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Quando feministas tomam conta dos homens (versão corrigida)

13-Jan-15

12 de maio de 2006 por Heart.

Feministas tomam conta de homens (e em realidade, do mundo, como foi criado e vislumbrado por estes):

1. Quando elas dão mais crédito ou dão mais valor para o que é falado por um feminista que nasceu homem do que o que é dito por uma feminista que nasceu mulher – assim como faz o patriarcado.

2. Quando questões específicas daquelas nascidas mulheres são de menor significância, preocupação ou importância do que as questões daqueles nascidos homens – assim como isso é verdadeiro para as instituições patriarcais;

3. Quando elas escolhem alianças com auto-identificados homnes feministas ou pró-feministas acima de alianças com mulheres feministas.

3. Quando elas falham em valorar, defender e proteger espaços reservados especialmente para a recuperação, contrução de comunidade e libertação daquelas nascidas mulheres e marginalizam mulheres dedicadas à isso.

5. Quando elas falham em distinguir entre essencialismo biológico e o processo contínuo de desvelamento, reflexão e interrogação sobre opressões únicas e específicas daquelas nascidas mulheres sob uma heterosupremacia masculina.

6. Quando elas marginalizam, silenciam ou atacam mulheres que devotam elas mesmas às questões e preocupações daquelas nascidas mulheres, assim como o patriarcado faz;

7. Quando elas defendem e protegem a produção de pornografia, a prostituição e o tráfico de mulheres (que aliás elas deverão chamar por outro nome, assim como o patriarcado costuma fazer).

8. Quando elas vêem as noções de sororidade e solidariedade entre mulheres como antiquadas, passadas e retrôs e não protegem e defendem as comunidades de mulheres, lésbicas em particular;

9. Quando elas participam da contínua omissão do “L” em “GLBT” (QDA).*

10. Quando elas não vêem qualquer problema com liderança masculina e/ou cooptação de organizações feministas, instituições, eventos e estudos e ignoram, silenciam e atacam mulheres feministas que se opôem à lideranças masculinas e envolvimentos masculinos.

11. Quando elas endossam e apoiam a suplantação dos programas, instituições e recursos de “Women’s Studies” (Estudos Feministas) por programas instituições e recursos dos “Estudos de Gênero”.

12. Quando elas falham em reconhecem e advogar vigorosamente por e por orientar jovens mulheres nascidas mulheres e ao invés disso encorajam e advogam aqueles nascidos homens

13. Quando elas minimizam a significância e importância do separatismo lésbico, separatismo do feminismo radical, e comunidades separatistas de mulheres em geral, sua importância para a libertação de mulheres, e ao invés disso participam em sua perseguição e eliminação.

14. Quando elas usam a expressão “… o que há entre suas pernas” de forma a minimizar ou eliminar a significância e sentido das experiências daquelas nascidas mulheres sob uma supremacia masculina.

15. Quando elas rejeitam, silenciam ou eliminam as vidas de feministas e mulheristas que são anciãs e falham em respeitar, honrar e defendê-las quando necessário;

16. Quando elas falham em reconhecer que mulheres são um povo colonizado;

17. Quando elas falham em investigam e iluminar os mecanismos, dinâmicas, e histórias da colonização física, emocional, espiritual e histórica e a subordinação daquelas nascidas mulheres por aqueles nascidos homens;

18. Quando elas desmerecem ou minimizam a importância da cultura de mulheres;

19. Quando elas participam de divisionismos entre mulheres feministas que são causadas de um modo permanente por auto-identificados homens feministas.

20. Quando elas são lesbofóbicas, separatistas fóbicas, e radfem fóbicas.

retirado de: http://womensspace.wordpress.com/2006/05/12/all-the-ways-feminists-take-care-of-men-1/

NOTAS:

* Não achei o significado de QDA.

imagem acima: Barbara Kruger, “Nós não precisamos de mais um herói”.

