delas, por assim dizer, de uma vida isolada da outra. toda divisão do trabalho levada a extremos significa a separação entre o sujeito e seu ofício, o qual por sua vez é inserido numa correlação objectiva e sujeita-se às exigências de um todo impessoal, ao passo que os movimentos verdadeiramente subsjectivos e intrínsecos do indivíduo formam um mundo à parte e levam como que uma existência privada (simmel, 1985, p. 162).

há muito a esfera do “trabalho” abstracto deixou de ser propriedade exclusiva dos homens. o pressuposto patriarcal básico da relação de valor, porém, não foi por isso eliminado, mas apenas tornou-se precário e conflituoso. a despeito de toda a actividade remunerada, o “trabalho” abstracto não possui até hoje para as mulheres o mesmo poder fundador de identidade que para os homens. vê-se que o fetichismo do “trabalho” como “tautológico fim em si mesmo” e os critérios de sucesso por ele implicados estão enraizados na personalidade de cada homem. isso vale sobretudo, é claro, para os representantes de instituições político-económicas e culturais, mas não raro para o teórico masculino (razão pela qual as mulheres que fazem carreira nessas áreas sujeitam-se a duras provas de adaptação).

a divergência entre, de um lado, a acção objectivamente especializada que é inserida num contexto suprapessoal e, de outro, a personalidade subjectiva dela divorciada que se demora numa “esfera privada” tem seu correspondente directo no plano da determinação formal da sociedade. pois do mesmo modo que o homem abstrai-se a si mesmo como pessoa em sua actividade objectivamente especializada, assim também as mercadorias produzidas como “coisas sociais” não são objectos materiais e sensíveis, mas abstracções “fantasmagóricas”, segundo o termo de marx. em ambos os casos, o componente sensível – o substracto empírico-subjectivo – é excluído da relação social. simmel aliás chega ao ponto de desvelar aspectos de “despersonificação” no indivíduo masculino. ele insinua assim qual o “ganho neurótico” que uma tal despersonificação do homem rende: poder e, supostamente, “soberania” (cf. simmel, 1985, p. 207).

simmel, porém, admite as diferenças existentes entre os sexos (não somente as biológicas) como “dados da natureza”. em contraste ao homem cindido e não idêntico, ele vê a mulher quase como o indivíduo perfeito “em si”, que foi privado de seu poder de influência pelo desenvolvimento industrial. com isto, o sociólogo obstrui, inclusive para si mesmo, toda solução crítica para a relação assimétrica e fetichista entre os sexos. apesar de seu brilhante relato do vínculo entre os sexos, da maneira como ele se mostrava no início do século xx, simmel não vê (seguramente condicionado pela época) que as capacidades, qualidades e condutas atribuídas a homens e mulheres são produtos de uma longa evolução do patriarcado do valor. a mulher não é o “indivíduo mais perfeito”, mas tão somente a outra faceta, tomada como inferior, da cisão patriarcal, e por isso um ser pelo menos tão reduzido quanto o homem.

apenas à luz desse pano de fundo histórico e estrutural torna-se evidente o quanto é errado confirmar as mulheres em seu actual modo de ser ou mesmo redefinir como superioridade a sua posição de inferioridade e transformá-la em alternativa social, como é o caso de certas correntes feministas. christina thürmer-rohr, em suas pesquisas sobre a “tese da cumplicidade”, destacou o modo como se manifesta a alienação da mulher. ela critica sobretudo a eterna prontidão das mulheres (cuja origem está na socialização) de conformarem-se à realidade patriarcal por meio da identificação com sua existência limitada (cf. thürmer-rohr, 1989, pp. 143 e idem 1987, pp. 42) (15). mas devemos salientar, por sua vez, que as “vantagens” neuróticas que as mulheres podem tirar de seus papéis são contrastadas hoje pela possibilidade de distanciamento feminino em relação a estes mesmos papéis. são as mulheres que, cada dia mais, tomam a iniciativa nos conflitos sociais objectivos surgidos entre os sexos, como revela o movimento feminista, cujo desenvolvimento se dá sob múltiplas formas.

os mecanismos dominantes postos e mantidos em movimento pelo homem – mecanismos estes que se autonomizaram às suas costas – têm como consequência última produzir a própria “castradora” do homem. o patriarcado do valor foi obrigado a criar para si um refúgio onde pudesse resguardar-se de si próprio: a privacidade abstracta da família, a esfera de acção preferida da mulher. ora, são os próprios mecanismos produzidos insconscientemente pelo sexo masculino que tornam esse refúgio tão precário a ponto de fazer esvair o “bem-estar” (patológico) dos homens e permitir às mulheres sacudirem o seu jugo. de facto, a própria inserção feminina no “trabalho” abstracto significa não apenas a crescente alienação (“masculina”), mas ao mesmo tempo a maior independência da mulher em face de seu papel tradicional.

simultaneamente, o “perigo de castração” emana do próprio “trabalho” abstracto, que até agora agiu como doador de identidade. de facto, a onda de racionalização iniciada nas duas últimas décadas através de novas tecnologias e da globalização dos mercados não afecta apenas as mulheres com função remunerada (embora elas sejam as mais atingidas), mas também um número crescente de homens. como não se trata mais de um mero desemprego “cíclico”, mas sim estrutural, também nesse sentido uma nova qualidade é alcançada. ao mesmo passo, o absurdo e o poder de destruição do “trabalho” abstracto vêm a lume tanto subjectiva quanto objectivamente (crise ecológica). o próprio desenvolvimento tecnológico e estrutural torna cada dia mais obsoleto esse marco constitutivo da identidade masculina no patriarcado do valor. em todos os níveis, também os homens são forçados a reflectir sobre sua identidade tradicional, seja ela pessoal e subjectiva ou social. o “trabalho” abstracto não pode mais ser o campo social pelo qual se orienta a identidade masculina. os poucos movimentos masculinos já existentes, de resto, põem em questão os pontos de referência de sua identidade.

não se trata, portanto, de desviar mais uma vez o problema social contido na “questão da mulher” para o campo dos “princípios” abstractos, para as universalidades masculinas. a “perda de dimensão sensível” das relações, reiteradamente lamentada por sociólogos como ulrich beck, não pode ser apreendida nem criticada se o problema básico das cisões patriarcais que caracteriza a sociedade de valor não ocupar o cerne da crítica. a actual problemática da sociedade global, como vimos, é o produto da longa história patriarcal e cristã-ocidental da socialização pelo valor. essa forma que se tornou obsoleta não pode, entretanto, ser superada sem que a identidade masculina seja rompida. toda tentativa (aberta ou velada) de subtrair-se tanto subjectiva quanto teoricamente a tal exigência e estender sobre a crise do valor o véu da neutralidade sexual está condenada ao fracasso.

como a “questão da mulher” é tudo menos uma questão exclusivamente feminina, resulta por outro lado que se deve rejeitar a perspectiva na qual o “grupo” feminino (assim compreendido sociologicamente) apareça como simples “sujeito de interesses” ao lado de outros grupos sociais definidos, sendo tratado como um “grupo limite” ou quase como “classe” (ou substituto de classe, para os inspirados no velho marxismo). isso não somente porque as mulheres constituem a metade da humanidade (o que já seria razão suficiente), mas porque, na questão feminina de hoje em dia, a problemática global da sociedade em crise encontra sua expressão. a crise social e ecológica do mundo é produto dos “potenciais de destruição do sensível” presentes na forma do valor; tais potenciais, por sua vez, resultam do mecanismo patriarcal de cisões que, histórica e estruturalmente, se encontra na base de toda esta relação.

a fim de alcançar uma outra “razão sensível” e uma correspondente relação social que não seja mais estruturada pelo valor, seria necessário também ultrapassar a civilização actual e de certo modo “recuperar” as cisões patriarcais (em seu nível de civilização atingido na sociedade mundial) para compor o relacionamento da espécie. a fim de enfrentar a crise de modo produtivo, há que se constituir uma “esquerda feminista” que tenha consciência tanto subjectiva e pessoal quanto objectiva e social do mecanismo de cisão. um feminismo nesses moldes não se pode dar ao luxo de restringir-se às mulheres e ao movimento feminista. tanto homens quanto mulheres têm de compreender que “nossa” sociedade é determinada pelo patriarcado e pelo valor.

isso não exclui (ao contrário, torna ainda mais imprescindível) que as mulheres continuem a organizar-se autonomamente, nem que os homens tentem ganhar consciência de si próprios nos movimentos masculinos. o patriarcado, afinal, não se nos depara apenas como mecanismo externo; nós mesmos, homens e mulheres, somos o patriarcado, e o confronto directo entre os sexos é um dos aspectos centrais de sua crise. mas além disso é urgente a luta feminista de ambos os sexos contra as formas de existência sociais, objectivadas e reificadas das cisões patriarcais produzidas pelo valor. a superação do patriarcado é ao mesmo tempo a superação da forma fetichista da mercadoria, pois esta é o fundamento da cisão patriarcal. o objectivo revolucionário seria portanto um grau mais elevado de civilização, no qual homens e mulheres sejam capazes de fazer pelas próprias mãos sua história, para além do fetichismo e de suas atribuições sexuais.


notas

(1). “princípio” masculino é utilizado aqui não no sentido de um modo de ser a priori do homem e da mulher, mas na acepção de um “fato” social de fundo cultural e histórico (ver abaixo).

(2). ainda que tanto o trabalho doméstico como a educação dos filhos representem de certo modo o reverso do trabalho abstrato e não possam por isso ser apreendidos teoricamente com o conceito de “trabalho”, isso não significa que eles estejam absolutamente livres de aspectos instrumentais ou de normas “protestantes”. eis por que a meu ver se deve procurar um terceiro conceito, com o qual se possa definir com mais precisão teórica a actividade tradicional da mulher na esfera da reprodução, já que o termo “actividade” é por demais difuso e possui um carácter excessivamente genérico. além disso, por intermédio do conceito “actividade” poder-se-ia alimentar o velho mito da dona de casa ociosa. essa questão, longe de ser irrelevante, não pode entretanto ser desenvolvida aqui. na falta de tal esclarecimento, sirvo-me de ora em diante do insatisfatório conceito de “actividade” ao tratar do “trabalho” na esfera da reprodução.

(3). a bipartição do tema em socialização pelo valor e relação entre os sexos permitiu-me, de um lado, aderir nos principais tópicos à posição da revista krisis, mas, de outro, sentir um profundo mal estar no tocante ao tratamento teórico da chamada “questão da mulher”. além disso, pude verificar que as mulheres apenas a custo se fazem ouvir pela redacção masculina da revista. o estímulo para o presente texto deve-se assim não aos homens do grupo, mas às discussões que, conscientemente, foram mantidas com mulheres à margem do raio de influência da krisis.

(4). cf. peter klein, “demokratendämmerung”, krisis, 11, pp. 189 ss. a problemática dos sexos ocupa o espaço de uma simples nota de rodapé. algo diverso, obviamente, ocorre quando a relação entre os sexos é vista sob o prisma de um problema especial, como no ensaio “freiheit, gleichheit, schwesterlichkeit”, de norbert trenkle, krisis, 11. mas aqui também o problema dos sexos é tratado em vista da igualdade burguesa como princípio estrutural; a relação entre os sexos como princípio estrutural “autónomo” da sociedade burguesa e patriarcal não é levada em conta. em que pese toda a crítica ao poder sexista, etc., tal princípio desaparece por trás de conceitos genéricos e sexualmente neutros, e subsiste assim, em última instância, como mero fenômeno de concretização.

(5). ernst lohoff, por exemplo, ainda insiste na recusa do conceito de patriarcado e reporta-se a seu argumento no artigo “bruederchen und schwesterchen”, krisis, 11. cf. a nota seguinte.

(6). como afirma ernst lohoff: “o termo ‘patriarcado’ funciona como fórmula resumida para referir o domínio arbitrário dos homens sobre as mulheres. é possível que tal noção tenha um certo valor propagandístico. mas quando faz menção de integrar a teoria social, ela denuncia a si mesma no contato com a realidade das figuras do fetichismo. todas as relações fetichistas contrapõem o homem à mulher, mas sujeitam ambas as partes de modo equivalente. os homens não comandam um regimento patriarcal arbitrário, mas apenas executam (!) nas mulheres a relação fetichista de poder que é pressuposta. a coerção que exercem sobre as mulheres tem seu fundamento original não na vontade masculina, mas no princípio de síntese social que se encontra sempre pressuposto, anterior aos dominadores” (krisis, 11, p. 99). sem contar o fato de que a cultura teórica feminista já tenha, em geral, ultrapassado uma noção assim crua de dominação como a suposta por lohoff, nota-se aqui que o “princípio de síntese social” é superficialmente contraposto à relação assimétrica entre os sexos. a ideia de que a própria relação entre os sexos estruture o cerne do “princípio de síntese social”, como acredito ser o caso do patriarcado do valor, não pode assim vir a lume. além disso, com tais figuras argumentativas, (e justamente numa situação histórica em que o embate entre os sexos está na ordem do dia), não é preciso que o homem ponha a si mesmo a questão. ora, dessa forma ele estará, literalmente, reduzido a uma “marionete” do fetiche do valor.

