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Heresia Lésbica – A Criação da Diversidade Sexual (cap. 1) – Sheila Jeffreys

10-Jan-15
Na década de 1980, umabatalha séria foi travada relativa ao significado de lesbianismo. Nesseconflito ideológico, as definições concorrentes eram aquelas do feminismolésbico e da sexologia. Algumas lésbicas, particularmente as adeptas daencenação de papeis, estão se opondo à definição politica do feminismo lésbicoem prol de uma baseada na diversidade sexual. Lésbicas que se vêem comosexualmente diversas estão aceitando os pressupostos de categorização propostospelos cientistas do sexo – Rechard Krafft-Ebing, Henry Havelock Ellis esimilares – no séc. XIX. Os sexologistas e seus seguidores modernos vêem olesbianismo como mais um dentre os vários comportamentos sexuais estranhos quese afastam da norma, isto é, o sexo heterossexual com penetração do pênis,posição “papai-mamãe”. Outros grupos de desviâncias sexuais incluemhomens gays, mas também pedófilos, transexuais, variedades de fetichistas.Excetuando-se as lésbicas, essas categorias são principalmente relativas acomportamentos sexuais masculinos e mulheres aparecem apenas como vítimasdo comportamento sexual desviante.

 

A política dadiversidade sexual confina as lésbicas à companhia de homens gays e outros gruposde desviantes sexuais. As políticas da diversidade sexual têm se manifestado emmuitos dos textos da nova literatura “queer”. As políticas do feminismo lésbicojogam as lésbicas para a companhia da classe política das mulheres, ou paraseus próprios recursos enquanto lésbicas. Feministas lésbicas têm visto a simesmas como o modelo para as mulheres livres, e não como sexualmente diversas.É uma visão diferente. Para que compreendamos as raízes desse conflito dedefinições será útil olhar para o momento em que se deu a criação da diferençasexual na sexologia, e como as acadêmicas lésbicas e gays compreenderam essefenômeno.

 

Teóricas lésbicas egays, como Mary MacIntosh e Jeffrey Weeks, argumentaram de maneira bastantepersuasiva que a ideia de homossexual como um tipo específico de pessoa, aideia de um “papel homossexual”, é uma invenção relativamente recente, dos sec.XVIII ou XIX. Antes disso, o desenvolvimento dessa atividade sexual entrehomens, apesar de estigmatizada, era vista como algo que um homem qualquerpoderia fazer. O conceito “do homossexual” – como um homem cujo comportamentotem uma causa específica, que tem um destino homossexual perceptível, cujosinteresses sexuais se direcionavam exclusivamente àqueles do mesmo sexo, comcaracterísticas igualmente perceptíveis – ainda não havia se desenvolvido.

 

Historiadorasfeministas e lésbicas, como Lillian Faderman e Caroll Smith-Rosenberg, tambémargumentaram que uma identidade lésbica específica, baseada nas categoriassexológicas, foi criada no final do séc. XIX. Elas mostraram que, antes disso,mulheres britânicas e americanas de classe média, casadas ou solteiras,engajavam-se rotineiramente em amizades apaixonadas, românticas efrequentemente muito duradouras entre si, o que incluía expressões constantesde amor pleno, dormir nos braços uma da outra, ou dividir o mesmo travesseiroaté por uma vida inteira, sem que isso fosse visto como algo incomum oususpeito. Havia algumas mulheres que, no entanto, ao longo do sec. XIX teriamse enquadrado no que viria a ser mais tarde o modelo sexológico, algumasinclusive teriam se vestido em roupas masculinas e amado mulheres apesar daausência daquele modelo. Uma mulher, por exemplo, na Yorkshire do século XIX,Ann Lister, de fato se envolveu em relacionamentos sexuais entusiásticos comsuas vizinhas, até o ponto de contrair doenças venéreas, segundo o que escreveuem seu diário, e realmente compreendia-se como “diferente”. Mas a existência de mulheres assim não parecia influenciar a inocência com a qual amigas apaixonadas levassem suas amizades, nem influenciou a aceitabilidade social do amor entre duas mulheres. Foi o advento da sexologia que tornou pública eestigmatizou uma categoria de “diversidade sexual”.

 

Historiadoras lésbicase gays têm discordado sobre a vantagem ou desvantagem dos impactos dasconstruções sexológicas para o desenvolvimento das identidades lésbica e gay.Historiadoras feministas e lésbicas, como Lillian Faderman, CarollSmith-Rosenberg e eu mesma,percebemos a sexologia como uma força hostil queminou o feminismo, estigmatizou as amizades apaixonadas entre mulheres ecriou o estereótipo destrutivo da mulher invertida masculinizada. Historiadoresgays, como Jeffrey Weeks, tendem a ser mais otimistas e dizem que acategorização sexológica ajudou no desenvolvimento dos movimento pelos direitoshomossexuais, ao prover uma identidade definitiva aos homens homossexuais, emtorno da qual poderiam se unir e organizar [4].

 

É importante lembrarquais os componentes da construção sexológica, não apenas pelo fato de ter setornado alvo de controvérsia, mas porque essa ideia tem reaparecido na agendapolítica lésbica e é útil conseguirmos reconhece-la. Um componente aceitogeneralizadamente no modelo sexológico é a atribuição genética. Havelock Ellis,o sexologista autor de Sexual Inversion em 1897, foi bastante influenteem construir o estereótipo da lésbica na Grã-Bretanha. Ele dizia que “qualquerteoria sobre a etiologia da homossexualidade que desconsidere o fatorhereditário da inversão não deve ser admitida”, e acrescenta como evidencia a“freqüência de inversão entre parentes próximos do invertido”. Essa ideialevou a ideias bastante curiosas em seus casos clínicos. Parece que, quando sepedia para que os pacientes produzissem evidências a respeito do fatorhereditário, eles eram bastante criativos em suas respostas. Um homem ofereceuo seguinte:

 

“Alguns diziam que meuavô talvez tivesse um temperamento anormal, porque apesar de ser de origemsimples, ele se organizava e trabalhava ardorosamente como missionário e setornou um exímio linguista, traduzindo a bíblia para uma língua ocidental eeditando o primeiro dicionário daquela lingua.’ [6]

 

Realmente, isso podeparecer suspeito para alguns, mas não necessariamente conectado à homossexualidade.Mas a ideia da hereditariedade genética inspirou alguns ativistas dos direitoshomossexuais nos anos 90, na Grã-Bretanha e na Alemanha. Ofereceu apossibilidade de apelar à simpatia da população e de repelir qualquerlegislação hostil, baseados na premissa de que homossexuais foram apenascriados pela natureza, em vez de serem pecadores, e portanto deveriam seraceitos. Radclyffe Hall, ao aceitar os argumentos sexológicos na década de 20,empregou essa estratégia em The Well of Loneliness e fez comque Ellis escrevesse o prefácio do livro, para que o argumento dela pudesse servisto como apoiado pela ciência. O modelo sexológico se tornou mais sofisticadoao ser acrescido da psicanálise, que postulava uma causa determinista semelhante, apesar de psicológica e não biológica. Dado que a psicanáliseapareceu para oferecer meios de cura, acabou por ser menos popular com osinvertidos e se tornou mais popular com os sexólogos dos anos 50, que seempenhavam em eliminar a homossexualidade por meio de engenharia psicológica.Essas duas versões sexológicas estão sendo revividas. A nova popularidade das explicações biológicas será examinada no capítulo sobre “A Lésbica Essencial”.

 

A controvérsia atualsobre o impacto da sexologia se sustenta na maneira como ela foi selecionada eempregada pelos próprios invertidos. O trabalho de Edward Carpenter,ativista do Direitos Homossexuais Britânicos, é um bom exemplo do que seriavisto por alguns historiadores como o uso positivo dessas ideias. Ele baseou muitode seu trabalho pela aceitação social da homossexualidade no trabalho de umaformidável lista de sexologistas. Ele aproveitou a ideia de hereditariedadegenética para construir sua teoria do “sexo intermediário”. Em seu trabalho,ele reproduziu o entendimento de alguns sexólogos de que o terceiro sexo ousexo intermediário consistia na ordenação biológica de característicasmasculinas e femininas em combinações incomuns. Isso fica muito claro em suadescrição dos “espécimens extremos”. O macho intermediário extremo seria um‘tipo distintamente feminino, sentimental, destituído de vigor, delicado em seuandar e em suas maneiras’. A versão extrema da fêmea ‘homogênica’ derivariatambém de características de gênero inapropriadas.

 

“uma pessoanotavelmente agressiva, passional, de movimentos masculinos, pragmática em suavida, sensata em vez de sentimental no amor, frequentemente despojada,alternativa em suas vestimentas; seu corpo é musculoso, sua voz é grave natonalidade; seu quarto é decorado com cenas de esportes, pistolas etc e nãodispensa o cheiro de erva na atmosfera; ao passo que seu amor (geralmente umespécimen delicado e feminino de seu próprio sexo) é frequentemente histérica,semelhante às amantes comuns dos homens, e às vezes quase incontrolável” [8]

 

O cheiro de erva era provavelmente, pra nossa decepção, tabaco. Tais espécimens extremos, Carpenternos ensina, são raros. A maioria não tem uma aparência incomum. O corpo deuma homogênica ‘mais normal’ seria ‘feminina até os detalhes’, mas sua‘natureza interior é em grande parte masculina’.

 

“um temperamentocorajoso, ativo, original, razoavelmente decidido, não muito emotivo; amante davida fora de casa, de jogos e esportes, da ciência, da política, e até mesmonegócios; é organizada e gosta de posições de responsabilidade, às vezesfazendo uma líder excelente e generosa.” [9]

 

Hoje em dia, seriadifícil dizer o que há de masculino nessa descrição. Na verdade, mostra outracaracterística da abordagem sexológica sobre a fêmea invertida. Ativistashomossexuais como Carpenter e homens cientistas como Ellis sempre tendiam aassociar assertividade, independência e uma mentalidade feminista, em mulheres,com o lesbianismo. Tais qualidades eram suficientes para lançar acusaçõesde inversão nos anos 90, da mesma forma que o são hoje em dia.Mulheres de personalidade forte poderiam ser classificadas como anti-naturais.

 

Outra característica daabordagem sexológica sobre a lésbica era prescrever encenação de papeis pararelações lésbicas. Carpenter segue essa tradição ao dizer que aquelas muitomasculinas, esportistas com pistolas geralmente prefeririam ‘um espécimendelicado e feminino de seu próprio sexo’. [10] Os sexólogos explicam esse fenômeno dizendo que existem dois tipos de mulheres homossexuais. Existem aslésbicas congênitas, invertidas, que têm uma orientação masculina, eexistem ‘pseudolésbicas’ que teriam sido heterossexuais se não tivessem sidovitimas dos estratagemas da verdadeira invertida. A segunda separeceria e agiria como a heterossexual efeminada de seu tempo. Aqui vemos serem fundadas as bases para a ideia de que a encenação butch/femme seria a relação lésbica essencial.

 

O interessante é que omodelo sexológico do lesbianismo não era necessariamente baseado em contatogenital. Os sexológos jogavam longe suas redes e incluíam, em seus estudos decaso, mulheres cujas relações teriam sido lidas como a mais inocente dasamizades apaixonadas. Por essa razão, historiadoras feministas consideraramo trabalho dos sexólogos particularmente danoso. Este criou uma suspeita quelimitava as possibilidades das amizades entre mulheres para qualquer uma quenão desejasse ser jogada em uma minoria estigmatizada e encenadora de papeis.O trabalho dos sexólogos estimulou a campanha, como Faderman mostra em seu livro,para prevenir mulheres e meninas contra o lesbianismo nas escolas euniversidades até que, no início dos anos 20, amizades apaixonadas entremulheres haviam adquirido de maneira generalizada a aura de perversão. LillianFaderman culpa a sexologia por ter tornado o lesbianismo algo perverso,proscrito e maligno. Os efeitos foram:

 

“muitas mulherescorreram para o casamento heterossexual, desenvolveram nojo ou pena de simesmas caso aceitassem o rótulo de invertida. No começo do século XX, aliteratura popular europeia, influenciada expressivamente pelos sexólogos, sereferia a “milhares de seres infelizes” que “experienciam a tragédiada inversão em suas vidas”, e a paixões que acabavam em “loucura ousuicídio”. Na imaginação popular, o amor entre mulheres tinha se ligado àdoença, insanidade e tragédia.” [12]

 

Historiadorasfeministas lésbicas veem a categorização sexológica de lésbicas como engrenagemde um mecanismo de controle social tanto do amor entre mulheres quantodo feminismo, fenômeno que é particularmente poderoso em sua combinação.

 

Caroll Smith-Rosenberg,escritora do artigo viral The Female World of Love and Ritual sobreamizades apaixonadas, vê golpe sexológico sobre o discurso feminista nos anos20 como nocivo. Ela fala sobre a importância, na historia feminista e lésbica,da “nova mulher” ao final do século XIX. As ’novas mulheres’ formavam amizadesapaixonadas para se apoiarem na universidade, trabalhavam em casas deassistência [settlement houses] e no desenvolvimento de carreiras deassistência social e professorado. Elas ‘teceram a partir de suas mães’amizades cheias de amor, frequentemente passionais, no tecido de seu novomundo. [14] Elas eram reformistas sociais que se articulavam e criavam umamáquina de mudança, muitas vezes bastante feminista. Elas evidentemente eram aestrutura de muitas campanhas feministas, de maneira mais notável havia no RUhavia a União Política e Social de Mulheres (WSPU). Smith-Rosenberg explica quemédicos da era vitoriana tardia caracterizaram as ‘novas mulheres’ comomasculinas e, em seguida, como “lésbicas masculinizadas”. Ela percebe adefinição de lesbianismo oferecida pelos sexólogos como subordinadora daslésbicas, não empoderadora. ‘Ao transformá-la em um objeto sexual, fizeram delamaterial para a regulação política do Estado’. [15]

 

Amizades românticas ouapaixonadas geraram controvérsia entre acadêmicas lésbicas. Enquanto eramcelebradas por Smith-Rosenberg e Faderman, foram desprezadas como produto declasse-média, ou como anti-sexo, por outras. A discordância sobre amizadesapaixonadas surge de diferentes pontos de vista sobre o que constitui aidentidade lésbica. Quando escreveu Superando o Amor por Homens,Faderman viu, nas mulheres envolvidas em tais amizades, as mulheres feministasda década de 70. Faderman viu o feminismo-lésbico como um análogo das amizadesromânticas, que ela via como algo em que ‘duas mulheres são tudo uma para aoutra e tinham pouca conexão com homens, que eram tão alheia e totalmentediferentes’. Ela sugere que ‘se as amigas românticas de outras épocas vivessemhoje, muitas teriam sido feministas lésbicas; e se as feministas lésbicas dehoje vivessem em outras épocas, a maioria delas teriam sido amigas românticas”.A definição de Faderman sobre o lesbianismo não dependia de contato genital.Ela diz ‘o amor entre mulheres foi primariamente um fenômeno sexual apenas nafantasia literária masculina’. [17] Ela fundamenta sua definição em emoções ediz que ‘o contato sexual pode ser parte da relação em maior ou menor grau, oupode estar completamente ausente’. Ela diz que feministas lésbicascontemporâneas não são inocentes quanto ao sexo, mas ‘o aspecto sexual de suasrelações geralmente possui menos significância que a base emocional e aliberdade que têm para definirem a si mesmas’ [18]. Ela sugere que muitasrelações entre feministas lésbicas continuam muito depois do ‘componente sexualter se

esvaído’.