Separatismo Não É um Luxo: Algumas ideias sobre Separatismo e Classe

13-Jan-15

Por C. Maria
Lesbian Ethics Vol. 4 Nº 1 Primavera, 1999

Julia Penelope, em “O Mistério das Lésbicas”, pergunta, “COMO, apesar do escárnio, encarceramento, violência, e pobreza, nós encontramos coragem PARA CRIAR NÓS MESMAS??”(1) Essa questão reacendeu minha raiva por ter ficado desemprega nos dois anos que se seguiram à minha graduação na faculdade em 1986, assim como pela pobreza que mulheres são forçadas a aguentar. Mas como uma Afro-Latina Dyke (N.T:
Sapatão) vivendo e trabalhando no heteropatriarcado racista,(2) eu era levada a
considerar o presente sistema falocrático e me perguntava como seria possível para
Lésbicas Separatistas se mover além de um foco em classe.
Meu ponto nesse texto é que feministas socialistas estão erradas em insistir que
Lésbicas foquem em classe. Elas ignoram a conexão entre privação econômica e o
sistema sexual de castas, onde homens fazem que as vidas das mulheres sejam quase
não vivíveis. Nós vivemos em um mundo que está pronto pra preparar nossas piras
funerárias diariamente.(3) Muitas Lésbicas, ao focarem-se em classe, não entenderam a
importância do separatismo, que é tornar nossas vidas Lésbicas vivíveis no presente.
Isso não é viver “um dia a cada vez.” Antes, Lésbicas precisam ser ativas, criativas, e
participantes rigorosas da nossa realidade presente. Para esse fim, eu concluo com Uma
Proposta.
Socialismo Não é a Resposta
A maioria das mulheres não podia se importar menos com o separatismo. Essa
ignorância proposital não apenas vem de não-feministas e anti-feministas, mas também
de feministas que deviam saber melhor, mas ainda assim escolhem ignorar o
separatismo até mesmo como uma possibilidade. Parte dessa ignorância é causada pelo
medo da represália dos homens. Mas medo sozinho não parou muitas Lésbicas e
Feministas Radicais de imaginar um mundo livre da violência e opressão masculina.
Então, o que mais está por traz dessa ignorância?
A única forma de justificar essa dispensa é a crença entre feministas liberais, socialistas/
da esquerda heterossexuais e lésbicas de que alguns homens, particularmente homens
pobres e homens etnicamente diferentes, são mais oprimidos que mulheres no geral.
Elas dizem que esses homens não se beneficiam da opressão sexual das mulheres. bell
hooks vai até o ponto de justificar crimes sexuais masculinos cometidos contra
mulheres e defender que homens são as reais vítimas.
‘Alienado, frustrado, bravo, ele pode atacar, abusar, e oprimir qualquer mulher
individual ou mulheres, mas ele não está colhendo benefícios do seu apoio a uma
ideologia sexista. Quando ele espanca ou estupra mulheres, ele não está exercendo
privilégio ou recebendo qualquer prêmio positivo; ele pode se sentir satisfeito
exercendo a única forma de dominação a que é permitido’ [ênfase minha – da autora –
].(4)De fato, o abuso físico e sexual que vem do privilégio heterossexual masculino é tão
penetrante e opressivo, que as mulheres menos privilegiadas e as NÃO privilegiadas
muitas vezes se tornam SIM Lésbicas Separatistas.
Aquelas que enxergam Separatismo Lésbico como classista e racista negam as vidas de
Lésbicas Separatistas, muitas das quais não são privilegiadas. Por exemplo, hooks vê
separatismo como puramente uma questão de classe.
‘A maioria das mulheres não tem a liberdade econômica para se separar dos homens,
por causa da interdependência econômica. A noção separatista de que mulheres podem