(7). os comentários críticos a diversos aspectos dos textos de alguns membros do grupo krisis não podem aqui ser levados adiante. no que segue não se procederá a uma discussão explícita com os artigos do krisis publicados até agora sobre a relação entre os sexos nem a um debate minucioso com as posições da pesquisa feminista; ambos ocorrerão, no máximo, marginalmente. interessa-me apenas, sobretudo por razões de auto-esclarecimento, a primeira abordagem positiva de uma ideia básica que dispensa, de caso pensado, distinções meticulosas. trata-se assim, de um esboço geral que, como rudimento, possui carácter provisório.

(8). obviamente, não é que as diferenças biológicas entre os sexos sejam insignificantes. em todas as culturas determinadas noções prendem-se às características biológicas dos sexos e procede daí a repartição de actividades. o modo de ver tais noções, porém, é extremamente variado de sociedade para sociedade, de tribo para tribo, e pode até ser contraditório. em muitas culturas, além disso, existem três ou mais sexos. o sexo, portanto, é constituído socialmente (cf. gildemeister, 1992). nesse sentido, não é de todo aconselhável levar adiante as interessantes tentativas de lançar luz sobre a existência dos antigos matriarcados ou o “surgimento do patriarcado” (gerder lerner). no meu entender, é justo nesse ponto que o perigo de projecções anacrónicas é particularmente grande, e isso não apenas em vista das idealizações. gerder lerner, por exemplo, fala de “permuta de mulheres”, “objectivação da capacidade feminina de parir” e de aspectos análogos em sociedades anteriores à do valor. padrões de reflexão surgidos apenas no patriarcado do valor são portanto transplantados a sociedades alheias à forma-valor. tenho isso como extremamente problemático (cf. lerner, 1991).

(9). o fenómeno da cisão específica dos sexos é manifesto, por exemplo, na análise do surgimento das ciências (naturais) no início da idade moderna, na investigação de projectos iluministas e seus esboços literários e, tempos depois, na pesquisa sobre a personalidade do cientista masculino e na prática psicoterapêutica. mas também investigações empíricas sobre as tendências de diversos comportamentos morais em homens e mulheres ou na esfera da coeducação alinham-se com a tese avançada aqui (cf., entre outros, na fecunda literatura sobre esse tema, richter, 1979; bovenschen, 1980; gilligan, 1984; bennent, 1985; nölleke, 1985; norwood, 1986; brehmer, 1988; woesler de panafieu, 1989; bublitz, 1990; kofmann, 1990; list, 1990; welsshaupt, 1990). em tais investigações, não raro se faz uso do método psicanalítico. mesmo a tradicional marxista frigga haug comenta que as actividades e as condutas das mulheres são “cindidas e deslocadas (augelagert) do trabalho social em seu conjunto” (haug, 1990, p. 91), embora tome como ponto de partida o velho conceito marxista de “ontologia do trabalho (total)”, no qual aquilo que se acha cindido deve ser reintegrado como “trabalho reconhecido”. tal posição, naturalmente, está longe de uma “crítica do valor”.

(10). aqui, porém, trataremos sobretudo da dimensão histórica e das formas de expressão social da relação entre os sexos no patriarcado do valor, a fim de designar os pressupostos genéricos para uma posterior explanação conceitual.

(11). considero esta interpretação já “antiga” de bovenschen como ainda muito esclarecedora, ao contrário de novas tentativas de explicação, como as de gerhard schormann. schormann verifica (principalmente quanto à “função de bode expiatório”) pontos de contato entre os pogroms judeus na idade média, a caça às bruxas e o holocausto do nazistas. essa comparação parece-me todavia um tanto superficial, pois não é capaz de explicar porque tal grupo – e por quais motivos – iniciou justamente em tal época a perseguição. num comentário à parte, o autor considera desnecessário discutir os trabalhos científicos sobre o tema da caça às bruxas e debater as interpretações neles propostas (cf. schormann, 1991).

(12). a caça às bruxas tem de ser vista em conjunto com os movimentos heréticos que, já no século xiii, transferiram à igreja o ônus da legitimação. muitas mulheres integraram os movimentos heréticos. sabás, pactos com o diabo e cópulas com demónios só foram inventados no final de idade média. não se trata porém de um resquício pagão. infelizmente, não podemos nos deter aqui sobre os detalhes desse assunto (cf. honegger, 1978, pp. 34 ss.)

(13). as consequências para o caráter social feminino que resultam das análises da mudança social, como as referidas por beck, são tomadas em consideração por r. gildemeister. segundo ela, “ao lado do ensino dos padrões de acção vinculados aos sexos” surge também a “crescente possibilidade de reconhecimento da sua relatividade”. isso, porém, “sem que se arranhe o fundamental princípio binário de construção do relacionamento entre os sexos”. assim, com “a formação da ‘identidade sexual’ (…) existe hoje evidentemente um grande arsenal de conflituosidade nas mulheres, o qual em várias tentativas de definir com valor positivo o ‘caráter social feminino’ é apenas insuficientemente elaborado”. apoiando-se em hagemann-white, gildemeister vê hoje o “(…) ‘caráter social feminino’ como uma definição ambígua, já que nele impera uma ‘tensão’” (gildemeister, 1992, pp. 235 s.).

(14). gildemeister também questiona tais interpretações em relação a “tendências individualizantes”: “a flexibilização superficial das atribuições sexuais, por exemplo, não é atrelada na mesma medida a uma abertura real dos campos de ação. as tendências individualizantes parecem ser parte de um processo de desenvolvimento social em que a visão dos factos sociais é nebulosamente distorcida, encobrindo a realidade predominante do embate entre os sexos e sua relação assimétrica (…). e, com isso, a liberdade sob condição converte-se em armadilha: as tarefas reprodutivas, por exemplo, são em grau ainda maior incumbidas às mulheres ou por elas já realizadas. sob tais pressupostos, a polarização dos sexos conduz necessariamente a uma posterior politização da diferença entre os sexos” (gildemeister, 1992, p. 236, grifos no original). embora gildemeister não partilhe de minha estrutura teórica da sociedade, sua tese comprova que não há de modo algum uma dissolução dos papéis sexuais nos últimos tempos.

(15). nesse contexto, heidemarie bennent também critica as concepções de emancipação como as de marcuse ou richter, que mesmo nos tempos modernso vêem na “mulher” um ser menos alienado que o homem e transferem a ela, em última instância, o encargo de salvar a humanidade. quanto a isso, bennent enumera os aspectos negativos do caráter social feminino legado pela tradição. os principais tópicos são os seguintes: sensibilidade, que tem lugar apenas nas proximidades da esfera privada, segundo o lema “amigos, amigos, negócios à parte”, acompanhada ainda de uma formação sofrível das capacidades intelectuais e de raciocínio; acentuado consumismo, que visa compensar a exclusão da esfera pública; recusa de pretensões próprias (“abnegação”), para contrabalançar a alienação do homem na esfera do trabalho; pendor ao conservadorismo e à aceitação do que lhe é dado graças a seu enclausuramento e à formação deficiente de suas capacidades intelectuais (cf. bennent, 1985, pp. 227 ss.). além disso, a glorificação do caráter social feminino como pretensa alternativa ignora totalmente que tal caráter, em razão das mudanças sociais, tornou-se ele próprio ambíguo nos últimos anos.


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tradução portuguesa de josé marcos macedo (que agradece a robert schwarz pela ajuda na tradução de termos específicos) publicada em s. paulo, novos estudos – cebrap, nº. 45 – julho de 1996, pp. 15-36.

politicas feministas – bell hooks

10-Jan-15

políticas feministas: de onde partimos1

bell hooks2

posto de maneira simples, feminismo é um movimento para acabar com o sexismo, a exploração e a opressão sexistas. esta foi a definição que ofereci em feminist theory: from margin to center há mais de 10 anos. minha esperança era de que então ela se tornasse uma definição comum que todo mundo usaria. eu gostava dela porque não significava que os homens eram o inimigo. denunciar o sexismo como o problema foi direto ao cerne da questão. praticamente, é uma definição que indica que toda ação e pensamento sexistas são o problema, seja quem for que perpetue isto, mulher ou homem, criança ou adultæ. e é também ampla o bastante para incluir um entendimento de sexismo sistemático institucionalizado3. como definição, é aberta. a compreensão do que é feminismo implica que a pessoa tem que necessariamente entender o que é sexismo.

como muitas ativistas a favor de políticas feministas sabem, muitas pessoas não entendem o que é o sexismo, ou se entendem, elas não pensam que seja um problema. milhares de pessoas pensam que feminismo é sempre e somente sobre mulheres buscando ser iguais a homens. e uma grande maioria dessas pessoas acha que feminismo é anti-homem. o desconhecimento que elas têm sobre políticas feministas reflete a realidade de que muitas delas aprendem sobre feminismo nos meios patriarcais de comunicação de massa. o feminismo de que elas tanto ouvem é protagonizado por mulheres que estão primeiramente comprometidas com a igualdade de gênero – salários iguais para funções iguais, e algumas homens dividindo com as mulheres os cuidados da casa e das crianças. elas vêem que aquelas mulheres são usualmente brancas e materialmente privilegiadas. elas sabem, pela imprensa, que a liberação feminina focaliza a liberdade de fazer abortos, de ser lésbica, a reação ao estupro e à violência doméstica. dentro dessas questões muitas pessoas concordam com a idéia de igualdade entre gêneros no local de trabalho – salários iguais para funções iguais.

como nossa sociedade continua a ser, antes de tudo, de uma cultura “cristã”, milhares de pessoas continuam a acreditar que deus ordenou que as mulheres fossem subordinadas aos homens no trabalho doméstico. mesmo que muitas mulheres tenham entrado no mercado de trabalho, mesmo que muitas famílias sejam chefiadas por mulheres que são as únicas provedoras, a visão de vida doméstica que continua a dominar o imaginário nacional é uma em que a lógica da dominação masculina está intacta, estando os homens presentes nos lares ou não. a noção distorcida sobre o movimento feminista que o entendeu como anti-homem trouxe consigo a assunção distorcida de que todos os espaços femininos seriam necessariamente ambientes em que o pensamento patriarcal e sexista estaria ausente. muitas mulheres, mesmo aquelas envolvidas em políticas feministas, escolheram também acreditar nisto.

houve, de fato, uma grande porção de sentimento anti-homem entre as ativistas da primeira onda feminista que estavam respondendo com raiva à dominação masculina. essa raiva ante a injustiça foi o impulso da criação de um movimento de libertação feminina. nos primórdios do feminismo, muitas das ativistas (a maioria das quais era mulheres brancas) tiveram sua consciência despertada sobre a natureza da dominação masculina quando elas estava trabalhando em ambientes anti-classista e anti-racista com homens que estavam proclamando a importância da liberdade enquanto subordinavam mulheres em suas categorias. não importando que fossem mulheres brancas lutando pelo socialismo, mulheres negras lutando pelos direitos civis e libertação negra, ou mulheres indígenas lutando por direitos indígenas, estava óbvio que os homens queriam liderar, e queriam que as mulheres os seguissem. a participação nessas lutas radicais pela liberdade acordou o espírito de rebelião e resistência das mulheres progressistas e as levou em direção à libertação feminina contemporânea.

conforme o feminismo contemporâneo progrediu, conforme mulheres foram percebendo que os homens não eram o único grupo na sociedade que sustentava comportamento e pensamento sexistas – percebendo que mulheres podiam ser tão sexistas quanto eles –, o sentimento anti-homem não mais conformou a consciência do movimento. o foco mudou para um esforço geral em criar justiça de gênero. mas mulheres não poderiam se unir a um outro feminismo sem confrontar nosso pensamento sexista. a sororidade não poderia ser poderosa enquanto as mulheres estivessem competitivamente em guerra umas contra as outras. visões utópicas de uma sororidade baseada unicamente na consciência da realidade de que todas as mulheres estavam, de alguma maneira, vitimadas pela dominação masculina começaram a ser rompidas por discussões de classe e raça. discussões sobre diferenças de classe aconteceram cedo no feminismo contemporâneo, precedendo discussões sobre raça. diana press publicou em sua coleção de ensaios classe e feminismo idéias revolucionárias sobre divisão de classe entre mulheres no início dos anos 70. essas discussões não vulgarizaram a insistência feminista no mote de que “a irmandade é poderosa”, elas simplesmente enfatizaram que só podíamos nos tornar irmãs na luta através da confrontação das maneiras que as mulheres – pelo sexo, classe e raça – dominavam e exploravam outras mulheres, e criaram uma plataforma política que dava lugar a essas diferenças.

mesmo que mulheres negras individualmente4 fossem ativas no movimento feminista contemporâneo desde seus primórdios, elas não foram os sujeitos que se tornaram “estrelas” do movimento, que atraíram a atenção dos meios de comunicação. muitas vezes mulheres negras individualmente ativas no movimento feminista eram feministas revolucionárias (como muitas brancas lésbicas). elas já estavam em divergência com feministas reformistas que terminantemente queriam projetar uma imagem do movimento como sendo somente sobre mulheres ganhando igualdade com homens no sistema existente. mesmo antes que raça se tornasse uma questão debatida em círculos feministas estava evidente para as mulheres negras (e para suas aliadas revolucionárias na luta) que elas nunca teriam igualdade dentro do patriarcado de supremacia branca capitalista existente.