 

Os críticos de Fadermana acusaram de traição, de “dessexualisar” o lesbianismo ao incluir, em suadefinição, mulheres que não tiveram contato genital no passado ou que tivessemcontato genital pouco frequente no presente. [19] Para aquelas que veem o lesbianismo como diversidade sexual, amigas românticas claramente não qualificam. Mas feministas, para quem escolher e amar mulheres é a base daidentidade lésbica, elas qualificam sim. A conexão genital é difícil deprovar. As lésbicas, ao longo da história, podem se revelar bem poucas, e ahistória das lésbicas começará apenas a partir do século XIX, se o modelosexológico for adotado. A história da heterossexualdiade nunca foi limitadaà comprovação do contato genital. A heterossexualidade é uma instituição política que não começou com a sexologia em 1890. Não é apenas mais umadiversidade sexual. De acordo com o que eu e outras membras do London LesbianHistory Group dissemos, o objetivo da historiadora lésbica é analisara história da resistência feminina à heterossexualidade como instituição, emvez de apenas buscar mulheres que se enquadrem numa definição surgida no séculoXX baseada na sexologia. [20]

 

A nova caracterizaçãonão foi simples e terminantemente rejeitada por mulheres que amavam mulheres.Algumas decidiram adotá-la como sua auto-definição na década de 20. Havia uma pressão para que mulheres fossem sexualmente ativas. Como detalhei em outros artigos, a ‘revolução sexual’ dos anos 20 visava a curar o feminismo,o ódio aos homens, o lesbianismo e apoio entre mulheres solteiras, por meiocientistas ganhando o entusiasmos das mulheres heterossexuais (e preferencialmentetodas) para a atividade sexual com penetração. [21] O prazer sexual dasmulheres era esperado para subordiná-las ao marido no casamento e em outrasáreas da vida. Havia uma pressão considerável para resignar mulheres à posição”papai-mamãe” na heterossexualidade de maneira que seus prazerespudessem ser orquestrados para a subordinação. Jovens mulheres heterossexuaisaceitaram essa distração, Smith-Rosenberg argumenta.

 

‘Separando os direitosdas mulheres de seu contexto econômico e politico, eles fizeram da jornada dafilha por prazeres sexuais, e não das exigências da mãe por poder político, apersonificação da liberdade feminina.’ [22]

 

A estigmatização dolesbianismo foi uma arma poderosa que poderia ser usada para prensar asmulheres na heterossexualidade. A lésbica marginal era um complemento necessário para a dona de casa entusiasmada e heterossexual.

 

Mulheres que amavam mulheres e entraram em contato com o discurso sexológico tiveram que escolhercomo se relacionar com a nova prescrição. Elas poderiam abandonar apossibilidade de estabelecer amizades apaixonadas, na tentativa de evitar oestigma do ser desviante. Elas poderiam continuar com suas amizadesapaixonadas, rejeitando o modelo sexológico como algo que nada tem a ver comelas. Muitas definitivamente escolheram este percurso, mas ele deve ter sidobastante tortuoso. A outra opção era aceitar a nova identidade oferecida.Smith-Rosenberg e Newton concordam que muitas o fizeram, e que suas decisõestiveram conseqüências para o feminismo e para a posterior história daslésbicas. Elas se ressentiam da geração anterior por não lhes oferecer especificamente uma definição sexual para o amor entre mulheres, em uma época onde o sexo se tornava mandatório; e por falharem, assim, em fornecer à nova geração um “vocabulário sexual”. O exemplo mais famoso é, evidentemente, RadclyffeHall, que optou por utilizar o modelo sexológico em The Well of Loneliness,acreditando que se alcançaria uma simpatia social pelas lésbicas caso fossemvistas como geneticamente deficientes em vez de deliberadamente pervertidas.

 

Smith-Rosebergargumenta que a adoção da “lésbica masculina” estereotípica teve implicaçõesruins para o feminismo. Houve uma cisão entre as novas lésbicas e as geraçõesfeministas anteriores, de forma que elas estariam vulneráveis enquanto oshomens reafirmavam seu poder em oposição às vitórias feministas. A adoção desímbolos da masculinidade não foi libertadora, apesar dos esforços emrevesti-los de um significado novo e positivo para as lésbicas, feitos a partirdos anos 20 e por lésbicas mais novas. “Elas falharam” nessa tarefa, diz aautora. Faderman explica que a adoção de um status estigmatizante demarginalidade fez com que a teoria lésbica se ocupasse de destruição e puniçõesaté os anos 60.

 

A historiadora lésbicaEsther Newton tem uma perspectiva bastante diferente. Ela despreza a maneiracomo historiadoras lésbicas feministas escrevem sobre o mundo das amizadesapaixonadas, “o século XIX se torna um tipo de Idade de Ouro das lésbicas,cheia de casais feministas inocentes e amorosos” [23]. Ela vê a “lésbicamasculina” como uma identidade que foi abraçada por aquelas que queriam “fugirdo modelo assexual da amizade romântica”. Ela diz que Radclyffe Hall queriafazer da mulher que ama mulheres um ser sexual, e só poderia fazer issoadotando o estereótipo masculino nos termos impostos pelos machos. “Paratornar-se assumidamente sexual, a Nova Mulher precisou entrar no mundomasculino, seja como heterossexual nos termos dos homens… ou como uma lésbicatravestida de homem” [24]. Ela vê isso como um ato progressista e radical quedesafia os estereótipos de gênero. Ao fazer a mulher encenar o papel masculino,Hall ‘questiona a inevitabilidade das categorias de gênero tradicionais’, mas elatambém ‘as aprova’. Ela concorda que os homens têm usado a imagem da butch para‘condenar lésbicas e intimidar as mulheres heterossexuais’, e reconhece que avisão de Hall sobre a identidade lésbica, caracterizada como ‘diferença sexuale masculinidade é inimiga da ideologia lésbica feminista’ [25].

 

As interpretações bastante diferentes do impacto da sexologia que se espalharam hoje em dia jáeram alvo de críticas quando o romance foi publicado pela primeira vez.Feministas se mostravam frequentemente descontentes com a criação de Hall. VeraBrittain é uma das feministas que editaram Time and Tide. Elaconhecia bem o potencial do amor entre mulheres desde seu envolvimento comWinifred Holtby em uma amizade apaixonada [26]. Em sua resenha, ela admite aexistência de uma categoria de lésbicas que é anormal e uma que não é, que elaidentificaria em seu livro como invertidas versus pervertidas.

 

“Mulheres do tipo deStephen Gordon, desde que tenha sua anormalidade como inerente e não apenascomo culto de um erotismo exótico, merece compreensão e compaixão totais,partindo de todas as pessoas que tiveram a sorte de escapar de uma das maiorescrueldades da natureza” [27]

 

Brittain claramente nãose vê como alguém que possua qualquer conexão com tais aberrações, sejam asinvertidas ou as pervertidas, apesar de amar mulheres. Isso mostra que oimpacto da sexologia é que as lésbicas fossem separadas da classe das mulheres.O ‘culto do erotismo exótico’ soa tentador, quase que um chamariz para a agenda‘queer’. Contudo, ao levarmos em consideração as manifestações exageradas defeminilidade e masculinidade de Stephen e de sua amante Mary Llewellyn,Brittain rejeita a mensagem de que isso viria do biológico. Ao contrário, elacondena a imposição de uma distinção de gênero tão exagerada, ao final doséculo XIX.

 

“Claramente parece provável que problemas como esse se intensifiquem com o exagero das diferenças sexuais, que foram marcadas de forma peculiar em algumas épocas, e que a classe média inglesa dos séculos XVIII e XIX vivenciava. A Sra. Hall parece dar comocerto que a ênfase intensa nas características sexuais seja parte da educaçãocorreta de um ser humano; sendo assim, ela define a mulher ‘normal’ comodependente, ‘irritantemente feminina’ e chega a dizer que atitudes que tomam oamor como um ‘fim em si mesmo’ são um atributo necessário de ser mulher” [28].

 

Brittain escrevia em1928, muito antes de o termo “gênero” ser usado, mas é capaz de analisarcriticamente o que hoje em dia seria chamado de gênero, vendo sua construção social e política. Brittain não aceitaria a ideia da encenação de papeislésbica, visto que ela claramente acreditava que mulheres não deviam se comportar de modo masculino nem feminino. “Essa confusão entre o que é‘masculino’ ou ‘feminino’ e o que é meramente humano, em nossas máscaras complexas, persiste ao longo do livro”. Ela não aceita que os comportamentos de Stephen na infância seriam uma pista para sua anormalidade.Ela diz que a “suposta predileção sinistra dessa criança” lhe parece apenas”as preferências bastante normais de qualquer menina vigorosa que poracaso possui mais vitalidade e inteligência do que suas colegas” [29]. Ofeminismo sensato de Brittain está em intenso contraste em relação às visões deEsther Newton e das atuais protagonistas das encenação de papeis. É encorajador notar que as feministas dos anos 20 poderiam ser tão resistentes ao modelo sexológico dos invertidos masculinos e das pseudo-homossexuais femininas quanto qualquer feminista lésbica contemporânea.

 

Brittain viu que odesejo feminino por liberdade foi capturado pelo estereótipo da lésbicamasculina, viu que a categorização sexual servia ao controle e não à libertação.

 

“Se um dos resultadosda educação das mulheres, ao final do século XIX, era o de colocar a alcunha de’perversão’ em um ser humano cujo desejo principal era apenas a expressão maisplena de sua humanidade do que permitiam as convenções sociais, então aquelaeducação era de fato uma coisa ruim” [30].

 

É curioso que essadiscussão esteja sendo replicada nos anos 80 e 90, com lésbicas buscando seresumir a estereótipos sexológicos, mesmo aqueles bastante antiquados, porqueos tempos seriam tão diferentes hoje. Uma crítica feminista desses estereótiposfoi parte massiva do movimento lésbico. A reafirmação de papeis é uma rejeiçãoexplícita dos insights lésbico-feministas. Por que ideias da década de 20,adotadas como auto-defesa por um grupo de lésbicas que sentiam não haveralternativas, seriam retomadas com entusiasmo por lésbicas de hoje que têmtantas possibilidades?

 

Newton explica seuinteresse na questão sobre sexologia e Radclyffe Hall ao final de seu artigo.Ela se identifica diretamente com a “lésbica masculina”. Ela coloca que, assimcomo Hall, enxerga o lesbianismo como “diversidade sexual”. Newton é umadaquelas lésbicas dos anos 80 que escolheram o modelo sexológico do lesbianismoem lugar do que ela vê como a influência ultrajante do feminismo lésbico. Elaabraça a sexologia com zelo. Toda a sua linguagem e conceito de lesbianismo vêmdessa fonte. Um exemplo é sua busca por uma explicação para o lesbianismo.Feministas lésbicas não tendem a buscar uma explicação, porque elas não veem o lesbianismo como uma condição minoritária, mas como uma escolha positiva para todas a smulheres. Newton busca respostas na psicologia tradicional. Ela diz que vêo “erotismo mãe/filha’ como ‘componente central da orientaçãolésbica” [31]. Esse é um conceito que deriva da psicanálise. Ela seguedesejando que a “psicologia feminista” venha resolver a “charada da orientação sexual”.

 

Apesar de parecer, nocomeço, enxergar a adoção do estereótipo masculino como uma escolha feita paraa obtenção de uma identidade lésbica nos anos 20, ela demonstra em suaconclusão o compromisso com um certo determinismo psicológico. Ela diz que Halle os sexologistas estavam “escrevendo algo real” quando descreviam as lésbicasmasculinas. Esse era o fenômeno da “disforia de gênero”, ou “um fortesentimento de que o gênero que foi designado como feminino ou masculino nãoconcorda com o gênero percebido pelo indivíduo sobre si” [32]. Essa ideia vemda sexologia. Aparentemente, “disforia de gênero” é imutável e não é sujeita àescolha, porque:

 

“Masculinidade efeminilidade são como dois dialetos da mesma língua. Apesar de todos compreendermosambos, a maioria de nós “fala” apenas um deles. Muitas lésbicas, como StephenGordon, são fêmeas biológicas que crescem pensando e e “falando” o dialeto“errado” [33].

 

Isto não seria sujeitoà mudança na vida adulta porque “a identidade de gênero é determinada na tenrainfância”. Portanto, Newton diz que devemos apoiar as “mulheres masculinas ehomens femininos” porque “muitas lésbicas são masculinas;muitas têm estilos compostos; muitas são enfaticamente femininas”. Seriadifícil imaginar por que exatamente Newton enfatizou o “são” nessa frase, amenos que o tivesse feito para estabelecer a qualidade essencial e inevitávelda ‘masculinidade’ lésbica. Esta claramente não é uma abordagem feminista.Feministas lésbicas acreditam, não apenas por um compromisso ideológico com oconstrucionismo social, mas por conta de sua própria experiência, que ocomportamento humano pode ser mudado. Afinal de contas, feministas estãodemandando que os homens mudem seu comportamento masculino, um comportamentovisto como a afirmação do pertencimento à classe dominante, e a existênciadessa classe depende justamente da subordinação de mulheres. Muitos homenspro-feministas demandam o mesmo. Mas Newton, uma professora de estudos demulheres na State University, em Nova York, nos diz que a masculinidade emlésbicas butch deve ser apoiada, ao mesmo tempo em que tanto esforço feministaé feito para que nos livremos disso nos homens.

 

Newton decidiu “sair doarmário” em 1984 como uma “lésbica butch”. Isto, na minha opinião, foi umadecisão política, apesar de que Newton não gostaria de vê-la desse jeito. Elavê a si mesma, de alguma forma, como essencialmente butch. Ela diz que eraincapaz de se assumir butch antes dos anos 80 porque, sendo ela uma lésbicaeducada de classe média, ela associava a masculinidade às lésbicas da classetrabalhadora, em cujos bares ela se assumiu como lésbica em 1959.Aparentemente, ela precisava achar um jeito “classe-média de ser butch” [34].Ela encontrou isso em um grupo de apoio a butches em Nova York. Ela diz quehouve uma “grande dificuldade de conciliar essa identidade, para muitas de nós”[35]. Como professora de estudos de mulheres, ela deve conhecer a montanha deestudos feministas e masculinos que tentam desconstruir e eliminar a masculinidade.Provavelmente foi devido a esse conhecimento que ela precisou de apoio contra oque ela chama de “ideologia lésbico-feminista dominante”. Parece que as butchesdo grupo estavam determinadas a agir corretamente de acordo com amasculinidade, e viram-se vítimas das limitações do papel masculino. Osprocedimentos de grupo parecem uma paródia alienada da tomada de consciênciados homens contra o sexismo, nos anos 70.