resistir ao sexismo se retirando do contato com homens reflete uma perspectiva de
classe burguesa.'(5)
hooks assume que todas as Separatistas são brancas e privilegiadas. Mas se o
Separatismo é derivado de uma “perspectiva de classe burguesa”, a maioria das lésbicas
mais privilegiadas seriam Separatistas, ou ao menos considerariam seriamente o
separatismo. E existiriam menos Separatistas racialmente e etnicamente diferentes ou
menos privilegiadas.
No entanto, Separatismo É uma questão econômica. Lésbicas Separatistas estão
dolorosamente conscientes de que é o heteropatriarcado racista o que mantém as
mulheres pobres. Nenhuma mulher, não importa o quão rica, tem poder irrevocável.
Todo homem, não importa o quão pobre, tem algum poder irrevocável.(6) Na economia
heteropatriarcal,(7) TODA mulher está economicamente presa aos homens. Jeffner
Allen explica esse dilema:
‘Ainda que escolhamos viver como Lésbicas, nós somos obrigadas…a permanecer em
relação à economia patriarcal… Nós somos obrigadas a permanecer em relação aos
homens, especialmente para garantir acesso à comida, água, abrigo, roupas, e
frequentemente, pelos bens e dinheiro que devem ser trocados por esses produtos.’
Qualquer mulher que se separa, mesmo que parcialmente, de um homem ou de homens,
irá sofrer economicamente. Viver como uma Separatista implica tomar o risco de que o
heteropatriarcado racista, a qualquer momento, tire os únicos meios de suporte
disponíveis para que obtenhamos nossas necessidades básicas e mantenhamos qualquer
qualidade de vida. Se tornar uma Separatista significa que a Lésbica colocou integridade
acima qualquer outra consideração que a necessariamente a prendesse aos homens.
Feministas Socialistas, no entanto, diriam que mulheres menos privilegiadas deveriam
manter-se aliadas aos homens EM NOSSOS GRUPOS, por que seria do “nosso”
interesse. Mas homens menos privilegiados continuam igualando seus interesses aos
interesses do “nosso grupo.” Se mulheres seguirem a prescrição feminista socialista,
elas se manterão escravas econômicas e sexuais dos homens a que são forçadas servir.
“Liberdade”, para feministas socialistas, significa manter solidariedade com homens
menos privilegiados, não importa o quão sexualmente, fisicamente, ou psiquicamente
abusivos eles são com as mulheres que têm o azar de estar por perto ou envolvidas com
eles. Mulheres não são permitidas a se separar dos homens por nenhuma razão.
Segundo Alison Jaggar:
‘O que a poíttica do separatismo total ignora, todavia, é que alguns grupos de mulheres
têm interesses em comum com alguns grupos de homens. Mulheres trabalhadoras têm
interesses em comum com homens trabalhadores; mulheres Judias têm interesses em
comum com homens Judeus; mulheres diferentemente capacitadas têm interesses em
comum com homens diferentemente capacitados; e mulheres negras têm interesses em
comum com homens negros.’(9)
O que Jaggar não explica é como mulheres negras, mulheres Judias, mulheres
trabalhadoras, e mulheres diferentemente capacitadas, apesar de um forte
comprometimento para acabar com todas as opressão, ainda têm a fortaleza/coragem de
serem Separatistas. Ainda assim, feministas socialistas chamam Lésbicas Separatistas
trabalhadoras, Semíticas,(10) diferentemente capacitadas, Afro-Amerikanas, Latinas,
Amerikanas Nativas [N.T. Indígenas], Asiáticas Amerikanas de racistas, classistas,
antissemíticas, etaristas e capacitistas.
Jaggar continua:

‘… uma politica de separatismo total é necessariamente classista e racista, não importa
o quanto classismo e racismo tenham sido erradicados dentro da cultura de mulheres.
Em parte, é classista e racista pois o acesso à cultura de mulheres é mais difícil para
mulheres pobres e negras, assim como é mais difícil para tais mulheres ser
exclusivamente lésbicas. Em um nível mais fundamental… separatismo total é classista
e racista por que nega a importância das divisões de classe e raça…
Consequentemente, nunca poderá ser efetivo em trazer uma transformação social de
longo alcance’ [ênfase minha].(11)
Jaggar se contradiz imediatamente nessa declaração. Se classismo e racismo estão
exterminados na “cultura de mulheres”, por que ela ainda a vê como classista e racista?
A contradição não a perturba, ou então ela teria pensado melhor esse comentário.
Qualquer coisa desejável é mais difícil de se obter para mulheres menos privilegiadas.
Mas ela prefere focar na ideia de que mulheres menos privilegiadas são suspostamente
incapazes de serem Lésbicas. A mentalidade dela é a mesma que a de muitos países
socialistas, como Cuba, que proclamam que Lésbicas são um resultado de uma
influência burguesa perversa e regressiva. Eles apoiam a heterossexualidade
compulsória fazendo das Lésbicas criminosas.
O feminismo Socialista sofre de uma falta de inteligência moral e ética. Quando
feministas socialistas nos dizem que somos classistas e racistas por sermos Lésbicas
Separatistas, elas estão escondendo sua própria falha moral de considerar o mesmo para
si. Feministas Socialistas presumem que mulheres economicamente, racialmente e
etnicamente oprimidas não são inteligentes o suficiente para tornar nossas vidas o quão
vivível for possível, ou para escolher nossos ideais e como agir em relação a eles. Elas
presumem que nós devemos ser “resgatadas” e colocadas de volta nas “graças” do
heteropatriarcado racista.
É impossível para Lésbicas Separatistas, especialmente para as Lésbicas Separatistas
racialmente e etnicamente diferentes, ignorar raça e economia por que essas são nossas
realidades diárias. Nós entendemos muito bem o que nos divide. E não importa quantas
dessas dicotomias existam, nós NOMEAMOS os agentes responsáveis por essas
FALSAS diferenças impostas.Enquanto Lésbicas Separatistas não têm como ignorar raça e economia, é a força de
nossas diversidades E similaridades que trará transformação social REAL, uma muito
além do alcance do feminismo socialista.
O Resultado
Muitas feministas, particularmente feministas liberais e socialistas, defenderão trabalhar
na economia masculina baseadas no fato de que fazer isso elevará nossa condição socioeconômica.
Mas, como Jeffner Allen afirma, “homens, não mulheres, conquistam uma
vantagem monetária…” (12)
Status de classe é algo que possuem os homens que trabalham na heteroeconomia
patriarcal. As mulheres não têm status de classe. A estrutura de classe masculina define
e prescreve a servidão econômica, emocional e sexual aos homens, enquanto a
heteroeconomia patriarcal constrói a base concreta para a opressão econômica das
mulheres. A heteroeconomia patriarcal, pagando às mulheres os salários mais baixos,
nos coage a permanecer sob dominação racista heteropatriarcal. Terrorismo sexual no
ambiente de trabalho estende a contínua servidão das mulheres além do âmbito
doméstico falocrático. Por sua vez, esse terrorismo força as mulheres à esfera “privada”,
onde o terrorismo pode continuar em segredo. Como o estupro e a pornografia, o
terrorismo sexual no ambiente de trabalho diz às mulheres o que os homens pensam de
nossa presença, nossa existência e nosso lugar no heteropatriarcado racista.
As mulheres não adquirem status de classe por nosso próprio mérito, mas antes como
anexos socio-econômicos, políticos e sexuais dos homens. Qualquer mulher que recuse
ser um anexo de homens perde os “benefícios” da economia masculina. A Separatista
Lésbica não é parte da heteroeconomia patriarcal. Tampouco o é qualquer mulher que
não seja um anexo de um homem.
A pobreza não é algo inteiramente próprio da heteroeconomia patriarcal. Os níveis da
estrutura de classe implicam em que membros tenham mobilidade “ascencional” (13).
Essa mobilidade é mobilidade fálica. As mulheres, seres não fálicos, são
automaticamente excluídas. Para sobreviver, mulheres autônomas, incluindo
Separatistas Lésbicas, trabalham no sistema econômico masculino exercendo tarefas
que definem nossa falta de status de classe. Somos forçadas a viver como trabalhadoras
migrantes estáticas, que precisam ganhar nosso sustento e nunca reclamar de nossa
condição, ou afundamos ainda mais na degradação.
A falta de um status de nossa própria classe de mulheres pode ser mais evidentemente