desde seus movimentos iniciais o movimento feminista estava dividido. pensadoras reformistas decidiram enfatizar a equiparação de gênero. pensadoras revolucionárias não queriam simplesmente alterar o sistema vigente para que as mulheres ganhassem mais direitos. nós queríamos transformar esse sistema, trazer um fim ao patriarcado e ao sexismo. como os meios de comunicação patriarcais não estavam interessados numa visão mais revolucionária ela nunca recebeu atenção na imprensa dominante. a imagem de “liberação feminina” que capturou e ainda conforma o imaginário público era aquela que representava as mulheres desejando o que os homens tinham. e essa foi a imagem mais fácil de realizar. mudanças na economia nacional, depressão econômica, desemprego e coisas do tipo fizeram o clima oportuno para as pessoas desta nação aceitassem a noção de igualdade de gênero no mercado de trabalho

dada a realidade do racismo, fazia sentido que os homens brancos estivessem dispostos a considerar os direitos de mulheres quando a garantia de tais direitos pudesse servir aos interesses de manutenção da supremacia branca. nós não podemos jamais esquecer que mulheres brancas começaram a declarar sua necessidade de liberdade depois dos direitos civis, justamente no momento em que a discriminação racial estava acabando e pessoas negras, especialmente homens negros, poderiam vir a conquistar igualdade com homens brancos no mercado de trabalho. o pensamento do feminismo reformista que enfatizou a equiparação com homens no mercado de trabalho ofuscou as fundações originais de radicalidade do feminismo contemporâneo que clamava por reformas bem como por pela reestruturação total da sociedade para que a nação fosse fundamentalmente anti-sexista.

muitas mulheres, especialmente brancas privilegiadas, pararam mesmo de considerar as visões feministas revolucionárias uma vez que começaram a ganhar poder econômico dentro da estrutura social existente. ironicamente, o pensamento feminista revolucionário era mais aceito e acolhido nos círculos acadêmicos. nesses círculos a produção de teoria feminista revolucionária progrediu, mas ela era freqüentemente inacessível ao público. ela se tornou e permanece um discurso privilegiado disponível para aquelas entre nós que somos altamente escolarizadas, bem instruídas e usualmente privilegiadas materialmente. trabalhos como “feminist theory: from margin to center”, que oferecem uma visão libertadora da transformação feminista, nunca receberam atenção da imprensa dominante. milhares de pessoas nunca ouviram falar desse livro. elas não rejeitaram a mensagem que ele traz: elas nem sabem que mensagem é essa.

enquanto era interessante para o patriarcado de supremacia branca capitalista dominante apagar o pensamento feminista revolucionário que não era anti-homem nem voltado à garantia do direito de mulheres serem iguais a homens, feministas reformistas também ansiavam por silenciar sua força. feministas reformistas começaram sua caminhada por mobilidade social. elas podiam se libertar da dominação masculina no mercado de trabalho e ser mais autônomas em seus estilos de vida. enquanto o sexismo não acabava, elas podiam maximizar sua liberdade dentro do sistema sexista. e elas poderiam contar com a existência de uma classe social mais baixa de mulheres exploradas para fazer o trabalho sujo que elas se recusavam a fazer. pela aceitação e mesmo colaboração com a subordinação de mulheres operárias e pobres, elas não só se aliaram ao patriarcado existente e seu sexismo concomitante, mas se deram o direito de levar vidas duplas em que eram iguais aos homens quando no mercado de trabalho, e em casa quando quisessem ser. se elas fossem lésbicas5 teriam o privilégio de ser iguais aos homens no mercado de trabalho enquanto usufruíam do poder de classe para criar estilos de vida doméstica em que podiam escolher ter pouco ou nenhum contato com homens.

feminismo como estilo de vida levou à noção de que poderia haver tantas versões de feminismo quanto houvesse mulheres. de repente, a política foi lentamente removida do feminismo. e a noção imperante foi de que não importa a perspectiva política de uma mulher, seja ela conservadora ou liberal, ela pode encaixar o feminismo em seu modo de vida. obviamente tal noção fez o feminismo mais palatável porque traz dentro de si a idéia de que as mulheres podem ser feministas sem questionar e mudar fundamentalmente a si mesmas ou sua cultura. por exemplo, vamos pegar a questão do aborto. se o feminismo é um movimento para acabar com a opressão sexista, então uma pessoa não pode ser anti-escolha e ser feminista. uma mulher pode ser veemente em dizer que nunca escolherá por fazer um aborto ao mesmo tempo em que afirma seu apoio ao direito que as mulheres têm de escolher abortar e ainda ser uma ativista de políticas feministas. ela não pode ser anti-aborto e ser uma ativista feminista. da mesma forma, não pode haver algo como “feminismo de poder” se a visão de poder evocada é poder conseguido graças à exploração e opressão de outras pessoas.

as políticas feministas estão perdendo terreno porque o movimento feminista perdeu definições nítidas. nós temos essas definições. vamos retomá-las. vamos compartilhá-las. vamos começar de novo. vamos fazer camisetas e adesivos de pára-choque e cartões postais e hip-hop, comerciais de televisão e rádio, anúncios em todo lugar e em outdoor, e todo tipo de material impresso que fale para o mundo sobre feminismo. nós podemos compartilhar a mensagem, simples mas poderosa, de que feminismo é um movimento pela eliminação da opressão sexista. vamos começar com isto. deixar o movimento recomeçar.

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notas

1- tradução livre de feminist politics – where we stand, primeiro capítulo de feminism is for everybody, bell hooks. publicado pela south end press, cambridge – ma, 2000.

2-bell hooks é uma das autoras feministas negras que mais tem produzido trabalhos, artigos e livros sobre feminismo e educação de uma perspectiva de raça e radicalmente engajada com transformações sociais, culturais, políticas e íntimas.

3- o patriarcado, como hooks indica na introdução do livro.

4- no sentido de estarem agindo isoladamente, não organizadas em coletivos de mulheres negras.

5- hooks usa “se elas escolhessem o lesbianismo” mas esse termo não parece condizente com as demandas de muitos movimentos de lesbiandade, homo e transexualidade que preferem “orientação sexual” à “escolha” ou “opção”. acho que a autora tenta fazer, no próprio uso do termo usado, uma provável crítica à lesbiandade como escolha guiada pelo que é mais conveniente, confortável ou mesmo na moda, lesbiandade como comportamento ou estilo de vida. mas é difícil conciliar uma idéia de “conforto” com lesbiandade quando vivemos numa sociedade tão violentamente lesbofóbica. o próprio termo “estilo de vida” deve ser problematizado pela carga liberal y consumista que tem, quando evoca uma escolha que se faz entre tantas outras pelo que é mais aceitável socialmente, o que soa um pouco como campanha publicitária de cigarro. isso não ressoa muito uma orientação deliberada por determinado caminho ou modo de viver, se relacionar afetivo-sexualmente. bell hooks foi muito criticada, na década de 70, por ativistas lesbianas por publicar um livro sobre mulheres negras bastante heterocentrado, em que não abordou relações lesbianas. em outro capítulo de “feminismo é pra todo mundo”, ela discute isso.

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retirado do site confabulando.

alisando nossos cabelos, bell hooks

10-Jan-15

apesar das diversas mudanças na política racial, as mulheres negras continuam obcecadas com os seus cabelos, e o alisamento ainda é considerado um assunto sério. insistem em se aproveitar da insegurança que nós mulheres negras sentimos com respeito a nosso valor na sociedade de supremacia branca!

nas manhãs de sábado, nos reuníamos na cozinha para arrumar o cabelo, quer dizer, para alisar os nossos cabelos. os cheiros de óleo e cabelo queimado misturavam-se com os aromas dos nossos corpos acabados de tomar banho e o perfume do peixe frito.

não íamos ao salão de beleza. minha mãe arrumava os nossos cabelos. seis filhas: não havia a possibilidade de pagar cabeleireira. naqueles dias, esse processo de alisar o cabelo das mulheres negras com pente quente (inventado por madame c. j. waler) não estava associado na minha mente ao esforço de parecermos brancas, de colocar em prática os padrões de beleza estabelecidos pela supremacia branca. estava associado somente ao rito de iniciação de minha condição de mulher. chegar a esse ponto de poder alisar o cabelo era deixar de ser percebida como menina (a qual o cabelo podia estar lindamente penteado e trançado) para ser quase uma mulher. esse momento de transição era o que eu e minhas irmãs ansiávamos.

fazer chapinha era um ritual da cultura das mulheres negras, um ritual de intimidade. era um momento exclusivo no qual as mulheres (mesmo as que não se conheciam bem) podiam se encontrar em casa ou no salão para conversar umas com as outras, ou simplesmente para escutar a conversa. era um mundo tão importante quanto a barbearia dos homens, cheia de mistério e segredo.

tínhamos um mundo no qual as imagens construídas como barreiras entre a nossa identidade e o mundo eram abandonadas momentaneamente, antes de serem reestabelecidas. vivíamos um instante de criatividade, de mudança.

eu queria essa mudança mesmo sabendo que em toda a minha vida me disseram que eu era “abençoada” porque tinha nascido com “cabelo bom” – um cabelo fino, quase liso –, não suficientemente bom, mais ainda assim era bom. um cabelo que não tinha o “pé na senzala”, não tinha carapinha, essa parte na nuca onde o pente quente não consegue alisar. mas esse “cabelo bom” não significava nada para mim quando se colocava como uma barreira ao meu ingresso nesse mundo secreto da mulher negra.

eu regozijei de alegria quando a minha mãe finalmente decretou que eu poderia me somar ao ritual de sábado, não mais como observadora, mas esperando pacientemente a minha vez. sobre este ritual escrevi o seguinte:

para cada uma de nós, passar o pente quente é um ritual importante. não é um símbolo de nosso anseio em tornar-nos brancas. não existem brancos no nosso mundo íntimo. é um símbolo de nosso desejo de sermos mulheres.

é um gesto que mostra que estamos nos aproximando da condição de mulher […] antes que se alcance a idade apropriada, usaremos tranças; tranças que são símbolo de nossa inocência, juventude, nossa meninice. então, as mãos que separam, penteiam e traçam nos confortam. a intimidade e a sina nos confortam.

existe uma intimidade tamanha na cozinha aos sábados quando se alisa o cabelo, quando se frita o peixe, quando se fazem rodadas de refrigerante, quando a música soul flutua sobre a conversa.

é um instante sem os homens. um tempo em que trabalhamos como mulheres para satisfazer umas as necessidades das outras, para nos proporcionarmos um bem-estar interior, um instante de alegrias e boas conversas.

levando em consideração que o mundo em que vivíamos estava segregado racialmente, era fácil desvincular a relação entre a supremacia branca e a nossa obsessão pelo cabelo. mesmo sabendo que as mulheres negras com cabelo liso eram percebidas como mais bonitas do que as que tinham cabelo crespo e/ou encaracolado, isso não era abertamente relacionado com a idéia de que as mulheres brancas eram um grupo feminino mais atrativo ou de que seu cabelo liso estabelecia um padrão de beleza que as mulheres negras estavam lutando para colocar em prática.

esse momento é um marco histórico e ideológico do qual emergiu o processo de alisamento do cabelo de mulheres negras. esse processo foi ampliado de maneira tal que estabeleceu um espaço real de formação de íntimos vínculos pessoais da mulher negra mediante uma experiência ritualística compartilhada.

o salão de beleza era um espaço de aumento da consciência, um espaço em que as mulheres negras compartilhavam contos, lamúrias, atribulações, fofocas – um lugar onde se poderia ser acolhida e renovar o espírito.

para algumas mulheres, era um lugar de descanso em que não se teria de satisfazer as exigências das crianças ou dos homens. era a hora em que algumas teriam sossego, meditação e silêncio. entretanto, essas implicações positivas do ritual do alisamento do cabelo ponderavam, mas não alteravam as implicações negativas. essas existiam concomitantemente.

dentro do patriarcado capitalista – o contexto social e político em que surge o costume entre @s negr@s de alisarmos os nossos cabelos –, essa postura representa uma imitação da aparência do grupo branco dominante e, com freqüência, indica um racismo interiorizado, um ódio a si mesm@ que pode ser somado a uma baixa auto-estima.

durante os anos 1960, @s negr@s que trabalhavam ativamente para criticar, desafiar e alterar o racismo branco, sinalavam a obsessão d@s negr@s com o cabelo liso como um reflexo da mentalidade colonizada. foi nesse momento em que os penteados afros, principalmente o black, entraram na moda como um símbolo de resistência cultural à opressão racista e foram considerados uma celebração da condição de negr@.

os penteados naturais eram associados à militância política. muito@s jovens negr@s, quando pararam de alisar o cabelo, perceberam o valor político atribuído ao cabelo alisado como sinal de reverência e conformidade frente às expectativas da sociedade.

entretanto, quando as lutas de libertação negra não conduziram à mudança revolucionária na sociedade, não se deu mais tanta atenção à relação política entre a aparência e a cumplicidade com o segregacionismo branco, e aquel@s que outrora ostentavam os seus blacks começaram a alisar o cabelo.

sem ficar atrás dessa manobra para suprimir a consciência negra e os esforços das pessoas negras por serem sujeitos que se autodefinem, as empresas brancas começaram a reconhecer pessoas negras, especialmente as mulheres negras, como consumidoras potenciais de produtos que poderiam ser subministrados, incluindo aqueles para os cuidados com o cabelo. permanentes especialmente concebidos para as mulheres negras eliminaram a necessidade do pente quente e da chapinha. esses permanentes não só custavam mais caro, mas também levavam todas as economias e ganâncias das comunidades negras, especificamente dos bolsos das mulheres negras que anteriormente colhiam benefícios materiais (ver como o capitalismo desenvolveu a américa negra, de manning marable, south end press).