 

“descobrimos que nosfaltavam capacidades sociais, não havia ninguém lá para mediar ou para jogarconversa fora. A maioria de nós tinha dificuldades para falar dos sentimentos,de conversar com intimidade” [36]

 

Elas se preocupavam comcoisas como “não sou alta o suficiente. Você é mais masculina do que eu… Háproblemas intrínsecos ao ser butch? Excesso de controle? Vocês gostariam dechorar mais?”. Contudo, diferentemente dos homens contra o sexismo, essasmulheres não queriam perder a masculinidade que era sua posse preciosa, queriamapenas melhorar alguns problemas que o comportamento masculino lhes dava. As”butches” imitavam a misoginia do comportamento masculino, tal qual éesperado se a masculinidade é justamente baseada no desprezo à mulher e naimportância de não ser uma. Outro tópico, ela diz, eram as “femmes” e”começar a reclamar das femmes e do feminismo”. Isso parece comcomportamento de aquisição de lealdade entre machos, onde homens estereotipadossentam em bares e tentam se convencer de que eles não podem se parecer em nadacom mulheres.

 

Newton parece terbastante ambivalência sobre ser mulher. Em certa época, isso poderia serresolvido em algum grupo feminista de tomada-de-consciência, onde mulheresdiscutiriam, em segurança, seu ódio a si mesmas como membras da categoria demulheres, que é desprezada e inferiorizada, e lá desenvolviam orgulho. Em vezdisso, ela escolheu adotar uma masculinidade caricata e fingir que não tinhaescolha. Dado que é uma acadêmica inteligente e instruída, ela é capaz detransformar sua justificativa pessoal em “teoria” sobre os efeitos positivos dasexologia, que criou o estereótipo da butch que a autora buscaaperfeiçoar. Nos anos 80, o hábito feminista de desenvolver uma auto-crítica pesada e análise política, aliadas à crença na possibilidade demudança pessoal segundo os próprios interesses e os da liberação lésbica, foisubstituído em alguns círculos lésbicos por uma crença na identidade ou destinoinvioláveis e inevitáveis, baseados em sentimentos acríticos sobre “quem vocêrealmente é”. A ideia de uma construção social e, certamente, a ideia de queera bom sujeitar seus “sentimentos” a análise em contexto feminista,tornaram-se ofensivas para a auto-percepção de outras lésbicas. O feminismo interrompia a busca pela verdade.

 

A ideia de homens gays,e de Newton, de que as construções sexológicas tiveram um efeito positivo,encontram sua base teórica em Michel Foucault. Foucault argumenta que,apesar de a sexologia prover a possibilidade de maior controle social por meiode sua criação, ela também continha a possibilidade de um “discurso reverso”.De acordo com essa ideia, os objetos da categorização sexológicas poderiam usaras próprias para combater as forças de poder.

 

“A homossexualidadecomeçou a falar em prol de si, a demandar que sua legitimidade e ‘naturalidade’

fossem aceitas, muitasvezes com o mesmo vocabulário e as mesmas categorias pelas quais foimedicamente desqualificada” [37].

 

The Well of Lonelinessde Radclyffe Hall tem sido encarado por acadêmicas lésbicas e gays como umcriador do “discurso reverso” para as lésbicas. Jonathan Dollimore explica queThe Well:

 

“ajudou a iniciarum discurso reverso no sentido foucaultiano: lésbicas estariam aptas a seidentificar, às vezes pela primeira vez, pela própria linguagem de suaopressão” [38]

 

Hall fez mais do que,meramente, aceitar para as lésbicas um status de amaldiçoadas e marginais. Apartir do momento em que coloca em Stephen “o mártir (religioso) e o marginal(romântico)”, uma imagem poderosa foi criada, a imagem de uma “sensibilidade eintegridade superiores sendo buscadas por pessoas ordinárias e normais”.Dollimore aceita, assim como muitos outros acadêmicos gays, que o”discurso reverso” criado levou a uma politica sexual positiva.

 

“Bizarro como possaparecer, muitos desenvolvimentos posteriores na liberação sexual e naspoliticas sexuais radicais podem ser encontradas nessas apropriações feitas porHall, mesmo aqueles desenvolvimentos que a teriam desagradado, por exemplo aideia de desvio sexual como potencialmente revolucionário, subvertendo o centrocorrupto e o opressivo a partir de suas margens desviantes” [40]

 

A questão agora, muitodebatida por teóricos gays, é até onde o movimento por direitos homossexuais,que usava tais categorias, se tornou refém e enfraquecido por elas, e o quantoele teria de fato sido capaz de subverter as categorias para uso em umaresistência efetiva.

 

O movimento deliberação sexual que Dollimore tem em mente com certeza serve aos interessesdos homens gays. Disso não decorre que para lésbicas, que se inserem na classesexual feminina, essas politicas sejam boas. A adoção de categorias sexológicas paraas lesbicas – apesar de terem parecido úteis a curto prazo, argumentando pelaempatia das pessoas heterossexuais, e oferecendo uma identidade definitiva ao redorda qual nos organizarmos – significou que as lésbicas do séc. XX aceitassem alinguagem e ideias da sexologia para descreverem a si mesmas. O lesbianismo setornou uma minoria desviada, baseada em atividade sexual genital, que aceitacausas biológicas ou psicológicas e frequentemente também aceita as terríveisamarras da encenação de papeis. Lésbicas foram obrigadas a quebrar suacomunidade em dois grupos de acordo com princípios bastante arbitrários, parabuscar suas amigas em uma e suas amantes em outra, e modelar seu comportamentonos comportamentos inadequados, inventados por homens, da feminilidade emasculinidade.Lésbicas também foram divididas com sucesso do restante dasmulheres e feministas. Sendo uma minoria desviada e separada, agora estavam sobcontrole.

 

É compreensível quehistoriadores gays sejam mais otimistas sobre o impacto da sexologia, afinal asituação histórica do homem homossexual é bastante diferente daquela dasmulheres. Os sexologistas associaram a inversão sexual em mulheres ao feminismoe se engajaram em ataques danosos ao movimento de mulheres. Os sexologistas nãoviram os homens homossexuais como representativos de um movimento de libertaçãoque os amedrontasse. Amizades passionais são outro jeito no qual a historia doshomens homossexuais é diferente. Pouco sobre tais histórias tem sido escrito arespeito de homens. Se o potencial para uma tal amizade foi danificado pelaconstrução sexológica, e pode mesmo ter sido, isso não foi uma questão para ahistória gay. Homens gays podem se satisfazer com um status desviante dadoque eles são membros da classe dominante e não precisam lutar contra seu statusde classe sexual. Foucault, afinal, não escreveu qualquer consideraçãosobre lesbicas e pouquíssimo sobre mulheres. É uma medida do poder da cultura eteoria gay masculina que se definam as políticas sexuais particularmente naacademia, que um modelo extremamente inadequado deva ser aplicado tanto amulheres como a homens.

 

É precisamente o modelosexológico do lesbianismo que está sendo adotado, mesmo nos anos 80 e 90, poraquelas lésbicas que mais se opõem ao feminismo. Tais lésbicas estão lutandopara se enquadrar em textos médicos e acreditar que estes estão dizendo a‘verdade’, que a sexologia é a ‘verdade’, sobre si mesmas. É difícil entendercomo o modelo médico poderia receber, de repente, uma nova ocorrência a essaaltura. Estudantes gays sugeriram para mim que isso se relaciona com o modocomo a profissão medica está reafirmando seu comando sobre a homossexualidademasculina devido à sua importância durante uma epidemia de AIDS. Mas isso nãoexplica por que lésbicas como Esther Newton escolhem esse modelo no inicio dosanos 80. Compreender o apelo do modelo medico é um dos objetivos de A HeresiaLésbica.

 

 

O impacto das ideiassexológicas e a década de 20, em particular, podem agora ser vistas como umensaio, se não da construção da identidade lésbica, então ao menos presente nosdebates contemporâneos sobre sexualidade lésbica. Feministas lésbicas e lésbicasda ‘diversidade sexual’ enxergam de maneiras muito diferentes esse períodohistórico. A década de 20 pode ter mais relevância direta para o presente.Podem haver algumas pistas sobre o que houve nos anos 20 para compreendermos arendição da comunidade lésbica na década de 80. Assim como algumas lésbicas,naquela época, adotaram as categorias sexológicas para dar sentido a suasexperiências, e descobriram que isso entrava em conflito com as concepçõesfeministas sobre sexualidade, da mesma forma as lésbicas da sexualidadelibertária, mais recentemente, têm usado a sexologia mais uma vez para explicarseu lesbianismo em termos de biologia, diversidade sexual, butch e femme, comuma similaridade muito grande em relação rejeição das teoria e prática feministas.

Femmefobia: o que nos amedronta, de fato?

10-Jan-15
(traduzido de glosswatch.com)

Recentemente, comecei a me deparar com a palavra “femmefobia” usada para nomear críticas feitas à estereotipação feminina, à indústria da beleza. A femmefóbica é aquela que exibe um medo irracional de tudo aquilo o que é tradicionalmente associado à feminilidade. Ela tem preconceito com pessoas que usam a feminilidade como meio de expressão. Não seria porque ela esteja identificando uma estrutura opressiva que limita a escolha de todas, mas apenas porque ela não curte mulheres femininas. Ela é, em suma, intolerante.

Eu diria que sou um pouco femme. Curto maquiagem e prefiro vestidos a calças. Penso que carros e futebol são um tédio (porque eles são). Prefiro fazer crochet do que jogar Wii […] Portanto, tenho certo nível de empatia com aquelas que gritam “femmefóbica!”. Consigo ver esse posicionamento como um parente distante daquele adotado por feministas mais antigas, que buscavam reavaliar as atividades e culturas tradicionamente femininas. Não existe nada inerentemente trivial sobre o trabalho que as pessoas “femininas” fazem, sobre as poses que adotam, ou sobre os meios pelos quais elas se expressam. Além disso, desvalorizar o “feminino” não é somente machista, mas imperialista culturalmente, dado que definições de feminilidade variam entre diferentes culturas.

No entanto, ao passo que os trabalhos feministas anteriores tinham por meta reavaliar quais fatores que o construto da feminilidade podia oferecer para seres humanos em diferentes lugares e épocas, a ideia da “femmefobia” serve mais para silenciar críticas estruturais.Parece que não se pode atacar as indústrias e os ambientes sociais que exploram a pressão para que mulheres sejam “femininas”, porque isso significaria atacar as pessoas que são naturalmente “femme” (uma definição essencialista que é, em si, imperialista culturalmente). Eu acho isso absurdo. É obviamente absurdo, mas ainda assim essa palavra possui “fobia” em si, então não podemos falar isso muito alto.

Vejo isso acontecer demais: críticas feitas por mulheres são patologizadas, apresentadas como “fobias”, como uma resposta irracional à realidade, em vez de considerável, dotado de nuances e digno de consideração. Homens desafiam o status quo enquanto que mulheres, ao que parece, têm a escolha de refleti-lo ou de serem consideradas loucas ou malignas. Mulheres que não gostam da indústria da beleza são femmefóbicas. Aquelas que criticam a indústria do sexo, têm fobia de prostitutas. Aquelas que criticam estruturas familiares tradicionais “odeiam homens” e aquelas que apontam a objetificação têm “problemas paternos” ou “problemas com sexo”. Uma mulher que desafie a ordem social é tida como doente. É uma prática antiga – trabalhos de ficção feminista como “O Papel Amarelo” e “Wide Sargasso Sea” descrevem isso vividamente – mas é deprimente ver isso nos acompanhar ainda hoje, e mais ainda dado que é uma tática usada tanto por mulheres como por homens. Mesmo assim, consigo ver por que mulheres o fazem. Elas chamam outras mulheres de “fóbicas” porque elas próprias estão com medo. Todas estamos. Isso é o que o patriarcado te impõe.

Mas o que realmente nos amedronta quando usamos palavras como “femmefobia”, “fobia de prostituídas”, ou quando dizemos que mães trabalhadoras “odeiam” mães donas-de-casa? O que nos amedronta para usarmos acrônimos como TERF, sugerindo mau cartismo condições e patológicas em mulheres com as quais discordamos? Acho que tememos uma coisa: misoginia. Sabemos que a misoginia é real, mas ainda assim pensamos que se não dissermos isso em voz alta – se nós focarmos nossa atenção nas imperfeições de suas vítimas – ela talvez vá embora ou, ao menos, não nos afetará. 

Ninguém quer ser a mulher que gritou “misoginia!”, uma palavra mortalmente grave e que absolutamente ninguém leva a sério. Apenas tocar nela faz com que você soe histérica, infantil e fraca – todas as coisas que misóginos pensam das mulheres. É uma palavra que descreve uma fonte de opressão que, no entanto, se faz parecer vitimista/auto-complacente; apenas mulheres que não possuem problemas “reais” ficam irritadas sobre serem odiadas por serem mulheres. A misoginia é parte de grande parte das bostas que mulheres diferentes, em diferentes contextos, sofrem – ainda assim, o fato de que suas manifestações não são iguais, ao longo dos diferentes grupos, nos faz questionar a existência toda da misoginia. Acuse alguém de “femmefobia” e você, imediatamente, se distingue desde marasmo de mulheres mimizentas; acuse alguém de misoginia e você instantaneamente está fadada a provar quão patéticas e viciadas em vitimismo as mulheres do teu tipo são.

Coisificar as manifestações de misoginia – empacotando-as dentro de pequenas caixinhas que de maneira alguma se inter-relacionam – é confortável.  Teu problema deixa de ser um ambiente político, social e cultural que percebe mulheres como humanos inferiores. Deixa de ser um mundo no qual é considerada normal a objetificação, exploração e abuso de mulheres. Deixa de ser um mundo no qual você vai ouvir justificativas sobre como é ok estuprar mulheres como você, nem um mundo no qual a voz de qualquer mulher é considerada alta demais, nem um mundo onde a esmagadora maioria das decissões é feita por homens e para homens. Teu problema passa a ser apenas as femmefóbicas, as TERFs, as “fóbicas de prostituídas” e as feministas radicais que foram meio longe demais. Teu problema deixa de ser estrutural e vasto. São apenas meia dúzia de indivíduas que por acaso são intolerantes, erradas e mulheres. Bom. Conveniente, né?