o contexto do ritual havia desaparecido, não haveria mais a formação de vínculos íntimos e pessoais entre as mulheres negras. sentadas embaixo de secadores barulhentos, as mulheres negras perderam um espaço para o diálogo, para a conversa criativa.

desposadas desses rituais de formação de íntimos vínculos pessoais positivos, que rodeavam tradicionalmente a experiência, o alisamento parecia cada vez mais um significante da opressão e da exploração da ditadura branca.

o alisamento era claramente um processo no qual as mulheres negras estavam mudando a sua aparência para imitar a aparência dos brancos. essa necessidade de ter a aparência mais parecida possível à dos brancos, de ter um visual inócuo, está relacionada com um desejo de triunfar no mundo branco. antes da integração, @s negr@s podiam se preocupar menos sobre o que os brancos pensavam sobre o seu cabelo.

em discussão sobre a beleza com mulheres negras em spelman college, as estudantes falavam sobre a importância de ter o cabelo liso quando se procura um emprego. estavam convencidas, e provavelmente com toda a razão, de que sua oportunidade de encontrar bons empregos aumentaria se tivessem cabelo alisado. quando se pediam mais detalhes sobre essa assertiva, essas mulheres se concentravam na conexão entre as políticas radicais e os penteados naturais, seja com ou sem tranças. uma jovem que tinha o cabelo natural e curto falava até mesmo em comprar uma peruca de cabelo liso e comprido na hora de procurar emprego.

nenhuma das participantes pensava na possibilidade de que nós mulheres negras éramos livres para usar os nossos cabelos naturais sem refletir sobre as possíveis conseqüências negativas. com freqüência, @s adult@s negr@s, @s mais velh@s, especialmente pais/mães, respondiam negativamente aos penteados naturais. contei ao grupo que, quando cheguei em casa com o cabelo trançado logo após conseguir um emprego em yale, os meus pais me disseram que eu tinha um aspecto desagradável.

apesar das diversas mudanças na política racial, as mulheres negras continuam obcecadas com os seus cabelos, e o alisamento ainda é considerado um assunto sério. por meio de diversas práticas, [a supremacia branca] insiste em se aproveitar da insegurança que nós mulheres negras sentimos a respeito de nosso valor na sociedade de supremacia branca. conversando com grupos de mulheres em diversas cidades universitárias e com mulheres negras em nossas comunidades, parece haver um consenso geral sobre a nossa obsessão com o cabelo, que geralmente reflete lutas contínuas com a auto-estima e a auto-realização. falamos sobre o quanto as mulheres negras percebem seu cabelo como um inimigo, como um problema que devemos resolver, um território que deve ser conquistado. sobretudo, é uma parte de nosso corpo de mulher negra que deve ser controlado. a maioria de nós não foi criada em ambientes nos quais aprendêssemos a considerar o nosso cabelo como sensual, ou bonito, em um estado não processado. muitas de nós falamos de situações nas quais pessoas brancas pedem para tocar o nosso cabelo natural e demonstram grande surpresa quando percebem que a textura é suave ou agradável ao toque.

aos olhos de muita gente branca e outras não-negras, o black parece palha de aço ou um casco. as respostas aos estilos de penteado naturais usados por mulheres negras revelam comumente como o nosso cabelo é percebido na cultura branca: não só como feio, como também atemorizante. nós tendemos a interiorizar esse medo. o grau em que nos sentimos cômodas com o nosso cabelo reflete os nossos sentimentos gerais sobre o nosso corpo.

em nosso grupo de apoio de mulheres negras, irmãs do yam, conversávamos sobre como não gostávamos de nossos corpos, especialmente nossos cabelos. sugeri ao grupo que considerássemos o nosso cabelo como se ele não fizesse parte do nosso corpo, mas que se percebesse como algo separado, de novo um território que deve ser controlado, domado.

para mim era importante que fosse vinculada a necessidade de controlar o cabelo com a repressão sexual. tendo curiosidade sobre o que passavam as mulheres negras que faziam chapinha ou que fizessem amaciamento, permanente ou outras químicas, quando refletiam sobre a relação do cabelo alisado e a prática sexual, perguntei se as pessoas se preocupavam com o cabelo delas, se temiam que seus pares tocassem os seus cabelos. sempre tive a impressão de que o cabelo alisado chama a atenção pelo desejo de que permaneça no mesmo lugar. não foi surpreendente que muitas mulheres negras respondessem que se sentiam incomodadas se as pessoas se concentravam e davam muita atenção aos seus cabelos, sentiam como se o seu cabelo estivesse desordenado, fora de controle. isso porque aquelas de nós que já libertaram o seu cabelo e deixamos que ele se movimente na direção que ele queira, freqüentemente, recebemos comentários negativos.

olhando fotografias de mim mesma e das minhas irmãs de quando tínhamos o cabelo alisado no segundo grau, percebi que parecíamos ter mais idade do que quando deixamos o cabelo natural. é irônico viver em uma cultura que enfatiza tanto a necessidade das mulheres serem ou parecerem jovens, mas por outro lado incentiva as mulheres negras a mudarem os seus cabelos de maneira tal que parecemos ser mais velhas.

no último semestre, estávamos lendo o olho mais azul, de toni morrison, em uma aula de literatura. pedi às/aos estudantes que escrevessem textos autobiográficos, que refletissem sobre o que el@s pensavam sobre a relação entre raça e beleza física. uma grande maioria das mulheres negras escreveu sobre os seus cabelos. quando eu perguntei isoladamente a algumas delas porque continuavam alisando o cabelo, muitas atestaram que os penteados naturais não ficavam bonitos nelas, ou que demandavam muito trabalho. emily, uma das minhas favoritas, de cabelo curto, sempre alisava, e eu lhe questionava e desafiava, até que ela me explicou de maneira muito convincente que um penteado natural ficaria horrível no seu rosto, que ela não tinha a fronte nem a estrutura óssea apropriada.

no semestre seguinte, nos reencontramos e ela me contou que durante as férias tinha ido ao salão fazer o permanente e, enquanto esperava, pensou sobre as leituras e as discussões de sala de aula e percebeu que estava realmente muito incomodada e amedrontada com a idéia de que as pessoas achassem que ela não seria mais atraente se não alisasse o cabelo. reconheceu que esse medo estava enraizado nos sentimentos de baixa auto-estima. decidiu fazer uma mudança e se surpreendeu, pois estava linda e muito atraente. conversamos bastante sobre como dói perceber a relação entre a opressão racista e os argumentos que usamos para convencer a nós mesmas e aos outros de que não somos belos ou aceitáveis como somos.

em inúmeras discussões com mulheres negras sobre o cabelo, ficou constatado um manifesto de que um dos fatores mais poderosos que nos impedem de usarmos o cabelo sem química é o temor de perder a aprovação e a consideração das outras pessoas. as mulheres negras heterossexuais falaram sobre o quanto os homens negros respondem de forma mais favorável quando se tem um cabelo liso ou alisado. entre as homossexuais, muitas afirmam que não alisavam o cabelo por uma reflexão de que esse gesto estaria vinculado à heterossexualidade e à necessidade de aprovação do macho.

lembro-me de ter visitado uma amiga com seu par, um homem negro, em nova york, faz anos, e tivemos uma intensa discussão sobre o cabelo. ele se encarregou de me dizer que eu poderia ser uma irmã excelente (bonita) se fizesse algo (“dar um jeito”) com o meu cabelo. por dentro pensei que a minha mãe o tinha contratado. o que me lembro é do espanto quando com calma e entusiasmo garanti que eu gostava do tato no cabelo não processado.

quando @s estudantes lêem sobre raça e beleza física, várias mulheres negras descrevem fases da infância em que estavam atormentadas e obcecadas com a idéia de ter cabelos lisos, já que estavam tão associados à idéia de essas serem desejadas e amadas. poucas mulheres receberam apoio de suas famílias, amig@s e parceir@s amoros@s quando decidiam não alisar mais o cabelo. e temos várias histórias para contar sobre os conselhos recebidos de todo o mundo, até mesmo de pessoas completamente estanhas, que se sentem gabaritadas para atestar que parecemos mais bonitas se “arrumamos” (alisamos) o cabelo.

quando eu ia para a minha entrevista de emprego em yale, conselheiras brancas que nunca haviam feito nenhum comentário sobre o meu cabelo me animaram para que eu não usasse tranças ou um penteado natural grande (black) na entrevista. elas não disseram “alisa o seu cabelo”, sugeriam que eu mudasse o meu estilo de cabelo de modo tal que parecesse ao máximo ao cabelo delas, indicando certo conformismo. usei tranças e ninguém pareceu notar. quando fui contratada, não perguntei se importava ou não que eu usasse tranças. conto essa história às/aos minhas/meus alun@s para que saibam que nem sempre temos de renunciar a nossa capacidade de ser pessoas que se autodefinem para ter sucesso no emprego.

já percebi que o meu estilo de cabelo às vezes incomoda @s estudantes durante as minhas conferências. certa vez, em uma conferência sobre mulheres negras e liderança, entrei em um auditório repleto com o meu cabelo sem química, fora de controle e desordenado. a grande maioria das mulheres negras que ali estavam tinha o cabelo alisado. muitas delas foram hostis, com olhares de desdém. senti como se estivesse sendo julgada, como uma marginal, indesejável. tais julgamentos se fazem especialmente direcionado às mulheres negras nos estados unidos que resolvem usar dreads. são consideradas, com toda razão, a antítese do alisamento, o que torna o seu estilo uma decisão política. freqüentemente, as mulheres negras expressam desprezo por aquelas de nós que escolhemos essa aparência.

curiosamente, ao mesmo tempo em que o cabelo natural é um motivo de desatenção e desdém, somos testemunhas da volta da moda das pinturas, mechas loiras, cabelo comprido. em seus escritos, minhas alunas negras descreveram o uso de mechas amarelas em suas cabeças quando eram meninas, para fingir ter o cabelo comprido e loiro. recentemente as cantoras que estão trabalhando para ser atrativas para a platéia branca, para serem consideradas como artistas que ampliaram o público, usam implantes e apliques para conseguir cabelos compridos e lisos. parece haver um nexo definido entre a popularidade de uma artista negra com auditórios brancos e o grau em que ela trabalha para parecer branca, ou para encarnar aspectos do estilo branco. tina tuner e aretha franklin foram percussoras dessa tendência, as duas pintavam o cabelo de loiro. na vida cotidiana vemos cada vez mais mulheres usando cada vez mais químicas para ter cabelo liso e loiro.

em uma de minhas conversas que se concentravam na construção social da identidade da mulher negra dentro de uma sociedade sexista e racista, uma mulher negra veio até mim no final da discussão e me contou que sua filha de sete anos de idade estava deslumbrada com a idéia do cabelo loiro, de tal forma que ela havia feito uma peruca que imitava os cachinhos dourados. essa mãe queria saber o que estava fazendo de errado em sua tutela, já que sua casa era um lugar onde a condição de negr@ era afirmada e celebrada. mas ela não havia considerado que o seu cabelo alisado era uma mensagem para a sua filha: nós mulheres negras não somos aceitas a menos que alteremos nossa aparência ou textura do cabelo.

recentemente conversei com uma de minhas irmãs mais novas sobre o seu cabelo. ela usa tintura de cores berrantes em diversos tons de vermelho. no que lhe diz respeito, essas escolhas de cabelo pintado e alisado estavam diretamente relacionadas com sentimentos de baixa auto-estima. ela não gosta dos seus traços e acredita que o estilo de cabelo transforma a sua fisionomia. o que eu percebia era que a escolha dela, na realidade, chamava mais atenção para a sua fisionomia e era tudo o que ela pretendia ocultar.

quando ela comentou que com essa aparência ela recebia mais atenção e elogios, sugeri que a reação positiva podia ser resposta direta da sua própria projeção de um alto nível de auto-satisfação. as pessoas podem estar respondendo a isso e não à tentativa de ocultar ou mascarar o seu fenótipo. conversamos sobre as mensagens que estava mandando para as suas filhas de pele escura: que elas certamente seriam aceitas se alisassem os seus cabelos!

certo número de mulheres afirmou que essa é uma estratégia de sobrevivência: é mais fácil de funcionar nessa sociedade com o cabelo alisado. os problemas são menores; ou, como alguns dizem, “dá menos trabalho” por ser mais fácil de controlar e por isso toma menos tempo. quando respondi a esse argumento em uma discussão em spelman college, sugeri que talvez o fato de gastar tempo com nós mesmas cuidando de nossos corpos é também um reflexo de uma sensação de que não é importante ou de que nós não merecemos tal cuidado. nesse grupo e em outros, as mulheres negras falavam de ter sido criadas em famílias que ridicularizavam ou consideravam desperdício gastar muito tempo com a aparência.

independentemente da maneira como escolhemos individualmente usar o cabelo, é evidente que o grau em que sofremos a opressão e a exploração racistas e sexistas afeta o grau em que nos sentimos capazes tanto de auto-amor quanto de afirmar uma presença autônoma que seja aceitável e agradável para nós mesmas. as preferências individuais (estejam ou não enraizadas na auto-negação) não podem disfarçar a realidade de que nossa obsessão coletiva com alisar o cabelo negro reflete-se psicologicamente como opressão e impacto da colonização racista.