Infelizmente, por mais confortável que isso possa ser, não está ajudando ninguém, ou melhor, talvez ajude algumas individuas a se sentir menos vulneráveis mas isto não fará as mulheres estarem seguras. Evitar falar em misoginia, reposiciona-la para ela parecer menos poderosa, não é uma solução. Todas nós temos palavras em nossas mentes e estórias a contar. Podemos inventar mais e mais, quantas quisermos. No entanto, quando nossa carne está sendo dilacerada, esquartejada, mortificada, modificada e abusada, não importa como nós recontamos a história. Isto é misoginia.

[grifos meus]

tradução n.s.

a nova misandria – joanna russ

10-Jan-15
Poxa, mulheres odiarem homens não é horrível?

 É claro que vários homens desprezam mulheres, mas isso é diferente, pois o ódio-por-mulheres não é algo sério – na pior das hipóteses é excêntrico, no melhor dos casos é fofo. Odiadores de mulheres (muitos dos quais são mulheres) podem se expressar por todo lugar – como sou lembrada pelo mais recente cartoon sobre mulheres motoristas –, mas odiadoras de homens têm menos oportunidades. Ódio-por-homens exige auto-controle. Ademais, odiadoras-de-homens estão em minoria na medida em que, para cada Valerie Solanas, quantos estupradores, quantos assassinos estão por aí? Quantos críticos de cinema machos acharam “Frenzy” de Hitch-cock um vigésimo tão revoltante quanto o “Scum Manifesto” de Solanas? É claro que Solanas deu um passo além e agiu, mas também o fizeram vários e vários homens – na pequena cidade onde moro houve vários incidentes de estupro no ano passado, e a resposta comum aos mesmos foram risadas.

 

Ademais, não é nada novo para os oprimidos serem solenemente avisados que sua entrada no Paraíso depende de não odiar o opressor; trabalhadora(e)s não devem odiar os patrões e negros não devem odiar brancos porque ódio é ruim. É um nítido caso de ambivalência. Veja: (1)Você faz algo ruim para mim. (2)Eu te odeio. (3) Você acha desconfortável ser odiado. (4)Você imagina o quão legal seria se eu não te odiasse. (5) Você decide que eu devo não te odiar porque o ódio é mau. (6) Pessoas boas não odeiam. (7) Porque odeio, eu sou uma má pessoa. (8) Não é o que você me fez que me faz de te odiar, é minha própria natureza má. Eu – não você – sou a causa do meu ódio por você.

 

Por algum motivo, a misandria (um termo chique para o ódio-por-homens) é um tópico muito carregado. As pessoa ainda falam como se odiar homens significasse matar a todos imediantamente – como se não houvesse diferença entre sentimentos e ações. Odiadoras de homens são pessoas que sentem-se de uma determinada forma (nem mesmo o tempo inteiro, acreditem ou não); elas não são Assassinas Instantâneas. Se as misândricas fossem as bestas selvagens, descontroladas e vorazes que supostamente são, teriam sido estranguladas em seus berços. Certamente muita(o)s pouca(o)s de nós estamos seriamente com medo que ardentes batalhões de feministas misândricas virão marchando ao nascer do sol para castrar cada homem daqui à Califórnia – apesar das piadas que são ditas parecerem indicar que acreditamos nisso. Bette Friedan por acaso acha que isso realmente ocorrerá? Obviamente não. Acaso Jill Johnston? Dificilmente. Ainda assim, Jill Johnston provoca tal abuso extraordinariamente virulento que deve estar dando nos nervos de alguma forma, e Betty Friedan recentemente acusou Gloria Steinem (de todas as pessoas) de – quê? Odiar homens. Uma séria acusação.

 

Feministas que desejam que o feminismo seja respeitado temem que as “radicais” irão “longe demais”. Isso é, o ódio-por-homens entrega o jogo –  nós não somos meramente liberais; nossas queixas são drásticas; nós estamos demandando, não pedindo; nós quebramos o molde da forma mais extensa possível; nós falamos realmente sério. (Por isso o ódio-por-homens tem sido usado como uma distração – é uma acusação bastante carregada.) Mulheres do movimento que pegam pesado publicamente contra a misandria estão com medo do backlash masculino. Elas querem a cooperação dos homens (e das mulheres),  querem aceitação, querem popularidade.

 

Em segundo lugar, há mulheres que sentem que sua própria escolha de um estilo de vida (morar com um homem, dormir com um homem, trabalhar com homens, amar um homem) é de alguma forma impugnada ou tornada inválida por mulheres que odeiam homens. O segundo grupo, é claro, sente-se extamente da mesma forma sobre o primeiro grupo – mas isso vem acontecendo há anos. A novidade é que a escolha convencional e socialmente aprovada está agora aberta a algum questionamento. As americanas parecem estar agindo dessa forma ultimamente; não nos amamos o suficiente para valorizar nossas escolhas sem algum tipo de sanção. Então nós depreciamos as outras a fim de que elas não nos depreciem, mesmo que por implicação.

 

Talvez a causa mais importante do temor à misandria seja o horror de encarar a extensão pela qual misandria e misoginia são uma parte inescapável da textura de nossas vidas. Tudo bem brincar sobre “a batalha dos sexos”, mas não devemos levá-la a sério pelo paradoxal motivo de que é demasiadamente sério – todo homem é um misógino, como pode ele remediá-lo? E toda mulher é uma misândrica, como pode ela remediá-lo? A misandria, é claro, é muito muito pior do que a misoginia – conseqüentemente nos dando a pista de quem é o agressor na “batalha”. Enquanto que nem toda mulher é Valeria Solanas, Solanas é ‘toda mulher’ – isso quer dizer que ninguém pode escapar de sua situação geral.  Realmente, alguns patrões são mais legais que outros. Mas um trabalho ainda é um trabalho. Realmente, o inimigo não está dando tiros particularmente em Yossarian. Mas ainda assim estão atirando nele.

 

Nós todas somos, a um grau muito alto e desconfortável, prisioneiras das instituições em que vivemos. Sermos forçadas a suportar coisas terríveis é ruim o bastante: nós somos forçadas a sentir coisas terríveis também – é realmente horrível perceber quantas ilusões e distorções têm sido forçadas sobre nós. É muito mais fácil dizer que tudo (como Perelman coloca) é mar e rosas, que todas as mulheres realmente adoram homens, que apenas mulheres “doentias” odeiam homens. Está chegando ao ponto de que afirmar que algo é “errado” em sentido prático e tático carrega tons de arbitrariedade (portanto a condenação de Friedan à Steinem, et al). Se você se dispõe a aceitar a existência de mulheres que de fato odeiam homens abertamente, e que elas odeiam homens ou porque chegaram a circunstâncias extremas (porém características) ou porque elas são mais esclarecidas que o restante de nós, isso significa que você deve aceitar a misandria como uma possibilidade para todas as mulheres. Se você é uma mulher, isso significa que você deve aceitar a misandria como uma possibilidade para você. (Se você é um homem, essa aceitação significa que você deve aceitar a possibilidade do ódio das mulheres como uma resposta racional a uma situação ruim, e que você não deve se alarmar com isso.) Aceitar a misandria é percerber as confusões atrozes de que nossas vidas são feitas, mesmo quando somos sortudas o bastante para escapar dos piores efeitos de nossa estrutura social. Há dois tipos de mulheres que nunca odeiam homens: as demasiadamente sortudas e as demasiadamente cegas.

 

Penso que nós devemos decidir que o ódio-por-homens não é apenas respeitável, mas honrável. Para ser misândrica, uma mulher necessita considerável genialidade, originalidade e resiliência. Um misógino não requer tais recursos. Nossos homens são criados para nos odiar; é o homem anti-convencional, inteligente, sensível e verdadeiro aquele que consegue sair dessa tirania e amar mulheres.  Nós somos criadas para amar nossos homens – acriticamente, e temendo as conseqüências de não fazê-lo. (Eu não estou falando deste ou daquele homem em particular, mas homens enquanto grupo. A doutrina de que homens devem ser aceitos ou rejeitados enquanto indivíduos é um salva-vidas para mulheres que se horrorizam com o ódio-por-homens. Mas estas mesmas mulheres sabem perfeitamente bem que esta questão é uma questão de classe – elas mesmas argumentam que “homens” são maravilhosos, que “homens” são bons, especificamente, elas quase sempre aceitam os termos de classe do argumento , até que alguma outra pessoa as desbanque trazendo o argumento individualista de que as pessoas devem ser julgados singularmente, deslizando então imperceptivelmente para a posição de que pessoas não pertencem a grupos ou classes de fato.) São as mulheres anti-convencionais, verdadeiras, sensíveis, inteligentes e originais que conseguem sair debaixo desta tirania, e ver claramente que serem discriminadas, apadrinhadas, diminuídas, frustradas, limitadas, tratadas sem respeito e ensinadas que não são importantes dificilmente são solos férteis para o Amor.

 

É possível rejeitar a misandria enquanto uma tática, ou até mesmo escolher suprimí-la em si mesma, e ainda assim aceitar as misândricas elas mesmas. Isso envolve reconhecer a misandria como uma permanente possibilidade nas situações de cada mulher, e conseqüentemente em sua vida. Significa não estar nervosa sobre o que os homens vão pensar dessas mulheres horríveis e odiadoras-de-homens. Significaria criticar odiadoras-de-homens – no máximo – privadamente.

 

A situação das mulheres em relação aos homens não é apenas opressiva; é terrivelmente confusa. Como diz Virgínia Woolf, nem lisonjas, afeto, conforto em sua companhia, nem amor podem impedir uma mulher de ser colocada em seu lugar. (Coisas ruins acontecem não apenas quando o subordinado se engrandece, mas quando o superior irrita-se e quer alguém em quem descontar – todas nós admiramos o realismo delicado do cartoon no qual Patrão grita com Marido, Marido grita com esposa, e esposa grita com Filho. Este Filho deveria ter um Cão.)

 

Já é ruim o bastante coisas ruins serem feitas a você;  o pior é o duplo-vínculo que segue. O homem insiste – em geral semi-sinceramente, apesar dele ter algum indício de seus motivos, pois ele se irrita se você o questiona – que (1) ele não fez nada, você deve estar alucinando; (2) ele o fez, mas é trivial e portanto você é irracional (“histérica”) ao se ressentir ou se magoar; (3) é importante, mas você está errada em descontar nele pessoalmente, porque ele não intencionava fazê-lo de forma pessoal; (4) é importante e pessoal, mas você o provocou, em específico é sua culpa e não dele. Pior ainda, ele freqüentemente insiste em tudo isso ao mesmo tempo. Nesse tipo de situação ideologicamente mistificada, clareza é crucial. Vamos deixar várias coisas claras: ferir pessoas as deixa irritadas, irritação transforma-se em ódio quando a raiva é crônica e acompanhada por impotência, e apesar de você poder intimidar e envergonhar pessoas para não mostrarem suas raivas, a única maneira de parar a raiva é parar a dor. A cura para o ódio é o poder – não o poder de ferir o agressor, mas o poder de fazer  parar o agressor.

 

É um erro pensar que o ódio-por-homens é uma auto-indulgência delicada; trata-se de algo muito desagradável. Tampouco é uma raridade patológica; nada poderia ser mais comum.  Vá olhar para a arte popular dirigida às mulheres: revistas de romance, filmes “de mulheres”, Góticas modernas. Onde não há vingança disfaçada (como há na apresentação de estúpidos e débeis homens das velhas rádio-novelas) há abundante impotência, dor, e auto-desprezo. Eu considero odiar a outros moralmente preferível do que odiar a si mesma(o); isso dá uma espinha dorsal à espécie humana. É a primeira de todas as virtudes biológicas, auto-preservação, e necessita de mais bravura do que você pode imaginar. E antes de você desdenhar da auto-preservação e declarar que auto-imolação é maravilhoso (especialmente para mulheres), lembre-se que auto-sacrifício é uma virtude sempre forçada sobre grupos oprimidos. (Algumas mulheres tornam a “virtude” do auto-sacrifício e Amor em armas para elas mesmas: em específico, a  geração de culpas “eu sacrifiquei tudo por você”, e a multidão mais-amorosa-que-vocês, que tratam uma emoção espontânea como se fossem características moralmente cultivadas. Elas são bastante impertinentes para mulheres que não amam tanto quanto elas).

 

Porque o ódio-por-homens é tão atroz? Porque é mais fácil para todo(a)s, machos e fêmeas, demandarem a santíssima pureza dos oprimidos do que dar uma tacada nos opressores. Já está mais do que na hora de pararmos de nos preocupar se as feministas são santas; elas não o são, bem previsivelmente. E é também chegada a hora de descartar essa bobagem perene de evitar Mudanças porque Mudanças provocarão um Backlash. Mudanças sempre provocam um backlash. Se você não se depara com qualquer resistência, não está fazendo seu trabalho político. Como diz Philip Slater em “The Pursuit of Loneliness”, “backlash” é o que acontece quando pessoas descobrem que mudança significa mudança. Declarar piamente que o feminismo é na realidade muito moderado e inofensivo não irá enganar ninguém por muito tempo. O radicalismo de uma causa não advém dos desejos individuais de uns poucos líderes bem-reconhecidos, mas da situação em que grandes, enormes números de pessoas se encontram. Feminismo é radical. Aquelas que não querem que seja “tão” radical estão se percebendo ou desnudadas, ou ignoradas; elas se tornam (de forma deprimente) as queridas de uma Ordem Estabelecida que gosta delas por todos os motivos errados.

 

Condenar a misandria é ter expectativas de conduta mais altas para mulheres do que para homens. É estar tão assustada com o feminismo em si que não permite que uma mancha de ordinária corrupção humana possa ser permitida dentro dele. É aceitar a idéia da opressão somente na condição de que os verdadeiros e feios efeitos da opressão sejam negados. É considerar o feminismo um movimento moral, e não um movimento político – homens são ‘ok’, mas devemos ser melhores.

 

Não é disso que estávamos tentando nos livrar em primeiro lugar?

 

tradução: amazonasrenascidas.wordpress.com

Privilégio Masculino

10-Jan-15

por D. A. Clarke 1981

Um poema para homens que não entendem o que queremos dizer, quando nós dizemos que eles possuem ‘isso’.

 

Privilégio é simples. Ir para um passeio prazeroso depois que escureceu. Não checar ao redor do seu carro enquanto você entra nele. Dormir ruidosamente. Falar sem ser interrompido e não lembrar de sonhos com estupros, que te perseguem o dia todo depois, que te acordam chorando,

e Privilégio é não ver a você mesmo sendo desnudado, corpo-esfomeado, humilhado em celebrações vistas por qualquer banca de revista.
é ir a filmes e não ver a si mesma sendo aterrorizada, difamada, agredida, retalhada, é ver alguma outra coisa.

Privilégio é

Andar de bicicleta pela cidade sem ser gritada ou ter que sair da pista, não precisar um aborto, poder tirar sua camisa num dia quente, em uma multidão, não desejar que você estivesse mais apresentável, não depilar suas pernas, ter um trabalho decente e ter expectativa de poder mantê-lo, não sentir o seu chefe tocar seus genitais, poder cochilar dentro de ônibus num horário tardio da noite,

Privilégio é ser o herói num show de TV e não a imbecil genérica, morar onde seus genitais não são negados[1] saber que seu médico não vai estuprar você.

Privilégio é sorrirem pra você todo o dia por adoráveis mulheres prestativas

é a forma como você faz julgamentos sobre sua aparência com autoridade magistral, a forma que você encontra um juíz do mesmo sexo que você na corte, estarem super-representados no Congresso e não ser revisado de maneira invasiva se possui carteira de motorista ou usada como um tiro ao alvo por seu amigo mecânico,

Privilégio é ver sua face barbada pelos textos de história não apenas nos seus dias de colegial mas por toda sua vida, não ser relegada a um parágrado a cada outro capítulo, a forma que você ocupa volumes inteiros de poesia e poder ocupar mais do que seu espaço do assento e não ser questionado nunca sobre isso. É sua boca convencida, insultos atrozes a mulheres que mudam de assunto polidamente.

Privilégio é como raramente o nome de um estuprador aparece nos jornais e a forma que você sorri ao folhear sua PLAYBOY.
É simples realmente, Privilégio significa a dor de alguém, sua riqueza é meu terror, seu uniforme é uma mulher estuprada até a morte aqui, ou em Cambodia ou em qualquer lugar em que seu Privilégio obsceno escreve seu nome em meu sangue,

é simples, você sempre teve isso, e é por isso que isso não aparenta deixar você doente a ponto de afetar seu estômago, você tem isso, logo nós pagamos por isso, agora você entendeu?
***

[1] Acredito que se refere à moradias que ‘somente aceitam rapazes’.

Frases que se propôem a responder: que é o feminismo radical?

10-Jan-15
O que é o Feminismo Radical?

Compilado por Lierre Keith

tradução: M. L.

 

“ A Opressão, como um fenômeno, inclui dois partidos (ou classes) – o Opressor e o Oprimido. Esses partidos são criados artificialmente e são, então, combinados em sistemas que dicotomizam a espécie humana sequencialmente tendo como base vários pretextos – sexo, raça, religião, etc. Qualquer sistema de classes… é estabilizado por instituições (todas, por definição, são “politicas”): no caso das mulheres são casamento, maternidade, prostituição, estupro e pornografia.”

—Ti-grace Atkinson; Amazon Odyssey

“…[L]esbiandade, informada pelo feminismo, é muito mais do que uma escolha sexual. É uma perspectiva total da vida em uma sociedade patriarcal, representando um compromisso às mulheres em todos os níveis da existência e desafiando a base de uma sociedade sexista – isto é, o heterossexualismo*. Logo, não é uma mera alternativa sexual a homens, que é caracterizada simplesmente em se relacionar sexualmente com mulheres ao invés de homens, mas uma forma de ser no mundo que desafia a possessão das mulheres pelos homens e, talvez, em seu nível mais intimo e sensível.”

*(N.T. no original ‘heterossexualism’, fiquei em duvida em como traduzir.)

—Janice G. Raymond; The Transsexual Empire

“Para mim, feminismo significa trabalhar o máximo que se puder para por um fim a opressão das mulheres, para quebrar nossa dependência a homens, e para subverter, desafiar, e no limite destruir os bastiões do poder masculino que nos escravizam. As estratégias podem variar. E também o comprometimento. Sendo uma mulher-centrada em mulher, da qual o estilo de vida é o quanto for possível – socialmente, politicamente, sexualmente – focado em mulheres, eu tento definir uma linha para mim, por um comprometimento completo e sem reservas às mulheres, ao máximo que eu puder manter.”

–Ngahuia Te Awekotuku; Radically Speaking: Feminism Reclaimed

“Womanist [Mulherista] 1. De womanish [coisa de mulher] (opp. de ‘girlish’ [coisa de menina] i.e., frívola, irresponsável, sem seriedade.) Uma feminista negra ou feminista de cor. Das expressões do povo negro de mulheres para meninas. ‘Você está agindo como uma mulher,’ i.e da forma que uma mulher agiria. Usualmente se referindo a comportamentos audaciosos, ultrajantes, corajosos ou obstinados. Querer saber mais e em profundidade maior do que é considerado ‘bom’ para alguém. (…) 2. Também: Uma mulher que ama outras mulheres, sexualmente e/ou não-sexualmente. Que aprecia e prefere a cultura de mulheres, a flexibilidade emocional de mulheres (valoriza lágrimas como o contrapeso natural da risada), e a força de mulheres. (…) 4. Mulherista é para feminista assim como roxo é para lavanda.”

–Alice Walker; In Search of Our Mother’s Gardens

“Assim como eu ensinada a sempre perguntar ‘Isso é bom para os Judeus?’ Agora eu pergunto, ‘Isso é bom para as mulheres?’… Minha mãe dizia, “Raspe um não-judeu e você encontrar um anti-semita.” Eu digo, “Raspe um homem e você encontra um sexista.” As vezes eu me referi aos homens como os goyim*.

*(N.T. não sei traduzir essa expressão.)

—Pauline Bart; Nice Jewish Girls

“Meu ideal pessoal do feminismo não é um em que mulheres da classe dominante têm poderes iguais aos homens da classe dominante, enquanto homens e mulheres pobres vão para o inferno juntos. Isso acontece, no entanto, pois o meu ideal de feminismo necessita de um comprometimento geral a justiça social e dignidade humana. Uma liberação que deixa algumas mulheres livre para humilhar e explorar outras não é liberação.”

–D. A Clarke; Unleashing Feminism

“Eu acho que já está na hora de mulheres com capital cultural comecem a recolher algumas das questões éticas que uma cultura dominada por homens produziu e dissecar e analisar elas em pedaços de maneira séria. Já está na hora que ‘metade da espécie humana’ tenha algo a dizer sobre a natureza de sua existência. Caso contrário – sem revisar as bases do pensamento – a mulher intelectual está fadada a se encontrar tentando tirar conclusões… baseadas em uma aceitação de uma superestrutura social moral que nunca admitiu a igualdade das mulheres e é, portanto, imoral em si. Como pelo casamento, pelas práticas sexuais, pelo cuidado às crianças, etc. Nesse tipo de trabalho, podem emergir mulheres que serão capazes de formular novos e possíveis conceitos de que a perseguição a homossexuais tem em suas raízes não só ignorância social, mas um dogma filosoficamente anti-feminista.”

–Lorraine Hansberry; letter in The Ladder, 1957

“Os corpos das mulheres assassinadas estão espalhados pela paisagem desse país. Estupro é o passatempo nacional, uma forma de tortura sentida por todas as meninas e mulheres, de bebês a idosas. Uma em cada três mulheres nos E.U.A. será estuprada durante sua vida. Espancamento e incesto, esses crimes domésticas são pandêmicos. Assassinato, é claro, é a última violenta ‘solução’ masculina. E se você está pensando enquanto lê isso que eu estou exagerando, por favor, pegue o jornal de hoje e verifique os fatos. Se tem algo acontecendo aqui é ódio às mulheres, não aos homens, uma guerra contra as mulheres… O movimento feminista e movimento anti-racismo têm em comum a tentativa de promover uma vida humana decente. Se opor a qualquer um desses movimentos coloca alguém do lado dos elementos mais reacionários da sociedade Norte-Americana.”

–Barbara Smith; Home Girls

“Politicas Selvagens são feministas e são em mantendo a resistência das pessoas Indigenas, das pobres e das marginalizadas. Resiste a colonização e acumulação da Cola, consumo excessivo, ideologias repressivas e fundamentalistas, comunicações de massa, o militarismo e a interferência feita pelas cientificas e monetárias culturas de elite. Politicas Selvagens são politicas da felicidade.”

–Susan Hawthorne; Radically Speaking: Feminism Reclaimed

“Nós queremos destruir as posições de poder… não subir a essas posições. A luta contra relações de poder desiguais entre homens e mulheres necessita que lutemos contra poderes desiguais em todos os lugares: entre homens e mulheres, mas também entre homens e homens e mulheres e mulheres, brancos e negros e ricos e pobres.”

–Ti-grace Atkinson; Amazon Odyssey

“Todas as questões são questões feministas – e reformas bandaid, ou igualdade com homens em uma sociedade dominada por homens, ou mulheres ‘empoderadas’ terem ‘auto-estima’ enquanto se deixa intacto um status quo com uma camada de ozônio perfurada – todas são pseudo-soluções que a feminista radical considera inaceitáveis… Em sua definição mais básica, [feminismo] pode simplesmente significar a luta pela liberdade da mulher contra uma sociedade de supremacia masculina – certamente uma luta válida e vital em si. Também pode ser, em parte, uma ética, uma estética, e até uma metafisica. Para mim, feminismo… também é algo mais: é uma politica que unicamente capaz nesse momento da história de, muito literalmente, salvar e frágil verde e azul biosfera da nua Terra.”

–Robin Morgan; Radically Speaking: Feminism Reclaimed

“Nós escolhemos a terra

e o limite das lutas umas das outras

a guerra é a mesma

se nós perdermos

algum dia o sangue das mulheres irá coagular

em um planeta morto

mas se nós vencermos

não há o que dizer

nós vemos além da história

para um novo e possível encontro

Eu espero te encontrar

em qualquer barricada que você tenha levantado

ou escolhido.”

–Audre Lorde

“Mais uma coisa que eu aprendi: que por eu estar lutando por mudanças sociais, por censura social dos comportamentos masculinos que historicamente tem sido rotina e não tem sido censurados – Eu não era apenas uma feminista. Eu era uma feminista radical.”

–Louise Armstrong; Radically Speaking: Feminism Reclaimed

“Quando eu falo sobre resistência, eu estou falando sobre uma resistência politica organizada. Eu não estou apenas falando de algo que vai e vem. Eu não estou falando sobre um sentimento. Eu não estou falando sobre ter em seu coração a forma como as coisas deveriam ser e continuar tendo um dia regular tendo ideias boas, decentes e maravilhosas em seu coração. Eu estou falando sobre quando você coloca seu corpo e sua mente na reta e você compromete a si mesma em anos de luta para mudar a sociedade em que você vive… Uma resistência politica vai por dias e noites, por de baixo do pano e na luz do dia, quando pessoas podem ver e quando não podem. É passada de geração a geração. É ensinada. É estimulada. É celebrada. É inteligente. É habilidosa. É comprometida. E algum dia irá ganhar. Irá ganhar.”

–Andrea Dworkin; The Sex Liberals and the Attack on Feminism

From Rain and Thunder,

Issue #1 Winter Solstice 1998

tradução das regras de um grupo de feminismo radical

10-Jan-15
para fins de básicos do feminismo radical achei interessante.
APENAS MULHERES
Regras:

Basicamente, este é um espaço para geração de consciência sobre o pensamento feminista radical. Se você entra na grupa, você deve aceitar que o objetivo é melhorar o entendimento do pensamento feminista radical por meio do intercâmbio de literatura e discussões sobre literatura feminista radical. Os princípios básicos do radfem que seguem devem ser respeitados:

1. Feministas Radicais são abolicionistas da prostituição e pornô, com várias análises de como alcançar isso.

2. Feministas radicais são genero-críticas. Feministas radicais não reconhecem gênero como sendo intrínseco ao nosso sexo, e portanto não promove nenhuma visão que mantenha o conceito de gênero. A opressão baseada em sexo, porém, é uma questão totalmente diferente e aberta à crítica.

3. Feministas radicais usam análise de classe para propôr soluções para a mais antiga religião do planeta, que é o Patriarcado.

4. Feministas Radicais são críticas dos conceitos tradicionais de sexo e irão questionar a segurança, salubridade e perigo de todas relações sexuais, incluindo o PNV (Pênis na Vagina)  

5. Feministas Radicais não ocupam a si mesmas com conceitos de igualdade sexual. Ao invés disso, o foco é a libertação e a total transformação do sistema corrente. Nós não achamos que a solução é ser igual em um sistema que requere desigualdade para existir. Nós reconhecemos que o sistema inteiro deve ser reconstruído com a inclusão de energia feminina*, consciência e experiência em sua fabricação. (ajuda: We do not think the solution is to be equal in a system that requires inequality to exist. We recognize that the entire system must be rebuilt with the inclusion of female energy, consciousness, and experience woven into its very fabric.> fabric nao sei que é )

Ou seja, este é um grupo de leitura e discussão. Os 5 pontos acima não estão abertos a serem debatidos. mas discussões respeituosas ou trocas nesses tópicos estão absolutamente oks.* feminino traduzi de female, não no sentido de caracteristica feminina, mas daquilo que é próprio de fêmeas. 

Porque os Espaços de Mulheres São Críticos com Relação à Autonomia Feminista

10-Jan-15
Porque os Espaços de Mulheres São Críticos com Relação à Autonomia Feminista

Patricia McFadden

 