juntos, racismo e sexismo nos recalcam diariamente pelos meios de comunicação. todos os tipos de publicidade e cenas cotidianas nos aferem a condição de que não seremos bonitas e atraentes se não mudarmos a nós mesmas, especialmente o nosso cabelo. não podemos nos resignar se sabemos que a supremacia branca informa e trata de sabotar nossos esforços por construir uma individualidade e uma identidade.

como nas lutas organizadas que aconteceram nos anos 1960 e princípios da década de 1970, as mulheres negras, como indivíduos, devemos lutar sozinhas por adquirir a consciência crítica que nos capacite para examinar as questões de raça e beleza e pautar nossas escolhas pessoais de um ponto de vista político.

existem momentos em que penso em alisar o meu cabelo só por capricho, aí me lembro que, mesmo que esse gesto pudesse ser simplesmente festivo para mim, uma expressão individual de desejo, eu sei que tal gesto traria outras implicações que fogem ao meu controle. a realidade é que o cabelo alisado está vinculado historicamente e atualmente a um sistema de dominação racial que é incutido nas pessoas negras, e especialmente nas mulheres negras, de que não somos aceitas como somos porque não somos belas.

fazer esse gesto como uma expressão de liberdade e opção individual me faria cúmplice de uma política de dominação que nos fere. é fácil renunciar a essa liberdade. é mais importante que as mulheres façam resistência ao racismo e ao sexismo que se dissemina pelos meios de comunicação, e tratarem para que todo aspecto da nossa auto-representação seja uma feroz resistência, uma celebração radical de nossa condição e nosso respeito por nós mesmas.

mesmo não tendo usado o cabelo alisado por muito tempo, isso não significa que eu era capaz de desfrutar ou realmente apreciar meu cabelo em estado natural. durante anos, ainda considerava isso um problema. ele não era natural o suficiente, crespo o necessário para fazer um black interessante e decente, o cabelo era muito fino. essas queixas expressavam a minha continua insatisfação. a verdadeira liberação do meu cabelo veio quando parei de tentar controlar em qualquer estado e o aceitei como era.

só há poucos anos é que deixei de me preocupar com o quê os outros possam dizer sobre o meu cabelo. só nesses últimos anos foi que eu senti consecutivamente o prazer lavando, penteando e cuidando do meu cabelo. esses sentimentos me lembram o aconchego e o deleite que eu sentia quando menina, sentada entre as pernas de minha mãe, sentindo o calor do seu corpo e do seu ser enquanto ela penteava e trançava o meu cabelo.

em uma cultura de dominação e anti-intimidade, devemos lutar diariamente por permanecer em contato com nós mesm@s e com os nossos corpos, uns com os outr@s. especialmente as mulheres negras e os homens negros, já que são nossos corpos os que freqüentemente são desmerecidos, menosprezados, humilhados e mutilados em uma ideologia que aliena. celebrando os nossos corpos, participamos de uma luta libertadora que libera a mente e o coração.

tradução de lia maria dos santos

retirado do site confabulando.

alice walker – cabelo oprimido, um teto para o cérebro

10-Jan-15

cabelo oprimido é um teto para o cérebro – alice walker*

[fiz esta palestra no dia dos fundadores, 11 de abril, 1987, no spelman college, atlanta]

como muitas de vocês devem saber, fui aluna desta faculdade, há muitas luas. eu me sentava nessas mesmas cadeiras (às vezes ainda com o pijama sob o casaco) e olhava para a luz que entra por estas janelas. eu ouvia dezenas de palestras encorajadoras e cantei e ouvi música maravilhosa. acho que sentia que ia voltar para falar deste lado do pódio. acho que naquele tempo, quando eu estudava aqui, adolescente ainda, eu já pensava no que diria a vocês, hoje.

talvez as surpreenda saber que não pretendo falar (talvez até o período de perguntas e respostas) sobre guerra e paz, economia, racismo ou sexismo, ou sobre os triunfos e atribuições d@s negr@s ou das mulheres. nem sobre filmes. embora as mais atentas possam ouvir em minhas palavras a preocupação por alguns desses assuntos, vou falar sobre algo muito mais perto de nós. vou falar sobre cabelo. não se preocupem com o estado dos seus cabelos neste momento. não fiquem alarmadas. não se trata de uma avaliação. simplesmente quero compartilhar com vocês algumas experiências com nosso amigo cabelo, e espero entreter e divertir a todas.

durante um longo tempo, desde a primeira infância até a idade adulta crescemos física e espiritualmente (incluindo o intelecto com o espírito), sem que nos demos muito conta do fato. na verdade, alguns períodos do nosso crescimento são tão confusos, que nem percebemos que se trata de crescimento. podemos nos sentir hostis, zangadas, chorosas ou histéricas, ou deprimidas. jamais nos ocorre, a não ser que encontremos por acaso um livro ou uma pessoa capaz de explicar, que estamos em processo de mudança, de crescimento espiritual. sempre que crescemos, sentimos, como a semente nova deve sentir o peso e a inércia da terra, quando procura sair da casca para se transformar numa planta. geralmente não é uma sensação agradável. porém, o mais desagradável é não saber o que está acontecendo. lembro-me das ondas de ansiedade que me envolviam nos diferentes períodos de minha vida, sempre se manifestando por meio de distúrbios físicos (insônia, por exemplo) e como eu ficava assustada, porque não entendia como aquilo era possível.

com a idade e a experiência, vocês ficarão satisfeitas em saber, o crescimento torna-se um processo consciente e reconhecido. ainda um pouco assustador, mas pelo menos compreendido. aqueles longos períodos, quando algo dentro de nós parece estar esperando, contendo a respiração, sem saber qual será o próximo passo, com o tempo transformam-se em períodos esperados, pois enquanto ocorrem, compreendemos que estamos sendo preparadxs para a próxima fase de nossa vida e que provavelmente vai se revelar um novo nível de personalidade.

alguns anos atrás passei por um longo período de inquietação, disfarçado em imobilidade. isto é, isolei-me do grande mundo a favor da paz do meu mundo pessoal, muito menor. eu me desliguei da televisão e dos jornais (um grande alívio!), dos membros mais perturbadores da minha grande família, e da maioria d@s amig@s. era como se eu tivesse chegado a um teto no meu cérebro. e sob esse teto minha mente estava extremamente inquieta, embora tudo em mim estivesse calmo.

como é comum nesses períodos de introspecção, contei as contas do meu progresso neste mundo. no relacionamento com a família e os antepassados eu agira respeitosamente (nem tod@s concordarão, acredito); no meu trabalho eu havia feito, usando toda a habilidade de que disponho, tudo que era exigido de mim; no relacionamento com as pessoas com quem convivo diariamente, eu agira com todo amor que podia encontrar no meu íntimo. eu começava também, finalmente, a reconhecer minha responsabilidade para com a terra e minha adoração do universo. o que mais então eu devia fazer? por que, quando eu meditava e procurava o alçapão de escape no alto do meu cérebro, o qual, nos outros estágios do crescimento, eu sempre tive a sorte de encontrar, só achava agora um teto, como se o caminho para me identificar com o infinito, o caminho que eu costumava trilhar, estivesse selado?

certo dia, depois de ter feito ansiosamente essa pergunta durante um ano, ocorreu-me que, no meu ser físico, havia uma última barreira para minha libertação espiritual, pelo menos naquela fase: meu cabelo.

não meu amigo cabelo propriamente, pois logo percebi que ele era inocente. o problema era o modo pelo qual eu me relacionava com ele. eu estava sempre pensando nele. tanto que, se meu espírito fosse um balão, ansioso para voar e se confundir com o infinito, meu cabelo seria a pedra que o ancoraria à terra. compreendi que seria impossível continuar meu desenvolvimento espiritual, impossível o crescimento da minha alma, impossível olhar para o universo e esquecer meu ego completamente nesse olhar (uma das alegrias mais puras!) se continuasse presa a pensamentos sobre meu cabelo. compreendi de repente porque freiras e monges raspam as cabeças!

olhei no espelho e comecei a rir de felicidade! tinha conseguido abrir a pele da semente e estava subindo dentro da terra.

então comecei as experiências. durantes alguns meses usei longas tranças (era moda entre as mulheres negras na época) feitas com o cabelo de mulheres coreanas. eu adorava isso. realizava minha fantasia de ter cabelos longos e dava ao meu cabelo curto e levemente processado (oprimido) a oportunidade de crescer. a jovem que trançava meu cabelo era uma pessoa que eu acabei adorando – uma jovem mãe lutadora; ela e a filha chegavam à minha casa às sete da noite e conversávamos, ouvíamos música, comíamos pizzas ou burritos, enquanto ela trabalhava, até uma ou duas horas da manhã. eu adorava o artesanato dos desenhos criados por ela para a minha cabeça. (trabalho de cesteir@! exclamou uma amiga, tocando a teia intrincada na minha cabeça.) eu adorava sentar entre os joelhos dela como sentava entre os joelhos de minha mãe e de minha irmã enquanto elas trançavam meu cabelo, quando eu era pequena. eu adorava o fato do meu cabelo crescer forte e saudável sob as “extensões”, como eram chamadas as tranças. eu adorava pagar a uma jovem irmã por um trabalho realmente original e que fazia parte da tradição do penteado d@s negr@s. eu adorava o fato de não precisar tratar do meu cabelo a não ser com intervalos de dois ou três meses (pela primeira vez na vida eu podia lavar a cabeça todos os dias, se quisesse, e não fazer nada mais). porém, uma vez ou outra as tranças tinham de ser retiradas (um trabalho de quatro a sete horas) e feitas novamente (mais sete a oito horas); também eu não me esquecia das mulheres coreanas que, de acordo com minha jovem cabeleireira, deixavam crescer o cabelo expressamente para vender. é claro que essa informação me fez pensar (e, sim, me preocupar) sobre os outros aspectos de suas vidas.

quando meu cabelo atingiu dez centímetros de comprimento, dispensei o cabelo das minhas irmãs coreanas e trancei o meu. só então renovei o conhecimento com suas características naturais. descobri que era flexível, macio, reagindo quase com sensualidade à umidade. com as pequenas tranças girando para todos os lados, menos para onde eu queria que virassem, descobri que meu cabelo era voluntarioso, exatamente como eu! vi que meu amigo cabelo, tendo recuperado vida própria, tinha senso de humor. descobri que eu gostava dele.

mais uma vez na frente do espelho, olhei para minha imagem e comecei a rir. meu cabelo era uma dessas criações estranhas, incríveis, surpreendentes, de parar o tráfego – um pouco parecido com as listras das zebras, com as orelhas do tatu ou com os pés azul-elétrico do mergulhão – que o universo cria sem nenhum motivo especial a não ser demonstrar sua imaginação ilimitada. compreendi que jamais tivera a oportunidade de apreciar o cabelo em sua verdadeira natureza. descobrir que ele, na verdade, tinha uma natureza própria. lembrei-me dos anos que passei agüentando cabeleireiros – desde o tempo de minha mãe – que faziam trabalho missionário nos meus cabelos. eles dominavam, suprimiam, controlavam. agora, mais ou menos livre, ele ficava todo espetado para todos os lados. eu telefonava para tod@s minhas/meus amig@s no país para relatar as travessuras do meu cabelo. ele jamais pensava em ficar deitado. deitar de costas, na posição missionária, não o interessava. ele cresceu. ficar curto, cortado quase até a raiz, outra “solução” missionária, também não o interessava. ele procurava espaços cada vez maiores, mais luz, mais dele mesmo. ele adorava ser lavado; mas isso era tudo.

finalmente descobri exatamente o que o cabelo queria: queria crescer, ser ele mesmo, atrair poeira, se esse era seu destino, mas queria ser deixado em paz por tod@s, incluindo eu mesma, as/os que não o amavam como ele era. o que acham que aconteceu? (além disso, agora eu podia, como um bônus adicional, compreender bob marley como o místico que suas músicas diziam que era). o teto no alto do meu cérebro abriu-se; mais uma vez minha mente (e meu espírito) podia sair de dentro de mim. eu não estaria mais presa à imobilidade inquieta, eu continuaria a crescer. a planta estava acima do solo.

essa foi a dádiva do meu crescimento, no meu quadragésimo ano. isso e saber que enquanto existir alegria na criação haverá sempre novas criações para descobrir, ou redescobrir, e que o melhor lugar para olhar é dentro de nós mesmxs. que a própria morte, sendo parte da vida, deve oferecer pelo menos um momento de prazer.

  • texto do livro vivendo pela palavra, rocco 1988, tradução de aulyde soares rodrigues
  • retirado do blog confabulando http://kk2011.confabulando.org/index.php/Main/AliceWalkerCabeloOprimidoUmTetoParaOCerebro
  • me dei ao direito a fazer alterações no texto que encontrei, por usar o ‘x’ (‘todxs’) em muitas partes que para nós a tal linguagem ‘inclusiva’ exclui e invisibiliza mulheres outra vez. Fizemos uso da linguagem exclusiva feminina para haver uma releitura no sentido da identificação e comunicação entre mulheres acreditando que por escrever como feminista, alice walker deveria estar se dirigindo a mulheres. Como a política deste blog é dirigida exclusivamente a mulheres achamos válida essa reinterpretação. Se tem gente alterando texto da audre lorde pra excluir dele a palavra mulher, aqui fazemos reutilização da imaginação feminista pra recuperar nossa memória das tentativas de apagamento. Bora nos referir umas às outras, bora femizar a linguagem. Se acharam questionável, entendam como licença poética.

Criando e Sustentando Espaços para Bio Lésbicas Butch

10-Jan-15
por Pippa Fleming
Cada ser humano que chegou a este mundo o fez por meio da vagina de uma mulher. Sem um útero nenhum de nós estariamos aqui. É o útero que nos faz únicas e houve um tempo em que este fato era reverenciado, celebrado e não vilificado. Desde que as guerras contra as antigas tribos de mulheres foi travada há milhares de anos atrás. identidade feminina foi e vem sendo rendida invisível. No núcleo desta invisibilidade estão patriarcado, misoginia, racismo, homofobia, guerra e ódio.
Como uma mulher Afro-Nativa eu carrego o legado da escravidão e genocídio na fibra dos meus ossos e é o chamado da minha vida prestar homenagem para as lutas das minhas ancestrais e nunca esquecer nosso Maafa. É meu dever contar a verdade sobre estupros, envenenamento, emprisionamentos, mortes e abusos de mulheres.  A vagina tem sido cobiçada e odiada durante eras .
Desde que a guerra contra as mulheres foi declarada, mulheres tiveram que lutar e sacrificar suas vidas para que outras pudessem; parir suas crianças em casa, andar pelas ruas em paz, ganhar mesmo salário, fazer amor com outra mulher, votar, ter propriedade e não ter que sentar no fundo do ônibus. É único para as mulheres sangrar pelas nossas vaginas e ter o poder de gerar vida se escolhemos. Esse poder divino é a razão pela qual você tem o Facebook como algo trivial ou transformacional.Então porque quando Eu como uma lesbiana butch negra bio/cis quero criar um espaço separado para celebrar nossa identidade e reconhecer nossa herstória e lutas isso é visto como um ato de exclusão? Por que estou eu novamente sendo dita que mulheres Negras não podem se juntar e que há algo de errado com este desejo e necessidade? É um ato de revolução para lésbicas Negras dizer “nós queremos nosso espaço sem você”… seja lá quem você for. É algo também, e sempre esteve sendo desde que fomos trazidas aqui, ser visto como desacato as mulheres negras se reunirem. Era contra a lei em tempos de escravidão que pessoas Negras estarem sozinhas umas com as outras, a não ser que fosse como massa de manobra. Então isso quer dizer que eu sou uma merda duma escrava outra vez?
A comunidade LGBTQ é perigosamente culpada de empurrar patriarcado e misoginia goela abaixo das lésbicas mulheres identificadas butch com pouco análise histórico, social e político e é hora de parar com essa merda. Eu nunca entraria num espaço especificamente criado para homens gays Negros e esperar que eles acomodassem minhas questões e demandas que eu fui prestada atenção porque eu sou oprimida. Porque embraçar nossos únicos corpos femininos e identidades causam tanto incêndio na comunidade LGBT e por que criar espaços separados para este discurso significa que estamos tentando minimizar ou diminuir diferentes membros da comunidade de identidade LGBTQ? Nós precisamos criar espaços para solidariedade LGBTQ assim como, espaços para a diferença. Diferenças não deveriam ser a fonte de disputas, mas uma abundância de beleza que celebra a todas nós.É hora de parar de mentir para nós mesmas, as crianças não estão bem/certas e há muito diálogo que necessita ocorrer sobre quem somos nós em essa comunidade LGBTQ assim como quais nossas necessidades. É hora de sair dessa cultura de medo que norte-americanos tão profundamente sofrem e por meio da qual funcionam. Um novo dia e tempo está sobre nós todas e estamos sendo pedidas para mover-nos e mudar ou sermos deixadas atrás na areia universal.

Indefensividade Adquirida e Síndrome de Estocolmo

10-Jan-15
O desamparo aprendido

 Por que não somos capazes de responder a algumas das situações que vivemos? 

O desamparo é um aspecto estudado por Martin Seligman, para entender os processos pelos quais somos incapazes de responder a situações dolorosas. Sua teoria é baseada na idéia de que a pessoa é inibida mostrando passividade quando as ações para mudar as coisas não produzem o efeito pretendido. 

Esta teoria foi pesquisada e desenvolvida pelo psicólogo Martin Seligman. Realizou experimentos realizados com dois cães em uma gaiola, em que foram dadas choques elétricos. Um deles tinha a capacidade de cortar a energia, com um golpe de focinho; o outro não. O primeiro cão, manteve o estado de alerta e de energia, enquanto o outro, vivia com medo, nervoso e caiu em depressão. Sua atitude foi de completa indefesão, mesmo quando mudaram as condições e já tinha a capacidade de mudar a situação.

Geralmente as mulheres afetadas pela violência são incapazes de ajudar a si mesmas. Esta é uma consequência de um desgaste psicológico causada pela exposição contínua à violência e desprezo. Mulheres vítimas de abuso, se sentem impotentes e incapazes de atingir os seus objetivos de vida, de um estado de falta de motivação. Como resultado de um processo sistemático de violência, a vítima aprende a acreditar que é indefesa, você não tem controle sobre a situação em que você está e que qualquer coisa que você faz é inútil. 

“O desamparo começa quando: a vítima é exposta a perigo físico e não se adverte ela ou ajudar a evitá-los, se a sobrecarrega com trabalho, é feita para passar por estúpida, descuidada, ignorante, e etc. A falta de afeto unida à repetição e prolongamento no tempo de atitudes depreciativas, acompanhada por mudanças bruscas no estado de humor do agressor, só é comparável a algumas torturas. “(Miguel Lorente Acosta)

Apesar disso, são muitas as vítimas de maltrato condenadas a escutar, como eles não se questionaram o fato de acreditar que seus algozes. A falta de conhecimento da complexidade do tema, muitas vezes nos impede de compreender o que acontece na mente de quem sofre uma violência recorrente. 

Essa síndrome é uma “adaptação psicológica”, é uma saída possível que encontraram as vítimas para processar a dor, sentem que é uma situação sem saída na qual não há nada que se possa fazer. A incapacidade para reagir resulta da deterioração psicológica que produz violência. Geralmente, a decisão não é suficiente para acabar com a violência. É necessário apoio de profissionais para romper com esta situação.

 

Overmanier Seligman em 1967 e realizou uma série de experimentos de laboratório com cães que eram expostos a choques elétricos inescapáveis ou inevitáveis. Mais tarde, em 24 horas, os cães foram submetidos a uma tarefa de aprendizado de condutas de fuga / evitação uma caixa. A resposta que se exigia aos cães consistia em pular de uma caixa para outra caixa para evitar ou escapar do estímulo aversivo. Os resultados mostraram que os cães submetidos a choque elétrico inescapável mostravam graves deficiências na aprendizagem de novos comportamentos para escapar ou evitar o choque contingente. Estes cães após o teste não fizeram nenhum movimento para escapar, aguardando passivamente os choques elétricos. 

Assim, esses autores propuseram o fenômeno do desamparo aprendido que postula inicialmente que, quando os organismos são submetidos a situações de incontrolabilidade, estes posteriormente mostram um déficit na aprendizagem de respostas de êxito. O desamparo é um “estado psicológica que se produz frequentemente quando os acontecimentos são incontroláveis.” 

No caso das mulheres maltratadas muitas vezes sofrem o fenômeno do desamparo aprendido, adotando o mesmo comportamento de cães submetidos a choque elétrico incontrolável, nem sequer tentar escapar. “A mulher aprende e apreende que tudo o que o que quer que ela faça, sempre será maltratada.”

Conhecer o conceito de desamparo aprendido e o ciclo da violência contra a mulher permitirá entender o fato de que muitas mulheres maltratadas não saiam da situação de maltrato. “Acostumada à escuridão temerá o brilho da luz; vai pensar sobre o risco de que a corda se rompa; duvidará das próprias forças para resistir ao retorno; o desânimo soprará fundo; a segurança do abrigo escuro vai pressionar para se impôr sobre a insegurança do futuro incerto…. Estes e outros fantasmas podem sair logo para freiar os impulsos por libertação.”

O estado de desamparo em que se encontram a maioria das mulheres vítimas de violência muitas vezes as impede de pedir ajuda e outros preferem resistir à situação abusiva impedindo assim qualquer mudança em seu comportamento em relação a essas situações. Viktor Frankl afirma que, quando o indivíduo se recusa a aceitar o sentido da vida baseada na repetição de um modelo transferido e incorporado ordinariamente e começa por si só a busca do sentido da própria vida é quando os sujeitos atingem a maturidade mental. Sobreviventes de campos de extermínio argumentam que somente se pode conseguir isso ao transformar a tragédia em triunfo, e isso se aplica também às pessoas maltratadas que, ao sofrer situações extremas, mesmo assim buscam fomentar o desenvolvimento de si mesmas, descobrindo a gama infinita de suas potencialidades, o que lhes permite viver como sujeitos independentes a fortalecer a sua auto-estima. É verdade que esta escolha vai depender das idiossincrasias e força individual para renascer como novas pessoas pra fora do círculo de violência.


http://mariangelesalvarez.com/igualdad/relacion-de-control-o-igual/la-indefension-aprendida/

retirado de um texto que se chama “Efeitos Psicológicos nas Vítimas de Tráfico Sexual”:

1. Síndrome da Indefensividade Adquirida2. Síndrome do Estresse Pós-traumático3. A Síndrome de Estresse Pós-traumático em vítimas de tráfico sexual

1. Síndrome de indefensividade adquirida 

Quando uma pessoa sã mantem durante muito tempo uma relação de violência em quaisquer de suas formas, onde nada do que faça tem o efeito esperado, termina por não saber como atuar. Isto provoca desalento, perda da confiança em si mesma e outros efeitos imprevisíveis.A Indefensividade Adquirida é um estado anímico em que a mulher aprende a acreditar que não tem nenhum controle sobre a situação em que se encontra e que qualquer coisa que faça é inútil. Como resultado de um processo sistemático de violência, a vítima se torna muito submissa, não expressa raiva para evitar os conflitos.A complexidade do tema não permite aos profissionais compreender claramente o que é que ocorre na mente das pessoas submetidas à violência constante, mas sem dúvida esta síndrome se manifesta como uma saída que encontram as vítimas para processar tanta dor.Desde fora a pessoa dá a impressão de não querer remediar o problema. A realidade é que ela tenta adaptar-se aos requerimentos da pessoa violenta para não ser maltratada, assumindo um papel de subordinação, com as falsas expectativas de que si se comporta bem não dará lugar a que se possa maltratá-la.Quando se sofreu violência, ao fracassar nas tentativas por conter as agressões e em um contexto de baixa auto-estima, as vítimas assumem que isso lhes passa como um castigo merecido. A intermitência das agressões e a passagem constante da violência ao afeto, reforça a relação de dependência, que pioram quando a submissão o é também no plano econômico. A vítima chega à síndrome quando ao largo do tempo, se ocuparam de destruir totalmente sua auto-estima, através do terror, o desalento, a desconfiança, a ameaça e a suspeita.


2. Síndrome de Estocolmo

A Síndrome de Estocolmo é um estado psicológico no qual a vítima de sequestro, ou pessoa detida contra sua própria vontade, desenvolve uma relação de cumplicidade com seu sequestrador. Em ocasiões, os prisioneiros podem acabar ajudando aos captores a alcançar seus fins ou fugir à policía.

Segundo a corrente psicanalítica, a síndrome de Estocolmo seria então um tipo de mecanismo de defesa inconsciente do sequestrado, que não pode responder à agressão dos sequestradores e que se defende também da possibilidade de sofrer um choque emocional. Assim, se produz uma identificação com o agressor, um vínculo no sentido de que o sequestrado começa a ter sentimentos de identificação, de simpatia, de agrado pelo seu sequestrador.

Origem

A síndrome foi chamada desta forma desde o assalto ao banco Kreditbanken en Norrmalms (Estocolmo), Suécia, que transcorreu de 23 ao 28 de agosto de 1973. Neste caso, as vítimas – três mulheres e um homem – defenderam a seus captores inclusive depois de terminado o sequestro, que durou seis dias. Mostraram também uma conduta reticente ante os procedimentos legais. Se diz inclusive que uma das mulheres sequestrada se havia envolvido com um de seus captores. O termo foi acunhado pelo criminólogo e psicólogo Nils Bejerot, colaborador da polícia durante o roubo, ao referir-se à síndrome em uma emissão de notícias. Foi então adotado por muitos psicólogos em todo o mundo.

Causas

Tanto a vítima como o autor do delito perseguem a meta de sair ilesos do incidente, por isso cooperam. Os reféms tratam de proteger-se, no contexto de situações incontroláveis, onde tratam de cumprir os desejos de seus captores. A perda total do controle que sofre o refém durante um sequestro, é difícil de digerir. Se faz suportável no momento em que a vítima se identifica com os motivos do autor do delito.

Situações

De acordo com o psicólogo Nils Bejerot, a Síndrome de Estocolmo é mais comum em pessoas que foram vítimas de algum tipo de abuso, tal é o caso de: reféns, membros de seita, abuso psicológico de crianças, prisioneiros de guerra, prostitutas, prisioneiros campos de concentração, vítimas de incesto, e violência doméstica.