A questão da presença masculina, em termos físicos e ideológicos, no interior do que deveriam ser espaços somente de mulheres, não é simplesmente uma questão de contestação ideológica e de preocupação no interior do movimento de mulheres globalmente; é também uma séria manifestação do backlash contra os esforços das mulheres de se tornarem autônomas dos homens em seus relacionamentos pessoais/políticos e interações. Assim que as sociedades humanas se tornaram mais públicas ao longo das lutas intensificadas pela inclusão de vários grupos de antigos círculos excluídos (o maior do qual é composto de mulheres de diferentes classes, idades, orientações sexuais, habilidades, etnicidades, nacionalidades e locais), então também a luta pela ocupação e definição de espaço tomou uma importância concomitante.Neste curto artigo, quero explorar algumas das razões pelas quais essa contestação sobre os espaços de mulheres surgiu. Também quero tenazmente argumentar que mulheres não devem permitir homens em seus espaços porque estrategicamente isso seria um erro político grave para o futuro do movimento de mulheres, quer ele esteja localizado e engajado com a hegemonia patriarcal e exclusão. Argumentar pela inclusão dos homens em espaços estruturais e políticos de mulheres é não somente fundamentalmente heterossexista; também serve a uma velha reivindicação nacionalista de que as mulheres devem tomar conta dos homens, não importa aonde eles estejam localizados ou com o que estejam eles engajados. Essa reivindicação é inerentemente pressuposta na suposição de que as mulheres que não estão vinculadas ou associadas com um homem são perigosas, exaltadas mulheres que devem ser interrompidas. Isso é o porquê da afirmação de que as mulheres precisam “levar os homens adiante” sugere não somente uma suposição profundamente patriarcal de que a mobilidade das mulheres requer aprovação masculina: também facilita a transferência de práticas socioculturais no movimento das mulheres que alimentam o privilégio masculino e os mimam em espaços que as mulheres lutaram por séculos para assinalar como seus.De forma a fazer meus apontamentos, quero me referir brevemente à noção conceitual de espaço e tentar mostrar como o espaço é generizado e altamente politizado como uma fonte social em todas as sociedades. Através da narrativa humana conhecida, certos espaços tem sido culturalmente, religiosamente e politicamente marcados como tanto “masculinos” como “femininos” e sabemos que, em termos dos últimos espaços, estes foram e continuam sendo amplamente relacionados às funções de reprodução e alimentação das mulheres em todas as sociedades humanas, sem exceção. Os espaços que referimos como públicos são adotados como masculinos e, por séculos, os homens excluíram as mulheres do público, onde todas as decisões-chave relacionadas ao poder são deliberadas e implementadas.Além disso, ao longo da história humana, aqueles espaços que eram feminizados eram também considerados os menos importantes; eram e continuam sendo lugares onde as mulheres funcionavam através da benevolência dos homens, mas que nunca possuíram e com os quais ainda não têm direito sobre se vivem em relações íntimas próximas com homens adultos. Noções “da família” e “do chefe de família” permanecem fundamentalmente masculinos em termos de todas as insituições-chave de nossas sociedades, e as mulheres não podem criar uma família “real”; quando constroem lares, estes se tornam imediatamente feminizados e estigmatizados como outro (feminino-comandado/solteiro-comandado/mulher-comandado, etc.).Portanto, quando damos uma olhada bem próxima a noções de espaço e sua ocupação em termos de gênero, percebemos o fato chocante de que é somente no século 20 que as mulheres ocuparam espaço limitado nas sociedades patriarcais em seu próprio direito como mulheres e/ou como pessoas. O espaço era e continua sendo largamente definido como uma construção masculina de todas as maneiras imagináveis e, para a maioria das sociedades do Sul, nem sequer se pode referir às mudanças que ocorreram nas sociedades do Norte em torno dessa questão para fazer qualquer generalizações. A maioria das mulheres no Sul existem fora do espaço como um recurso politicamente definido. No principal, e especialmente para mulheres pobres em um continente como a África, o espaço permanece fundamentalmente atrelado às noções arcaicas do privilégio patriarcal e da dominação das mulheres tanto privada quanto publicamente. É por isso que o Movimento das Mulheres, enquanto um espaço político, ideológico, ativista e estrutural, deve permanecer simplesmente isso: um espaço exclusivo de mulheres.Além disso, é vital para qualquer conversa sobre a presença ou ausência de homens nos espaços de mulheres, localizar a noção de espaço em si mesmo no interior da narrativa política sobre o que o espaço significa em sociedades patriarcais generizadas. O fato que importa é o de que o espaço não é um território neutro; é altamente politizado em termos de classe e localização. Os ricos vivem em certos espaços e os pobres são sistematicamente excluídos desses espaços por arame farpado e cercas elétricas, cachorros viciosos e homens pobres de macacão carregando armas em suas mãos. O espaço é mantido sob escrutínio próximo pelos militares que declaram áreas particulares de um território nacional áreas “não permitidas” ao público, e as próprias classes dominantes constroem todos os tipos de práticas de exclusão e mecanismos que mantêm certos grupos de pessoas fora de “seus” espaços. Colonos brancos usaram o Estado para pôr em prática sistemas de vigilância que excluíam africanos de seus espaços através da institucionalização de “passes” e a extenção da licença de qualquer branco ser capaz de parar qualquer pessoa negra e demandar que eles expliquem sua presença em um lugar particular em qualquer hora do dia ou noite.E em um daqueles raros momentos reconhecidos de conluio patriarcal entre homens negros e brancos no interior do empreendimento colonial, homens negros são permitidos parar e interrogar qualquer mulher negra que não esteve na presença de um homem adulto fora dos confinamentos das “Áreas Nativas” da África Austral colonial. A mesma prática provavelmente se aplicava em outras partes do continente e do mundo, na medida em que se concerne, em vários momentos no tempo.No período imediatamente depois da independência nas muitas sociedades do continente, as mulheres que estavam desacompanhadas de um homem adulto e ousavam re-entrar ou permanecer no interior da arena pública depois que o dia de trabalho formal acabava, estavam e ainda estão suscetíveis à prisão e à criminalização como “putas”, que devem ser trancadas para sua própria segurança, porque “boas mulheres” estão em casa alimentando as crianças e servindo às necessidades sexuais de seus maridos depois que o sol se põe.Esses e muitos dos discursos que definem e marcam o espaço como masculino e generizado, excludente de mulheres como pessoas e como indivíduos a que são atribuídos a mobilidade e a ocupação do espaço em seu próprio direito, devem ser trazidos em foco ao considerar a pressão que os homens e certos grupos de “boas mulheres” estão colocando no resto de nós no interior do Movimento das Mulheres de permitir os homens dentro de nossos limitados espaços políticos.Minha retaliação é a de que aquelas mulheres que gostam tanto dos homens que não podem passar qualquer tempo durante o dia ou a noite sem a presença masculina podem construir as chamadas organizações “mistas”, que possuem o direito de existir como qualquer das outras estruturas da sociedade civil, que aumentam os desejos e interesses no bem comum; mas não como parte do Movimento das Mulheres. Portanto, insistir que nosso Movimento, que lutamos para estabelecer, frequentemente dando nossas vidas inteiras por sua criação, deva se tornar um “espaço misto de gênero” não é aceitável de forma nenhuma e deve ser vigorosamente contestado.Basta dizer, então, que o espaço é sempre fortemente contestado e é uma questão política, e as mulheres devem entender e manter isso em mente enquanto nos perguntamos questões com relação à presença dos homens no nosso Movimento. Os espaços nunca são dados como todos os recursos nas nossas sociedades, quer sejam esses espaços materiais, estéticos ou sociais lutados, ocupados e trabalhados, marcados como pertencendo a um grupo particular através das lutas que são basicamente sobre estabelecer posse e usar essa posse para a execução de uma agenda. E o Movimento das Mulheres possui uma agenda claramente estabelecida da emancipação de todas as mulheres da sujeição patriarcal e da exploração. O patriarcado tem efetivamente usado a exclusão como um princípio central para suas alegações ideológicas à hegemonia em todas nossas sociedades, seja quando alguém está olhando para noções de identidade, de direitos e privilégio, de acesso e inclusão em instituições e posições de poder.Práticas de exclusão utilizam o espaço como um elemento-chave na implementação de uma agenda específica. A alegação de que o lugar das mulheres é “na casa dele” é uma antiga estratégia que mobiliza noções da feminilidade; localiza-as no privado, e impõe uma ideologia de domesticidade através da qual as mulheres são socializadas a acreditarem e aceitarem que os espaços estreitos e com privilégio masculino chamados “casa” são os espaços mais apropriados para que elas gastem suas vidas em, procriando e trabalhando para “ele” e “a família dele”. Essa alegação é tão poderosa que milhões de mulheres continuam a acreditar nisso, mesmo quando tem sido capazes de deixar a casa e adquirir uma educação e habilidades profissionais que pudessem usar para se tornar autônomas. Ainda, elas voltam a esse espaço onde se tornam “verdadeiras” mulheres em termos patriarcais retrógrados; termos que elas às vezes escolhem definirem-se, mas que não têm que se tornar marcadores de todas as mulheres, especialmente no público que é um espaço comum que pertence a todas as mulheres de todas as cidadanias.Acredito que ninguém pode considerar a questão da intrusão masculina nos espaços políticos de mulheres sem também considerar que esta demanda é sempre feita com o desejo consciente de empreender vigilância sobre o que as mulheres estão pensando, dizendo e fazendo. Sei que algumas de minhas irmãs dirão que eu não posso generalizar porque existem “bons” homens que se nomeiam “feministas” e que estão interessados em assegurar os direitos das mulheres contra a dominação patriarcal. Em um nível, isso pode ser verdade. Existem alguns homens que estão experienciando uma nova consciência política através da associação com as lutas das mulheres por liberdade e autonomia. Mas, em minha opinião, tais homens precisam estar em um movimento político que mobilize mais homens a mudarem a si mesmos, especialmente com relação à masculinidade e à hegemonia que a ideologia patriarcal garante a todos os homens. Neste sentido, estarão mais capazes de apoiar as demandas e os direitos das mulheres por liberdades. Porque enquanto “bons” homens sim apoiam mulheres e “permitem” suas esposas e parceiras de fazerem trabalho ativista, também influenciam as políticas das mulheres quando entram nos espaços de mulheres e interagem com as ideias e o ativismo de mulheres no interior do mesmo quadro.As mulheres devem ser capazes de formular e expressar suas próprias ideias como mulheres individuais e como um círculo que é afetado pelas leis e práticas patriarcais de maneiras unicamente generizadas – uma experiência a que nenhum homem está aberto e a que não pode experienciar enquanto o patriarcado define relacionamentos generizados do poder e privilégio em sua forma atual. E, quando os homens estão nos espaços de mulheres, as mulheres tendem a reagir à sua presença de maneiras intelectuais e sexuais. Homens tendem a intimidar a maior parte das mulheres; mesmo o homem mais tímido possui um impacto na confiança de algumas mulheres, e isto é um custo que devemos não ter que incorrer em nossos espaços.Os homens tendem a assumir o controle de dicursos e conduzí-los em direções particulares, frequentemente adotando atitudes defensivas sobre a consciência radical das mulheres e consequentemente neutralizando o senso das mulheres de intitulação de seus direitos. A presença dos homens em qualquer espaço de mulheres possui consequências fundamentais para o senso das mulheres de si mesmas e de suas visões do futuro. Em minha opinião, as mulheres não podem se dispor a serem boas sobre tal ameaça. Na verdade, é através de sua intrusão nos espaços de mulheres que os homens tem sido capazes de redirecionar as políticas do Movimento das Mulheres em muitos países – alterando seu caráter de uma plataforma política radical onde as mulheres experienciam a si mesmas como pessoas autônomas e intituladas, em um movimento bem-estarista que é focado nas velhas noções sexistas de reprodução e custódia cultural em nome dos homens mesmos que afirmam que estão sendo excluídos.A vigilância da consciência política das mulheres é um objetivo-chave do backlash patriarcal, que se manifesta através das demandas masculinas por inclusão nos espaços de mulheres. Uma pessoa só precisa olhar para todas aquelas organizações que possuem homens em seu interior para ver quão conspiratórias e comprometedoras tais organizações se tornam dentro de um pequeno espaço de tempo. Frequentemente, esses homens assumem o controle sobre os elementos mais críticos no interior da organização, frequentemente o controle sobre as finanças e a seção de publicações, impondo a voz masculina sobre as visões e o conhecimento que as mulheres trazem à público. Sabemos que a voz e a visibilização das experiências de mulheres são alicerces do Movimento de Mulheres dizendo o que sabemos e o que queremos, e isto é central para nossa agenda e nossa liberdade. Por que então estão algumas organizações de mulheres entregando seus boletins de notícia e seções de documentação a homens que, com boa vontade, “falam em seu nome”? Nós não demandamos o direito de falar por nós mesmas e usamos esta facilidade para desmascarar os mitos e estereótipos que ainda caracterizam a mídia masculina? Ainda assim, algumas mulheres não veem qualquer ameaça política em ter um homem, um daqueles “bons”, ocupando o status de processador do conhecimento em suas organizações.No interior da linguagem do comprometimento, tais organizações estão em conformidade com a “integração de gênero” que basicamente reinforça as tendências bem-estaristas dentro do ativismo das mulheres através da despolitização da agência das mulheres no público.O gênero se torna uma noção vazia, sem qualquer relação com o poder e a contestação, e as mulheres são ditas a considerarem os interesses de meninos e homens na mesma medida em que se esforçam por colmatar a escancarada lacuna entre si mesmas e os homens através do tempo e espaço. A despolitização das lutas das mulheres reside no coração da demanda por incluir homens nos espaços políticos de mulheres, porque é claro aos homens (assim como às mulheres conservadoras, a maioria da qual predomina no Movimento das Mulheres pelo mundo) que, ao ocupar um espaço político no público no qual as mulheres trabalharam e marcaram como seus, as mulheres se tornam radicais e desenvolvem uma consciência de si mesmas e de seus direitos. Esta é uma ameaça aos privilégios e interesses de homens em todas as sociedades patriarcais.Para mim, este é o cerne da questão. Quando mulheres ocupam espaços públicos como pessoas que compreendem que por milênios foram negados seus direitos inalienáveis enquanto seres humanos, elas começam a demandar a restituição desses direitos através da criação de estruturas no interior do qual elas situam recursos financeiros, técnicos e intelectuais.Quando uma mulher se torna articulada sobre quem são sexualmente e rejeitam os velhos mitos patriarcais sobre o que uma mulher pode ser e o que ela não é permitida se tornar, as mulheres se tornam poderosas e adquirem a habilidade de dizer não à violência, não ao trabalho não pago, não à exploração e discriminação em nome da preservação cultural. As mulheres se tornam pessoas que se relacionam com o Estado de maneiras novas e desafiadoras, não mais esperando dos homens no Estado para que distribuam alguns “favores” em nome de uma ditadura benevolente.Tais mulheres se tornam autônomas e seu Movimento se torna a força para a transformação das relações opressivas de poder tanto na esfera pública quanto privada.Tais mulheres são um perigo para todos os homens, independentemente de como os homens definem a si mesmos. Por esse motivo, os espaços de mulheres enquanto espaços politizados devem ser ocupados sob o aspecto de “inclusão” e aquelas mulheres que resistem tal vigilância são acusadas de serem odiadoras de homens e de agirem de formas “excludentes”; a mesma velha história que nós ouvimos durante séculos. Quando as mulheres primeiramente demandaram o direito de serem livres, de terem acesso à educação (nem mesmo acessos iguais, somente acesso ao conhecimento coletivo de suas respectivas sociedades), foram acusadas de odiarem os homens. Aquelas de nós que se recusaram a serem ritualizadas e pertencidas por homens através do casamento heterossexual, e que às vezes passaram a amar outras mulheres, foram marcadas como “hereges” e odiadoras de homens. O asfaltamento das mulheres com a escova de vitríolo heterossexista é bastante conhecido e a maioria das mulheres o temem porque esta é uma escova dura e cruel que marca as mulheres pelo resto de suas vidas como as Outras e Perigosas.Mas nós aprendemos ao longo do extenso caminho de nossa luta pela liberdade que o comprometimento somente nos retrocede ainda mais do que onde iniciamos. Então, devemos nos manter em nossos espaços porque eles são os únicos espaços existentes que temos e podemos ter enquanto mulheres nessas sociedades profundamente odiadoras de mulheres e patriarcais em que continuamos vivendo no tempo presente.Se os homens querem se engajar em políticas de gênero, deixem que eles formem suas próprias estruturas e criem um novo discurso político sobre a democracia e a igualdade com aqueles que vivem em suas sociedades. Enquanto mulheres politicamente conscientes, bem sabemos que os homens tem muito trabalho a fazer sobre si mesmo. Enquanto uma mãozinha é sempre útil, o antigo provérbio de que “a caridade começa em casa” se aplica ainda mais hoje em dia aos homens do que nunca antes. Os homens devem limpar suas casas patriarcais enquanto homens, primeiro, e obterem-se uma nova identidade que não dependa de possuir mulheres, de comprar e vender mulheres, de estuprar, forçosamente ocupar e pilhar os corpos de mulheres ou de expoliar as mentes das mulheres de modo que possam provar uns aos outros que são homens de verdade. Os homens precisam desenvolver uma ideologia política que não requeira que os homens excluam as mulheres de suas instituições que nós também construímos e que pertence a nós tanto quanto pertencem a todos que vivem em nossas sociedades.Isso é onde eu me coloco enquanto uma feminista africana radical sobre os espaços sagrados que construímos, frequentemente com nossas vidas mesmas, e não estou preparada para compartilhar com qualquer homem, contanto que os homens continuem a serem privilegiados pelo patriarcado.