Estresse Pós-traumático

O trastorno de estresse pós-traumático se origina depois de haver sofrido ou observado um acontecimento altamente traumático (atentado, estupro, assalto, sequestro, acidente, etc.), em que está em jogo a vida das pessoas. As imagens da situação traumática voltam a serem re-experimentadas uma e outra vez (flashback), contra a própria vontade, apesar do passar do tempo, imaginando-o com todo luxo de detalhes, acompanhado de intensas reações de ansiedade (preocupação, medo intenso, falta de controle, alta ativação fisiológica, evitação de situações relacionadas, etc.) Tudo isso gera um forte estresse, esgotamento, emoções intensas, e pensamentos irracionais que aumentam a intensidade desse estresse, do esgotamento, das emoções intensas…

O estresse pós-traumático se caracteriza porque se concede muita importância a essas imagens e à ansiedade que provocam. Se desenvolvem muitos pensamentos relacionados com o acontecimento traumático e com suas consequências. Se concede muita importância também a estes pensamentos, que geram mais ansiedade, mais estresse, mais insegurança. O mundo se percebe como altamente perigoso. Costuma-se perder a sensação de controle sobre a segurança própria. Se recordam muitos detalhes da situação, ou as sensações vividas nos momentos do sucesso, com grande vividez, com grande intensidad, e com uma alta frequência. Essas sensações visuales, auditivas, tácteis ficam profundamente gravadas na memória e possuem uma alta relevância entre qualquer outra recordação.

As imagens e as sensações podem se tornam intrusivas (acudem uma e outra vez à mente, produzindo mal-estar), especialmente se se pretende evitá-las. Quando queremos evitar um pensamento aumenta a frequência deste pensamento não desejado e se torna mais estressante.

Depois do trauma (atentado, estupro, assalto, sequestro, acidente, etc.) o pensamento, o diálogo interno do individuo, não somente provoca mais ansiedade, senão que tende a gerar sentimentos de culpa, por aquilo que se fez, pelo que não se fez, porque não se esteve às circunstâncias, por haver-se salvado, por… toda uma série de motivos pouco realistas, bastante irracionais, e de excessiva auto-exigência. Se vai tecendo assim uma rede cada vez mais elaborada na qual estão relacionados todos estes elementos que mudam na mesma direção: provocar mais estresse.

SINTOMAS DO TRASTORNO DE ESTRESSE PÓS-TRAUMÁTICO

Poderíamos agrupar a sintomatologia associada mais comum em três grandes blocos:

A.- Reexperimentação do evento traumático. Flashbacks. Sentimentos e sensações associadas pelo sujeito à situação traumática Pesadelos. O evento ou outras imagens associadas ao mesmo recorrem frequentemente em sonhos. Reações físicas e emocionais desproporcionais ante acontecimentos associados à situação traumática.

B.-Incremento, ativação. Dificuldades de conciliar o sono. Hipervigilância. Problemas de concentração. Irritatibilidade/ Impulsividade/ Agressividade.

C.- Condutas de evitação e bloqueio emocional. Intensa evitação/fuga/rejeição do sujeito à situações, lugares, pensamentos, sensações ou conversações relacionadas com o evento traumático. Perda de interesse. Bloqueio emocional. Isolamento social.

Os três grupos de sintomas mencionados são os que em maior medida se apresentam na população afetada pelo transtorno por estresse pós-traumático, porém é comum observar na prática clínica outros problemas associados ao mesmo.

Entre os TRANSTORNOS mais comumente associados destacam-se:

Ataques de pânico
Os indivíduos que experimentaram um trauma têm possibilidades de experimentar ataques de pânico quando são expostos à situações relacionadas com o evento traumático. Estes ataques incluem sensações intensas de medo e angústia acompanhadas de sintomas como taquicardias, suorese, náuseas, tremores…

Depressão

Muitas pessoas sofrem episódios depressivos posteriores, perda de interesse, descenso da auto-estima e inclusive nos casos de maior gravidade, ideações suicidas recorrentes.

Estudos recentes mostram, por exemplo, que aproximadamente 50% das vítimas de estupro mostram idéias recorrentes de suicídio.

Ira e agressividade

Se tratam de reações comuns e, até certo ponto lógicas, entre as vítimas de um trauma. Porém, quando alcançam limites desproporcionais, interfere de forma significativa com a possibilidade de êxito terapêutico assim como no funcionamento diário do sujeito.

Abuso de drogas

É frequente o recurso à drogas como o álcool para tratar de fugir/esconder a dor associada. Em ocasiões esta estratégia de fuga distancia o sujeito de receber a ajuda adequada e não faz mais que prolongar a situação de sofrimento.

Condutas extremas de medo / evitação

A fuga/evitação de tudo aquilo relacionado com a situação traumática é um signo comum na maioria dos casos, não obstante, em ocasiões este intenso medo e evitação se generaliza a outras situações, em princípio não diretamente associadas com a situação traumática o que interfere de forma muito significativa com o funcionamento diário do sujeito.
Estes e outros sintomas, na maioria dos casos, diminuem de maneira significativa durante o tratamento, porém, em ocasiões, e dada sua gravidade, podem requerer intervenções adicionais específicas.

A síndrome de estocolmo em mulheres vítimas de tráfico com fins de exploração sexual

Por Nora Blanco

DISTORÇÕES EMOCIONAIS: ELA POTENCIA AS EMOÇÕES POSITIVAS:

O anseio de sobrevivência leva a procurar com avidez qualquer expressão de bondade, empatia ou afeto à ela na conduta do seu maltratador. Se chega a percebê-la se enche de esperanças pensando que ele não vai a maltratá-la mais.

ELA NEGA SUAS EMOÇÕES NEGATIVAS: Nega e minimiza o abuso, nega o terror, porque reconhê-lo a paralisaria e precisa “puxar a carroça” da família e dos filhos. O pânico, o sentimento de aniquilamento psíquico, a deixariam sem resposta e não pode permitir isso. Nega também a ira e a raiva, se a expressa convidaria o agressor a tomar represálias. Uma resposta defensiva direta poderia colocar em risco a sua sobrevivência. Se torna muito submissa, tem dificuldade em expressar raiva, evita conflitos. Torna-se indecisa e passiva.

DISTORÇÕES COGNITIVA. MUDA SEU PONTO DE VISTA PARA O DO MALTRATADOR

SOBRE NO MUNDO: a vítima inconscientemente tentar ver o mundo e a si mesma como o agressor vê, para antecipar e mantê-lo contente com suas necessidades satisfeitas. Aceita as abordagens políticas, sociais ou de gênero dele. Se ele milita em um partido político que ela acaba militando no mesmo partido e se torna a partidária mais fanática. Ele é sexista e ela se converte na primeira inimiga das mulheres que se destacam, falam ou opinam por si mesmas. A mulher maltratada não quer se identificar com o seu próprio grupo. É demasiado dura e crítica com as outras mulheres. Gosta de competir com elas e desqualificá-las.

SOBRE SI MESMA: a mulher maltratada se vê através dos olhos do maltratador e aceita sua culpa pelo maltrato. Pensa que se fosse uma pessoa ou mulher melhor, não seria maltratada. Quanto menos controle real tem a vítima e mais graves são as consequências de não ter controle (ou seja, quão mais severo o abuso), é mais provável que a vítima se autoculpe. Se reconhece como inferior. Bajular e cuida o ego masculino em detrimento de si mesma. Assume a posição de “capacho” para os homens. Se rebaixa e despreza a si mesma humoristicamente. Ele odeia as partes de si mesma que o maltratador depreza ou às quais dirige sua cólera. Pensa que tem que ser perfeita e que não vale nada, motivo pelo qual merece o maltrato. Pensa que não merece o amor de outras pessoas. Projeta sua própria condição de vítima no agressor, como se ele fosse inocente e estivesse sendo influenciado pela maldade de outras pessoas. A mulher não quer que outros se inteirem de como a trata o agressor,  cafetão ou proxeneta. Oculta isso do mundo e de si mesma. Sistematicamente, toma partido dele frente a outras pessoas, mesmo que elas a estejam defendendo dele!

APRENDE A CONHECER DETALHADAMENTE O COMPORTAMENTO DO MALTRATADOR: ela está muito familiarizada com seus hábitos e desejos, o que lhe permite antecipar seus possíveis rompantes de violência. Estuda cuidadosamente os pontos em que pode influenciar “o chefe”, é muito atenta ao que ele gosta ou não gosta. Em casos extremos, até mesmo permite o abuso sexual de suas filhas, ou se comporta como se não soubesse o que está ocorrendo (negação). O homem é o deus a quem há de se render culto e dar tudo o que pede, ainda que sacrificando crianças, sobretudo as meninas.

ACREDITA QUE AMA APAIXONADAMENTE O AGRESSOR: Está muito pendente dele, é submissa a ele, acelera o coração quando ele chega. É fácil de interpretar essa excitação fisiológica e conduta como indicadores de fortes sentimentos positivos em relação a ele. A falsa atribuição da vítima que atribui ao amor e não o terror seu entusiasmo é uma distorção cognitiva que se desenvolve nas vítimas que não vêem modo de escapar. Quanto mais excitação, mais forte o vínculo experimentado pelas vítimas. Quanto mais hipervigilantes estão as vítimas à amabilidade do agressor, se interpreta que mais forte o vínculo. Quanto mais duro tenha que trabalhar a vítima para ganhar o agressor, mais forte o vínculo. Uma vez que identificou a experiência como o amor, é para ela amor. Nossa cultura nos apresenta um modelo do masculino violento e dominante, os heróis de ficção vencem por meio da agressão, e não por meio da resolução pacífica de conflitos. São competitivos, soberbos e sexualidade está perto de uma violação. Essa perspectiva reforça a vivência interna da mulher maltratada sobre seu companheiro, a convence de que isso que ocorre entre ambos é um amor apaixonado e fatal, e que o que passa a seu companheiro é que “é muito macho”. Ela em contraposição deverá ser muito feminina e deixar-se ser protegida por ele.

DISTORÇÕES COMPORTAMENTAIS

ELA DESENVOLVE CONDUTAS DEFENSIVAS ANTE A VIOLÊNCIA

• Simulação: simula um prazer sexual que não sente, e admiração inexistente por ações medíocres ou sem mérito. Maneiras deferente. Bajulação. Dissimulação de sentimentos reais. “Artimanhas femininas.” É importante para a segurança da vítima que o ego do maltratador esteja satisfeito • Procura ganhar a sua compaixão: “Colapsos nervosos”, desmaios, somatizações. É uma forma primitiva de dizer ao agressor “não me bata, você não vê que eu me sinto mal” • Tenta tranquilizá-lo por meio de um comportamento infantil. A mulher capturada se comporta como uma criança frágil e indefesa, para que o agressor não veja nela um inimigo. Se faz de palhaço, sorri e ri sem sentido. Usa um tom de súplica ou infantil com entonação característica acabada em inflexão ascendente. Olha humildemente olhar para baixo. Faz falsas demandas de ajuda. Sua aparência é indefesa. Se mostra dependente, com falta de iniciativa, incapaz de decidir ou pensar por si mesmas. Se não se infantiliza em sua comunicação, ele pode interpretar suas afirmações como oposição ou rivalidade. Tem que demonstrar que ela não está contra ele, e que ele não tem nada a temer dela. Tem que demonstrar que não compete com ele, que não é uma “machona”. Entra em seu papel e acaba vendo ao captor como uma figura paterna, sentindo-se como uma criança em frente a ele.

DURANTE O PROCESSO DE LIBERTAÇÃO A VÍTIMA SE OPÔE À JUSTIÇA:

Se assusta mais dos que a vem para resgatá-la que ao infrator. A mulher maltratada vê o maltratador como o “bom” e os que se opõem a ele como os “malvados”. Lhe molesta as “intromissões” de estranhos que tentam libertá-la. Critica e zomba das feministas e diz que odeiam aos homens e elas invejam a superioridade destes. A mulher prostituída nega estar sendo abusada por cafetões, nega que o passa mal e não pode suportar as mulheres que querem abolir a prostituição dizendo que são moralistas e que ela “exerce livremente o seu ofício.” Em casos de seqüestros de longa duração ou de mulheres maltratadas, a liberação ou separação do maltratador gera uma combinação paradoxal de gratidão e medo. A vítima acha psicologicamente difícil deixar o captor. Os ex-reféns visitam seus captores na prisão, retiram as queixas, e até mesmo pagam ao advogado que as defende. Minimizam os danos que eles lhes fizeram têm feito para eles e se recusar a cooperar com a justiça. A dinâmica cíclica do maltrato mantém a mulher atrapada num jogo desesperador. Seu impulso é ambivalente, por um lado quer se livrar do companheiro que a maltrata e ameaça, e por outra parte quer permanecer ao seu lado, última ironia do vínculo traumático. Há um desequilíbrio de poder na base desta atitude, isolada, mulher se sente totalmente dependente do homem, se valoriza pouco e está confusa com a natureza intermitente da maltrato. A mulher maltratada acredita que o agressor pode voltar a “sequestrá-la”. Ela teme até mesmo os seus próprios pensamentos “desleais”, vê o captor como onipotente e sente um profundo agradecimento por ele não a ter matado. A vítima permanece sendo leal ao agressor por muito tempo. Sabe que se ele a atrapa e a acusa de deslealdade, a punição será muito maior do que o maltrato anterior. Ele a ameaçou de encontrá-la se ela se vai, e de matar a ela e a seus filhos. Ela se acha capaz de fazê-lo e permanece leal em antecipação de sua volta. O estresse lhe faz perder a perspectiva de opções reais, o medo a paralisa e ademais disso, a vítima sabe que uma tentativa de denúncia ou fuga pode transformar uma violência tolerável em uma situação letal.

As sequelas mais graves a largo prazo da síndrome de estocolmo são:

GENERALIZAÇÃO: A vítima generaliza a psicodinâmica vítima/abusador a suas relações com outros. A mulher maltratada durante largo tempo, tenderá a vincular-se com outros homens da mesma maneira que com o maltratador, quer dizer somente porque sejam homens os tratará como seres de primeira classe e esperará deles a mesma exploração que recebeu do proxeneta. Lhe custará colocar limites e se sentirá responsável de que a relação funcione, embora para isso tenha que anular-se e se submeter. Acredita que o amor é um vínculo traumático e violento, em novas relações tentará recriar os intensos sentimentos que lhe inspirava o maltratador.

PERDA DA IDENTIDADE PRÓPRIA: Não sabe como é nem o que quer. Não se imagina no futuro. Está desorientada. Se sente incapaz de tomar decisões. Se ve a si mesma menos válida, e menos capaz que outros, culpável dos problemas do captor. Se sente indefesa e sem poder. Teme também perder a única identidade que conserva, seu eu tal como o vêem os olhos do abusador. Tem medo de ser abandonada, de estar sozinha, de não ser capaz de viver sem o agressor, de não saber quem é sem ele, de sentir-se vazia, etc.

A MALTRATADA APRENDE A MALTRATAR: A maltratada aprende a maltratar, a vítima se torna carrasco. A mulher maltratada durante longo tempo, desvia a raiva que de forma natural se teria que dirigir ao agressor, a si mesma ou a outras pessoas que considera inferiores ao maltratador ou com pouco poder (mulheres, crianças). Tenta controlá-las para que não provoquem a ira do macho. Em algumas ocasiões mulheres resgatadas de situações de exploração se convertem em recrutadoras.

Carta Aberta de Audre Lorde a Mary Daly

10-Jan-15
Querida Mary,
Tendo um momento para respirar nessa primavera selvagem e maldita, eu queria lhe dizer aquelas palavras que tenho guardado para você. Eu havia esperado que nossos caminhos se cruzassem e que pudéssemos nos sentar lado a lado para conversar, mas isso ainda não aconteceu.
Eu lhe desejo força e satisfação em sua eventual vitória sobre as forças repressivas da Universidade em Boston. Fico feliz que tantas mulheres tenham comparecido ao debate público, e espero que essa demonstração de poder conjunto abrirá mais espaço para o seu crescimento e sua permanência.
Obrigada por me enviar Gyn/Ecology. Muito dele é cheio de significado, utilidade, gerativo e provocativo. Da mesma forma que em Beyond God The Father, muito das suas análises é fortificante e de ajuda para mim. Isso posto, é por causa da sua contribuição para mim em seus trabalhos passados que eu lhe escrevo, agora, esta carta, na esperança de compartilhar com você os benefícios das minhas ideias, assim como você compartilhou os benefícios das suas comigo.
Esta carta foi adiada por conta da minha grave relutancia em te procurar, dado que aquilo que pretendo esmiuçar aqui não é fácil, nem simples. A história das mulheres brancas que foram incapazes de ouvir as palavras das mulheres negras, ou de manter diálogo conosco, é longa e desencorajante. Mas, para mim, pressupor que você não vá me ouvir representa tanto a história como quanto, talvez, um antigo padrão de relacionamento, por vezes protetivo e por vezes desfuncional, padrão que nós, como mulheres construindo um futuro, estamos em processo de quebrar e passar para trás, eu espero.
Acredito em sua boa fé em direção a todas as mulheres, em sua visão para um futuro dentro do qual todas nós possamos florescer, e em seu comprometimento com a tarefa árdua e por vezes dolorosa de efetuar mudança. É com esse espírito que a convido para um esclarecimento [clarification] de algumas das diferencas que se colocam entre nós como negras e uma mulher branca.
Quando comecei a ler Gyn/Ecology, estava verdadeiramente entusiasmada com a visão por trás de suas palavras e concordava com a cabeça enquanto você falava, na Primeira Passagem, sobre mitos e mistificação. Suas palavras sobre a natureza e função da Deusa, bem como os modos como a face dela tem sido obscurecida [obscured], concordam com o que eu mesma descobri, em minhas pesquisas sobre mitos/lendas/religiões africanas, sobre a verdadeira natureza do poder feminino ancestral.
Então, me perguntei, por que Mary não cita Afrekete como exemplo? Por que suas imagens de deusas são apenas brancas, europeias, judaico-cristãs? Onde estava Afrekete, Iemanjá, Oyo e Mawulisa? Onde estariam as deusas guerreiras de Vodun, as amazonas de Dahomeian, e as mulheres guerreiras de Dan? Bem, eu pensei, Mary fez uma decisão consciente de diminuir o escopo e lidar apenas com a ecologia das mulheres ocidentais europeias.
Então, passei pelos primeiros três capítulos de sua Segunda Passagem, e ficou óbvio que você estava lidando com mulheres não europeias, mas apenas como vítimas e predadoras de si mesmas. Comecei a sentir minha história e meu cenário mítico distorcido pela ausência de qualquer imagem de minhas antecessoras no poder. Sua inclusão da mutilação genital africana foi uma peça importante e necessária para a consideração de qualquer ecologia feminina, e pouquíssimo foi escrito sobre isso. Mas sugerir que todas as mulheres sofrem a mesma opressão simplesmente por serem mulheres é perder de vista a variedade dos instrumentos do patriarcado. É ignorar como essas ferramentas são usadas por mulheres, desavisadamente, umas contra as outras.
Desprezar nossas antecessoras negras pode muito bem ser o mesmo que desprezar o lugar onde as mulheres europeias aprenderam a amar. Falando como uma mulher afro-americana sob patriarcado branco, estou acostumada a ter minha experiência arquetípica distorcida e trivializada, mas é horrivelmente doloroso sentir isso ser feito por uma mulher cuja sabedoria toca tanto a minha própria.
Quando falo de sabedoria, como você sabe, estou falando da produndidade negra [dark] e verdadeira sob a qual a compreensão serve, atende, e se faz acessível por meio da linguagem para nós mesmas e outras. É essa profundidade dentro de cada uma de nós que nutre a visão.
O que você excluiu de Gyn/Ecology dispensou minha herança e a herança de todas as mulheres não europeias, e negou as reais conexões que existem entre todas nós.
É óbvio que você fez uma quantidade de trabalho enorme para esse livro. Mas o fato de simplesmente haver pouco material sobre o poder e simbologia feminina de não brancas, dentro da perspectiva feminista radical, excluir esse aspecto da conexão, sequer comentando-o em seu trabalho, é negar a fonte da força e poder das mulheres não europeias que nutre cada uma de nossas visões. É escolher fazer uma afirmação.
Então, perceber que as únicas citações de mulheres negras foram aquelas usadas por você na introdução do capítulo sobre mutilação genital africana me fez questionar por que você sequer precisou usá-las. Da minha parte, senti que você realmente usou mal minhas palavras, utilizou-as apenas para testemunhar contra mim mesma na qualidade de mulher não branca [of colour]. Uma vez que minhas palavras, usadas por você, não eram mais ilustrativas desse capítulo do que “A poesia não é um luxo”, ou qualquer outro poema meu, seria de muitas outras partes de Gyn/Ecology.
Então, a pergunta que fica em minha mente, Mary, é se você realmente lê os trabalhos de mulheres negras? Será que você já leu mesmo minhas palavras, ou você apenas pescou citações que você pensou darem um apoio valorozo a ideias pré-concebidas a respeito de alguma conexão ancestral e distorcida entre nós? Essa pergunta não é retórica. Para mim, essa parece ser outra instância de conhecimento, cronologia e trabalho das mulheres não brancas sendo tornadas gueto por uma mulher branca que está usando apenas o patriarcado ocidental europeu como referência. Mesmo suas palavras na página 49 de Gyn/Ecology, “a força que a mulher Ego-centrada [Self-centered] encontra, ao encontrar suas raízes, é a nossa própria força, que levamos de volta aos nossos Eus [Selfs]”, têm um tom diferente quando lembramos as antigas tradições de poder e força e nutrição encontradas na criação de laços entre mulheres africanas. Está lá para ser despejada por todas as mulheres que não temem a revelação de conexão entre si.
Você leu meu trabalho, e o trabalho de outras mulheres negras, em nome do que isso poderia te acrescentar? Ou caçou através deles apenas para encontrar palavras que legitimassem seu capítulo sobre mutilação genital aos olhos de outras mulheres negras? E se sim, então por que não usar nossas palavras para legitimar e ilustrar outros lugares onde nos conectamos em nossos seres e devires? Se, por outro lado, você não estava tentando alcançar mulheres negras, em que sentido nossas palavras ilustraram o seu ponto para as mulheres brancas?
Mary, peço que você tome consciência de como isso serve para as forças destrutivas do racismo e da separação entre mulheres – o pressuposto de que a história e mito das mulheres brancas é o único cenário legítimo e a única história e mitologia de todas as mulheres que poderíamos clamar para empoderamento e cenário, e que mulheres não brancas e nossas histórias são dignas de nota apenas como decoração, ou de exemplos de vitimização feminina. Peço que tome consciência do efeito que esse desprezo tem sobre a comunidade das mulheres negras e de outras mulheres não brancas, e como isso desvaloriza tuas próprias palavras. Essa dispensa não difere essencialmente do desprezo especializado que faz as mulheres negras serem prezas, por exemplo, de assassinos, coisa acontecendo exatamente agora em nossas cidades. Quando o patriarcado nos dispensa, ele encoraja nosso assassinato. Quando a teoria lésbica feminista radical nos dispensa, encoraja a sua própria dispensa.
Essa dispensa se coloca como um bloqueio real de comunicação entre nós. Esse bloqueio faz com que seja muito mais fácil te dar as costas completamente do que tentar entender o pensamento por trás das suas escolhas. Será que o próximo passo deveria ser a guerra entre nós, ou nossa separação? Assimilação dentro de uma história unicamente ocidental e europeia não é aceitável.
Mary, peço que você relembre o que há de escuro [dark] e antigo e divino dentro de si mesma que ajuda no seu falar. Como pessoas olhando de fora, precisamos uma da outra para apoio e conexão e todas as outras necessidades de se viver à margem. Mas para que nós possamos nos juntar, precisamos reconhecer uma a outra. Apesar disso, eu sinto que você me descaracterizou [un-recognized] tão completamente, que talvez eu tenha errado quanto a você e não mais a reconheça.
Sinto que você de fato celebra as diferenças entre mulheres brancas como uma força criativa em direção à mudança, em vez de uma razão para desentendimento e separação. Mas você falha em reconhecer que, como mulheres, essas diferenças expõem todas as mulheres a formas variadas e diferentes níveis de opressão patriarcal, sendo que partilhamos de algumas e não de outras. Por exemplo, você certamente sabe que, para as mulheres não brancas deste país, há uma mortalidade de 80% para o câncer de mama; três vezes o número de [eventrations], histerectomias e esterilizações desnecessárias, em relação às mulheres brancas; três vezes a chance de serem estupradas, ou assassinadas, ou assediadas em relação às mulheres brancas. Estes são fatos estatísticos, não coincidências nem fantasias paranoicas.
Dentro da comunidade das mulheres, o racismo é uma força real em minha vida, e não na sua. As mulheres brancas com capuzes em Ohio, distribuindo nas ruas a literatura da Ku Klux Klan, talvez não gostem do que vou dizer, mas elas atirariam em mim assim que me vissem. (Se eu e você entrássemos em uma sala de aula no Alabama, onde a única coisa que soubessem de nós era que somos ambas feministas/lésbicas/radicais, você entenderia o que eu digo).
A opressão das mulheres não possui limites étnicos nem raciais, de fato, mas isso não significa que é idêntica dentro dessas diferenças. As reservas de nossos poderes ancestrais também não conhecem esses limites. Lidar com um deles sem sequer mencionar o outro é distorcer o que temos em comum, da mesma forma que distorce as nossas diferenças.
Pois, para além da irmandade, continua sendo racismo.
Encontramo-nos pela primeira vez na reunião de MLA, “A transformação do silêncio em linguagem e ação”. Esta carta tenta quebrar um silêncio que eu impus a mim mesma pouco antes daquela data. Eu havia decidido nunca mais falar com uma mulher branca sobre racismo. Sentia que era uma energia desperdiçada por conta de uma culpa destrutiva e de defensividade, e porque o que quer que eu tivesse para dizer seria melhor dito de mulheres brancas umas para outras, com um custo emocional muito menor para a locutora, que provavelmente seria melhor ouvida. Mas eu queria não destruir você em minha consciência, não precisar fazer isso. Então, como uma irmã Hag, peço que dialogue com minhas percepções.
Quer você o faça ou não, Mary, agradeço novamente pelo que aprendi com você.
Esta carta é um pagamento

Nas mãos de Afrekete
Audre Lorde

NOTAS:

[1]A Mary Daly respondeu a carta da Audre Lorde, pode ser visualizada neste link http://feminismandreligion.com/2011/10/05/mary-daly%E2%80%99s-letter-to-audre-lorde/
[
2] Também no livro Radical Feminism Today, da Denise Thompson, ela coloca que houve uma confusão por parte da Audre, pois segundo ela Mary Daly não estaria celebrando as religiões européias mas sim as criticando. Mas eu tenho pendente ler apenas vi uma parte ser citada em uma discussão.

 

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