notas sobre o mentir – adrienne rich

10-Jan-15

Quero disponibilizar este texto na íntegra. Aqui há poucas partes traduzidas. Li em espanhol o trecho todo e me pareceu melhor estar na íntegra pra ser entendível. Assim eu não entendi muito ele. É do livro  “Mulheres e honra: uma nota sobre mentiras” por Adrienne Rich, do livro “Sobre mentiras, secretos y silencios” da mesma autora. Quem quiser tb, o texto todo está em:http://heresialesbica.noblogs.org/files/2014/04/algunas_notas_sobre_el-mentir_adrienne_rich.pdf  

 

Descobrir que mentiram para nós em um relacionamento pessoal, no entanto, nos leva a sentir desnorteadas. Mente-se com palavras, e também com silêncio.A mulher que mente em seus relacionamentos pessoais pode ou não planejar ou forjar sua mentira. Ela pode nem pensar sobre o que está fazendo de forma calculada.Surge um assunto que a mentirosa deseja enterrar. Ela precisa descer, o tempo no seu parquímetro deve ter esgotado. Ou então, há um telefonema que ela deveria ter feito uma hora atrás.De forma direta, lhe é feita uma pergunta que pode levar a uma conversa dolorosa: “Como você se sente em relação ao que está acontecendo entre nós?”. Ao invés de tentar descrever seus sentimentos na sua ambiguidade e confusão, ela pergunta “Como você se sente?”.A outra, porque está tentando estabelecer um espaço de sinceridade e confiança, começa a descrever seus próprios sentimentos. Dessa forma, a mentirosa aprende mais sobre a outra do que se expressa.E ela pode também contar a si própria uma mentira: que ela está preocupada com os sentimentos da outra, não com os seus.Mas a mentirosa está preocupada com os seus próprios sentimentos.A mentirosa vive com medo de perder o controle. Ela nem mesmo pode desejar um relacionamento sem manipulação, uma vez que estar vulnerável à outra pessoa significa para ela a perda do controle.A mentirosa tem muitos amigos, e leva uma existência de grande solidão.A mentirosa com frequência sofre de amnésia. A amnésia é o silêncio do inconsciente.Mentir costumeiramente, como um estilo de vida, é perder contato com o inconsciente.É como tomar remédios para dormir, que proporcionam o sono, mas impedem o sonhar. O inconsciente deseja verdade. Ele cessa de se comunicar com aquelas que querem algo a mais além da verdade.Ao falar de mentiras, nós chegamos inevitavelmente à questão da verdade. Não há nada fácil ou simples sobre essa ideia. Não há “a verdade”, “uma verdade” – a verdade não é uma coisa só, ou mesmo um sistema. Ela é uma complexidade crescente.Os padrões da tapeçaria são a superfície. Quando olhamos com mais atenção, ou quando nos tornamos tecelãs, nós aprendemos sobre os vários fios pequeninos que são invisíveis no desenho geral, os nós no lado de baixo do tapete.É por isso que o esforço por falar de forma sincera é tão importante. Mentiras são usualmente tentativas de tornar tudo mais simples – para a mentirosa – do que na verdade é, ou deve ser.Ao mentir para outros, nós acabamos mentindo para nós mesmas. Nós negamos a importância de um evento, ou uma pessoa, e dessa forma nos privamos de uma parte de nossas vidas. Ou nós nos utilizamos de uma porção do passado ou presente para bloquear outra. Assim, nós deixamos até de acreditar em nós mesmas.O inconsciente deseja verdade, tanto quanto o corpo a deseja. A complexidade e a fecundidade de sonhos vêm da complexidade e fecundidade do inconsciente lutando para satisfazer esses desejos. A complexidade e fecundidade da poesia vêm da mesma luta.Uma relação humana honrável – isto é, uma na qual duas pessoas tenham direito de usar a palavra “amor” – é um processo, delicado, violento, com freqüência assustador para ambas as pessoas envolvidas, um processo de aprimorar as verdades que nos contamos.É importante passar por esse processo porque ele destrói a auto-ilusão humana e o isolamento.É importante passar por esse processo porque ao fazê-lo nós fazemos jus a nossa complexidade.É importante passar por esse processo porque nós podemos contar com tão poucas pessoas para nos acompanhar em nosso duro caminho…. Há um risco que todas as pessoas impotentes correm: o de que esqueçamos que estamos mentindo, ou que o ato de mentir se torne uma arma que levamos para relacionamentos com pessoas que não têm poder sobre nós.Eu desejo reiterar que quando falamos sobre mulheres e honra, ou mulheres e mentira, nós falamos dentro do contexto da mentira masculina, das mentiras dos poderosos, da mentira como fonte falsa de poder.Nós mulheres devemos pensar se queremos, em nossos relacionamentos uma com a outra, o tipo de poder que pode ser obtido através da mentira.As mulheres têm sido levadas à loucura, alvos de tortura psicológica, por séculos pela negação de nossas experiências e nossos instintos e uma cultura que valida apenas a experiência masculina. A verdade de nossos corpos e nossas mentes tem sido mitificada.Portanto nós temos um dever primário uma para com as outras: não minar a percepção da realidade de cada uma para o bem da conveniência; não abusar psicologicamente uma das outras.Nós mulheres temos frequentemente nos sentido loucas quando abrindo caminho para a verdade de nossas experiências. Nosso futuro depende da sanidade de cada uma de nós, e possuímos um profundo dever, além do pessoal, no projeto de descrever umas para as outras nossa realidade da forma mais sincera e completa que podemos.Há frases que nos ajudam a não admitir que estamos mentindo: “minha privacidade”, “não é da conta de ninguém”. As escolhas implícitas nessas frases podem de fato ser justificadas; mas nós devemos pensar no significado total e nas conseqüências dessa linguagem.O amor de mulheres por mulheres tem sido representado quase inteiramente através de silêncio e mentiras. A instituição da heterossexualidade forçou a lesbiana a dissimular ou ser rotulada uma pervertida, uma criminosa, uma mulher doente ou perigosa, etc., etc. A lesbiana, então, tem sido frequentemente forçada a mentir, como a prostituta ou as mulheres casadas. Uma vida “no armário” – mentindo, talvez por necessidade, sobre nós mesmas a patrões, locadores, clientes, colegas, família, porque a lei e a opinião pública estão baseadas em uma mentira – se espalha, pode se espalhar para vida privada, de forma que mentir (descrito como discrição) se torna uma maneira simples de evitar conflito ou complicação? pode se tornar uma estratégia tão arraigada que é utilizada até mesmo com amigos próximos e amantes?A heterossexualidade como instituição também relegou ao silêncio os sentimentos eróticos entre mulheres. Eu mesma vivi metade de uma vida na mentira dessa negação. Esse silêncio faz com que todas nós, em certo grau, sejamos “mentirosas”. Quando uma mulher diz a verdade ela está criando a possibilidade de mais verdade ao redor dela. …

 

– por Adrienne Rich em “Mulheres e honra: uma nota sobre mentiras”

 

 

 

Mulher Que Se Identifica Com Mulher, RADICALESBIANS, 1970

10-Jan-15
Um escrito fundamental para toda radfem, que não vejo ser muito divulgado e lido, apesar de eu sempre indicar. Se chama “A Mulher que se identifica com a Mulher”, foi escrito por um grupo de lésbicas em resposta a exclusão das lésbicas em um congresso da NOW (National Organization of Women). As lésbicas eram consideradas neste momento, como a ‘ameaça violeta’ ao movimento das mulheres (isso deu origem ao grupo The Lavender Menace, A Ameaça Violeta). DIziam que lesbianismo não passava de uma ‘solução individual’ e pediam que não fossem visíveis pelo bem do movimento, para não sujá-lo. Como boa parte das mulheres que mantinham o movimento de libertação das mulheres eram lésbicas, elas resolveram se manifestar, declarando que não somente as lésbicas eram parte deste movimento, como também a lesbianidade representava a manifestação mais emblemática da identificação entre mulheres, muito antes de qualquer feminismo formal a lésbica é uma mulher que ama e dedica suas energias às mulheres. Esse foi um marco muito importante a partir do qual começaram a surgir muitos outros grupos lésbicos no contexto do feminismo norte-americano, é um marco histórico que inaugura de certa forma o feminismo lésbico e também produções teóricas próprias de lésbicas. 

(***)

 

A mulher que se identifica com a mulher(The woman-identified woman)*(Radicalesbians, 1970)

 

O que é uma lésbica? Uma lésbica é a fúria de todas as mulheres condensada até ao ponto de explosão. Ela é a mulher que, muitas vezes numa idade muito jovem, começa a actuar de acordo com a sua necessidade compulsiva de ser um ser humano mais completo e livre que – talvez então mas certamente mais tarde – a sociedade onde vive a deixa ser.

Estas necessidades e acções ao longo dos anos, conduzem-na a um conflito doloroso com as pessoas, situações, formas aceitáveis de pensar, de sentir e de comportamento, até se encontrar num estado de guerra permanente com tudo à sua volta e geralmente também com ela própria. Pode não estar totalmente consciente das implicações políticas do que para ela começou como necessidade pessoal, mas num dado plano não foi capaz de aceitar as limitações e a opressão imposta pelo papel mais básico da sua sociedade – o papel de mulher. O turbilhão que ela sente, tende a induzir uma culpa proporcional ao grau em que ela sente não estar de acordo com as expectativas sociais, e/ou eventualmente condu-la ao questionar e à análise do que o resto da sua sociedade mais ou menos aceita. Ela é forçada a desenvolver o seu próprio padrão de vida, muitas vezes vivendo grande parte da sua vida sózinha, aprendendo geralmente mais cedo que as suas irmãs heterossexuais acerca da solidão essencial da vida (que o mito do casamento esconde) e acerca da realidade das ilusões. Enquanto não conseguir expelir a pesada socialização que implica o ser mulher, nunca conseguirá estar em paz consigo própria. Porque ela se encontra entre a aceitação da visão que a sociedade tem dela – e nesse caso não se aceita a ela própria – e a compreensão do que esta sociedade sexista fez por ela e porque é funcional e necessário fazê-lo. Aquelas de entre nós que meditámos e tirámos conclusões sobre isso, encontramo-nos do outro lado de uma viagem tortuosa através da noite que pode ter durado décadas. A perspectiva que se ganha dessa viagem, a libertação interior do nosso ser, a paz interior, o amor real por nós próprias e por todas as mulheres, é algo a ser compartilhado com todas as mulheres – porque somos todas mulheres.

Deverá ser compreendido em primeiro lugar que o lesbianismo, tal como a homossexualidade masculina é uma categoria de comportamento possível apenas numa sociedade sexista, caracterizada por papéis sexuais rígidos e dominada pela supremacia do homem. Esses papéis sexuais desumanizam a mulher, definindo-nos como uma casta de apoio/serviço em relação à classe dominante dos homens e tornam os homens inválidos emocionais ao lhes exigir que sejam alienados dos seus próprios corpos e emoções de modo a executar eficientemente as suas funções económicas/políticas/militares. A homossexualidade é um produto secundário de uma forma particular de definir papéis (ou padrões aprovados de comportamento) com base no sexo; e como tal é uma categoria inautêntica (que não está de acordo com a “realidade”). Numa sociedade em que os homens não oprimissem as mulheres, e em que fosse permitido à expressão sexual seguir os sentimentos, as categorias de homossexualidade e heterossexualidade iriam desaparecer.

Mas o lesbianismo é também diferente da homossexualidade masculina e tem uma função diferente na sociedade. “Fufa” é uma forma depreciativa diferente de “paneleiro”, embora ambos impliquem que não se está a actuar de acordo com o papel sexual socialmente atribuído – que não se é uma “verdadeira mulher” ou “verdadeiro homem”. A admiração invejosa que se sente pela maria-rapaz e o sentimento de mal-estar sentido à volta de um rapaz efeminado apontam para a mesma coisa; o desprezo com que são encaradas as mulheres – ou aqueles que desempenham o papel feminino. E o investimento feito para manter as mulheres nesse papel desprezível é muito grande. Lésbica é a palavra, a etiqueta, a condição que mantêm as mulheres na linha. Quando uma mulher ouve esta palavra ser lançada na sua direcção, sabe que está a pisar o risco. Sabe que atravessou a terrível fronteira do seu papel sexual. Recua, protesta, reformula as suas acções para receber aprovação. Lésbica é uma etiqueta inventada pelo homem para atirar a qualquer mulher que queira ser sua igual, que tenha a audácia de desafiar as prerrogativas dos homens (incluindo a prerrogativa de todas as mulheres serem usadas como moeda de troca entre os homens), que tem a audácia de afirmar a primazia das suas próprias necessidades. Ter esta etiqueta aplicada a pessoas que estão activas no movimento de libertação das mulheres, é apenas o episódio mais recente de uma longa história; as mulheres mais velhas lembrar-se-ão que não há muito tempo, qualquer mulher independente que tivesse sucesso e não orientasse toda a sua vida à volta de um homem ouviria esta palavra. Porque nesta sociedade sexista, ser independente para uma mulher significa que esta não pode ser uma mulher deve ser uma fufa. Isto em si deveria dizer-nos em que pé as mulheres se encontram. Diz tão claramente quanto pode ser dito: mulheres e pessoa são termos contraditórios. Porque uma lésbica não é considerada uma “verdadeira mulher”. E contudo, no pensamento popular, existe apenas uma diferença essencial entre uma lésbica e as outras mulheres: a orientação sexual – ou seja, depois de se retirar o papel de embrulho, deveremos finalmente compreender que a essência de ser “mulher” é ser fodida por um homem.

“Lésbica” é uma das categorias sexuais em que os homens dividiram a humanidade. Enquanto que todas as mulheres são desumanizadas sendo encaradas como objectos sexuais, ao serem objectos dos homens são-lhes oferecidas algumas compensações: identificação com o seu poder, o seu ego, o seu status, a sua protecção (dos outros homens), sentir-se como uma “mulher verdadeira”, encontrar uma aceitação social ao aderir ao seu papel, etc. Se uma mulher se confrontar com ela própria ao confrontar outra mulher, existirão menos racionalizações e menos tampões para evitar o horror total da sua condição desumanizada. Aqui encontramos o medo inultrapassável de muitas mulheres em relação a explorar relações íntimas com outras mulheres: o medo de ser usada como objecto sexual por outra mulher, que não só não dará as compensações ligadas aos homens, mas que também revelará o vazio que é verdadeiramente a situação real da mulher. Esta desumanização é expressa quando uma mulher heterossexual descobre que a sua irmã é lésbica; ela começa a relacionar-se com a sua irmã lésbica como sendo um potencial objecto sexual atribuindo o papel de substituto do homem à lésbica. O facto de ela se tornar num objecto quando numa relação está potencialmente envolvido sexo, revela o seu condicionamento heterossexual e nega à lésbica toda a sua humanidade. Para as mulheres, especialmente aquelas envolvidas no movimento, aperceber-se das suas irmãs lésbicas através desta grelha machista de definição de papéis, é aceitar este condicionamento cultural dos homens e oprimir as suas irmãs da mesma maneira que elas próprias são oprimidas pelos homens. Vamos continuar com o sistema de classificação dos homens, que define todas as mulheres numa relação sexual com qualquer outra categoria de pessoas? Afixar a etiqueta de lésbica não apenas a uma mulher que aspira a ser uma pessoa, mas também a qualquer situação de verdadeiro amor, verdadeira solidariedade, verdadeira primazia entre as mulheres é uma forma primária de divisão entre as mulheres dentro dos limites do papel feminino e é o termo que ridiculariza/assusta as mulheres e que as impede de formar quaisquer ligações, grupos ou associações primárias entre elas.

As mulheres no movimento tem numa maioria dos casos feito grandes esforços para evitar discussões e confrontações sobre a questão do lesbianismo. Põe as pessoas nervosas. Elas ficam hostis, evasivas, ou tentam incorporar o assunto num “tema mais geral”. Preferem não falar no assunto. Se o tem de fazer, tentam impedir que se continue por ser um falso problema. Mas não é uma questão secundária. É absolutamente essencial para o sucesso e o atingir dos objectivos do movimento de libertação das mulheres que se lide com esta questão. Enquanto a etiqueta de “fufa” poder ser usada para assustar as mulheres para que estas se tornem menos militantes, se mantenham afastadas das suas irmãs, para afastá-las de dar primazia a tudo o que não seja os homens e família – então desse modo elas são controladas pela cultura dos homens. Até as mulheres conseguirem ver umas nas outras a possibilidade de um compromisso primordial que inclui o amor sexual, estarão a negar a elas próprias o amor e o valor que dão inerentemente aos homens, afirmando desse modo o seu estatuto de segunda classe. Enquanto que o mais importante seja a aceitação pelos homens – tanto para as mulheres individuais como para o movimento como um todo – o termo lésbica será usado eficazmente contra as mulheres. Enquanto as mulheres quiserem apenas mais privilégios dentro do sistema não querem antagonizar o poder dos homens. Em vez disso procuram uma aceitação da libertação das mulheres e o aspecto mais crucial desta aceitação é negar o lesbianismo – isto é negar qualquer desafio fundamental à base do papel da mulher.

Deverá igualmente ser dito que algumas mulheres mais jovens e mais radicais começaram a discutir o lesbianismo com honestidade, mas até agora apenas como uma “alternativa” sexual aos homens. Contudo, isto é ainda dar a primazia aos homens, tanto porque a ideia de se relacionar mais completamente com as mulheres ocorre como uma reacção negativa aos homens como porque a relação lésbica está a ser caracterizada apenas pelo sexo o que é divisionista e sexista. Num plano que é tanto pessoal como político, as mulheres podem retirar energias emocional e sexual dos homens e desenvolver diversas alternativas nas suas vidas para essas energias. Noutro plano político/psicológico diferente, deverá ser compreendido que o que é crucial é que as mulheres se comecem a libertar dos padrões de resposta definidos pelos homens. Na privacidade das nossas próprias psiques, devemos cortar esses cordões até ao cerne. Porque independentemente de para onde fluem o nosso amor e energias sexuais, se nas nossas cabeças nos identificamos com os homens, não podemos realizar a nossa autonomia como seres humanos.

Mas porque é que as mulheres se relacionam com e através dos homens? Em virtude de termos sido educadas numa sociedade de homens, interiorizamos a definição que a cultura dos homens dá de nós próprias. Essa definição vê-nos como seres relativos que existem não para nós próprias mas sim para o serviço, manutenção e conforto dos homens. Essa definição confina-nos em funções sexuais e de família e exclui-nos de definir e elaborar os termos das nossas vidas. Em troca dos nossos serviços psíquicos e da execução de funções não lucrativas, o homem dá-nos apenas uma coisa: o estado de escrava que nos torna legítima aos olhos da sociedade em que vivemos. A isto dá-se o nome no calão cultural a “feminilidade” ou “ser uma mulher verdadeira”. Nós somos autênticas, legítimas, reais se formos propriedade de algum homem cujo nome usamos. Ser uma mulher que não pertence a qualquer homem é ser invisível, patética, inautêntica, irreal. Ele confirma a sua imagem de nós – de aquilo que temos de ser de modo a ser aceitável por ele – mas não dos nossos verdadeiros seres.; ele confirma o nosso estatuto de mulher – tal como ele o define, em relação a ele – mas não pode confirmar o nosso estatuto de pessoa, os nossos seres como absolutos. Enquanto estivermos dependentes da cultura dos homens, para esta aprovação, não podemos ser livres.

A consequência de interiorizar este papel é um enorme reservatório de auto-ódio. Isto não corresponde a dizer que este auto-ódio é reconhecido ou aceite como tal; com efeito muitas mulheres negá-lo-ão. Pode ser experimentado como desconforto com o seu papel, sentimento de vazio, entorpecimento, desassossego, uma ansiedade paralizante. Alternativamente, pode ser expresso através de uma grande defesa do destino e da glória do seu papel. Mas este auto-ódio existe, muitas vezes no inconsciente, envenenando a sua existência, mantendo-a alienada de ela própria, das suas necessidades e tornando-a estranha às outras mulheres. As mulheres odeiam-se a elas e às outras mulheres. Tentam escapar ao se identificar com o opressor, vivendo através dele, ganhando status e identidade a partir do seu ego, do seu poder dos seus feitos. E através de uma não identificação com outros “recipientes vazios” como elas próprias, as mulheres resistem relacionando-se a todos os níveis com outras mulheres que irão reflectir a sua própria opressão, o seu estado secundário e o seu próprio auto-ódio. Pois confrontar outra mulher é finalmente confrontar o seu próprio ser – o ser que se tentou tão dificilmente evitar. E nesse espelho sabemos que não podemos realmente respeitar e amar aquela em que nos tornámos.

Uma vez que a fonte do auto-ódio e a falta de verdadeiro ser tem origem na identidade que nos é dada pelos homens, devemos criar um novo sentido de ser. Enquanto nos agarrarmos à ideia de “ser uma mulher”, sentiremos algum conflito com esse ser incipiente, esse sentido do eu, esse sentido da pessoa total. É muito difícil compreender e aceitar que ser “feminina” e ser uma pessoa no seu todo são irreconciliáveis. Apenas as mulheres podem dar umas às outras um novo sentido do ser. Essa identidade tem que ser desenvolvida tendo por referência nós e não os homens. Esta consciência é a força revolucionária a partir da qual tudo o resto sairá, porque a nossa revolução é orgânica. Para isto devemos apoiar e estar disponíveis umas para as outras, dar o nosso amor e compromisso, dar o suporte emocional necessário para manter este movimento. As nossas energias devem fluir na direcção das nossas irmãs e não na direcção dos nossos opressores. Enquanto a libertação da mulheres tentar libertar as mulheres sem encarar a estrutura básica heterossexual que nos liga numa relação um para um com os nossos próprios opressores, energias tremendas continuarão a fluir na direcção de tentar endireitar cada relação particular com um dado homem, como conseguir ter melhor sexo, como fazer com que a cabeça dele se vire ao contrário – para tentar fazer um “homem novo” dele, na ilusão que isto nos permitirá ser uma “mulher nova”. Isto obviamente divide as nossas energias e compromissos, deixando-nos incapazes de nos comprometer com a construção de novos padrões que nos libertarão.

É a primazia das mulheres a se relacionarem com outras mulheres, das mulheres a criarem uma nova consciência delas umas com as outras, que está no centro da libertação das mulheres, e que é a base para a revolução cultural. Juntas devemos encontrar, reforçar e validar os nossos seres autênticos. Quando o fazemos confirmamos umas com as outras o nosso sentido incipiente de orgulho e força, as barreiras de divisão começam a desaparecer, e sentimos este sentimento crescente de solidariedade com as nossas irmãs. Vemo-nos como princípio, encontramos os nossos centros dentro de nós. Vemos regredir o sentimento de alienação, de ser posta de parte, de estar por detrás de uma janela fechada, de ser incapaz de fazer sair o que nós sabemos que se encontra cá dentro. Sentimos uma autenticidade, sentimos finalmente que estamos de acordo connosco. Dentro desse ser real, com essa consciência, começamos uma revolução para acabar com a imposição de todas as identificações coercivas e para atingir o máximo de autonomia na expressão humana.

Amor Romântico: Uma Estratégia Patriarcal

10-Jan-15

tradução: cibele cê

Fevereiro 14. É aquela época do ano outra vez. Lembro dela de outros tempos. Imaginando se eu teria admiradores secretos, distantes, que de repente encontrariam uma coragem no fundo e me mandariam um cartão. Sentindo o melancólico desapontamento de quando olhava a caixa de correio vazia depois de o carteiro passar. Quando criança, fiz um cartão para minha mãe e entreguei a ela e ela disse: “Alguém me ama”. Durante alguns anos, recebi cartões simpáticos dos meus gatos (sim, era minha mãe de volta). Por muitos anos, houve um crescente suspense de que, talvez, este ano seria o ano em que um garoto notaria que eu existo. Romanticamente. Eu sempre era, afinal de contas, sexualmente objetificada na rua e isso é quase a mesma coisa, não é? Foi facinho depois que comecei a namorar mulheres. Eu recebia cartões de dia dos namorados sem falta e flores e presentes a qualquer hora porque a maioria das mulheres tem romance nos ossos. Em seu próprio condicionamento.

Ok, paro bem aqui. Vamos olhar para isso. Se há algo que as mulheres são encorajadas a fazer facilmente mas homens não então nós podemos praticamente garantir que é algo que funciona contra mulheres, não para elas.

Em muitas culturas, incluindo onde eu vivo no Reino Unido, o “amor romântico” é a pedra angular da heterossexualidade compulsória. Tão logo somos capazes de entender palavras, nos são passadas mensagens sobre casamento, maternidade e romance. Piadas são feitas sobre o menino de 3 anos de idade da nossa rua casando conosco um dia. Somos repetidamente questionadas se queremos casar quando crescermos. É introjetado em nós, do nascimento, que nosso objetivo primário na vida deve ser encontrar um macho “alma-gêmea” de quem possamos cuidar e com quem vivamos felizes para sempre. Se não recebemos esse reforço com frequência suficiente em casa, então os livros de contos de fadas infantis asseguram o suporte à tarefa quando necessário. A socialização de gênero começa do nascimento e nos são lidos, o mais cedo possível, livros que nos contam sobre nosso lugar no mundo como serventes dos homens.

Superficialmente, talvez, tudo isso pode parecer bastante inocente, se você está preparada para aceitar esse tipo de propaganda em valor nominal. É apenas quando olhamos mais profundamente, através de lentes feministas radicais, que vemos as implicações sinistras de como o “amor romântico” funciona.

Séculos atrás, as mulheres eram controladas através da economia; forçadas a ser financeiramente dependentes do patriarca. A única maneira pela qual elas podiam sobreviver era sendo vendidas ao próximo patriarca (mulheres de classe média/alta) ou encontrando um patriarca que tivesse a chance de ganhar uma renda (mulheres pobres/de classe trabalhadora). Essa forma de controle continua a existir mas agora precisa de muito suporte já que (algumas) mulheres podem se sustentar ganhando um salário baseado em seu próprio treinamento, sua própria educação e suas próprias habilidades.

Esse suporte são os mitos românticos. A ideia de que existe um homem em algum lugar para todas nós, que nos vai amar, proteger e sustentar. Para sempre. Temos testemunhos de que isso deve ser verdade através das revistas que lemos, dos livros que compramos e dos filmes a que assistimos. Seguidamente, parcerias heterossexuais felizes, bem sucedidas nos são projetadas. Nas raras ocasiões em que não, deixa-se claro que estas são exceções na vida, não a norma.

Quem pode culpar as mulheres, então, quando nós ingenuamente procuramos o “amor romântico” que consideramos como relacionamentos emocionalmente igualitários de mútuo apoio, de mútuo sustento? Sites de encontros online estão cheios de promessas para o romantismo feminino. Mulheres procuram conexões e homens procuram fodas casuais com mulheres sexualmente objetificadas que, eles acreditam, serão exatamente como as mulheres torturadas no pornô que eles consomem.

Nossa crença profundamente condicionada no “amor romântico nos mantêm em relacionamentos abusivos. Nós procuramos significados mais profundos, nós dizemos “ele realmente me ama” quando ele falha em corresponder a qualquer tipo de padrão humano básico, ou “eu posso transformá-lo”. Uma crença no “amor romântico” supera experiências de espancamento, estupro e tortura psicológica. Nós o encontraremos, não importa como. Nós precisamos. Todas as mensagens que recebemos desde o nascimento nos dizem que ele está lá – o que há de errado conosco que não conseguimos encontrá-lo? Somos ensinadas que somos seres humanos incompletos sem o amor de um homem. Nós precisamos sofrer na esperança de que um dia talvez possamos ganhá-lo. De verdade.

É uma técnica de Estocolmo manter fêmeas, como uma classe, presas dentro uma heterossexualidade compulsória. A heterossexualidade compulsória é elaborada para beneficiar homens, como uma classe, às custas das mulheres, como uma classe. Aprisionar mulheres ou colocar-nos em jaulas não vai funcionar porque precisamos ser livres para exercer nossas incumbências. Eles inventaram o “amor romântico”, em vez disso, como uma jaula psicológica com o objetivo de nos manter em nossos lugares até a morte.

Com a pobreza se alastrando em 2013, e com o estado de bem estar social declinando, mais e mais mulheres serão forçadas a voltar para o lar e para a dependência econômica e financeira dos homens. O pensamento lógico não manteria um escravo como um burro de carga não-assalariado, juntando as necessidades financeiras, emocionais, sexuais e práticas dos homens no confinamento da heterossexualidade compulsória. O “amor romântico”, no entanto, o fará muito melhor que uma bola de chumbo e uma corrente.

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original: http://sisterhoodispowerful.wordpress.com/2013/02/02/romantic-love-a-patriarchal-ploy-2/