vista em indústrias de “serviços”, como restaurantes e bares, escritórios corporativos e
estabelecimentos de vendas. As mulheres são a maioria dos trabalhadores de baixo nível
nessas indústrias. Normalmente trabalhamos 8 ou mais horas por dia, frequentemente
por salário mínimo. Alguns empregos, particularmente em restaurantes, pagam menos
que o mínimo, forçando as mulheres a viver de gorjetas recebidas por sorrirem, serem
gentis e condescendentes (14). Esses empregos requerem pouca formação educacional e
oferecem poucas oportunidades de promoção ou aumento de salário. Não é
surpreendente que esses empregos tenham altas taxas de rotatividade, porque as
mulheres que o exercem são facilmente dispensadas.Fazendo mulheres exercerem tarefas degradantes e repetitivas, os homens que
controlam a heteroeconomia patriarcal podem continuar a fazer o que quer que eles
escolham sem pensar sobre as consequências. Os homens continuam, com total
confiança, a desperdiçar e destruir, sabendo que eles têm mulheres bem condicionadas a
reparar tudo para eles. As mulheres “pegam o trabalho sujo, se encarregam do entulho
material e psíquico (…), produzem apenas outra variante do autossacrifício feminino e
do trabalho doméstico, varrendo as ruínas do patriarcado” (15).
A Lésbica Separatista escolheu derrotar os homens, odiar os homens (16), a fim de
defender as mulheres e nossa liberdade de sermos nós mesmas. O preço para manter
nossa integridade é quase sempre a pobreza, a violência, a degradação e a negação de
necessidades básicas. Apesar da pobreza sofrida e dos obstáculos colocados à nossa
frente, nós sabemos que estamos certas (17). E por causa da alegria e da liberdade que
irradiamos, nossos inimigos sabem que estamos certas.
‘Considere o caso dos guerreiros Masai, um grupo de pastores que vivem no Quênia e
em partes da Tanzânia. Apesar das mulheres cuidarem do gado, a fonte de riqueza do
grupo, seus maridos são os donos, e o gado é passado como herança para seus filhos.
Se uma mulher dá à luz apenas meninas ou é incapaz de gerar crianças, ela é
ostracizada e forçada a viver por conta própria. Ela não é valorizada como mulher por
seu próprio direito. Ela é valorizada apenas se ela toma conta do gado e dá filhos a seu
marido. Suas filhas não poderão cuidar dela quando ela envelhecer. Elas devem partir
quando se casarem com homens nas aldeias vizinhas, forçadas a repetir o mesmo
padrão que sua mãe sofreu quando era jovem’ (18).
Uma vez que o poder concedido às mulheres pelos homens é revogável, não se pode
dizer de nenhuma mulher que é economicamente rica, porque ela não vive numa
economia ou numa sociedade baseada em valores femininos.
Uma Proposta
Muitas feministas não querem reconhecer o quanto elas se tornaram confortáveis com o
privilégio heterossexual delas no sistema opressivo que muitas outras mulheres querem
deixar para trás. Elas continuam pedindo por privilégios para elas mesmas, enquanto as
condições para a maioria das mulheres permanecem inalteradas. Poucas feministas
propuseram a abolição do heteropatriarcado racista, porque para isso elas teriam que
confrontar sua própria cumplicidade e a dolorosa subordinação que os homens forçaram
às mulheres através de terrorismo, doutrinação, privação e mentiras. (19)
Nós podemos começar, mesmo que de forma modesta, a romper com a economia
masculina. Lésbicas Separatistas e Feministas Radicais já começaram, recusando estar
com homens ou fornecendo as necessidades, desejos e caprichos deles em nossas vidas
pessoais/políticas. Embora mulheres heterossexuais também possam contribuir com
essa ruptura, através da sabotagem, é improvável que elas coloquem elas mesmas e
outras mulheres acima das prioridades masculinas.
Lésbicas separatistas podem fazer muito mais:

Nós podemos romper com a heteroeconomia patriarcal através do sistema de
troca, onde bens e serviços podem ser trocados diretamente por outro, ao invés de dinheiro. Por exemplo, se eu preciso trocar minha janela quebrada, eu posso ter uma
amiga que é uma vidraceira especialista para repor minha janela em troca que eu arrume
o carro dela quando precise, no presente ou futuro. Nós podemos obter o que
precisamos sem o uso de dinheiro. Nós também podemos criar nosso próprio sistema
monetário através do uso de um sistema de comprovante que apenas Sapatas
trabalhando juntas reconheçam. Esses comprovantes podem ser usados para obter
necessidades básicas e serviços de Sapatas com habilidades especializadas.
Uma forma simular de ruptura é se negar a pagar impostos. A maioria do dinheiro
de pagamento de impostos vai diretamente para a máquina do lixo falo-militar para
inventar mais armas para aniquilar a vida sensível. O resto é usado para se manterem
supostos eleitos e nomeados ‘’oficiais’’ e ‘’oficiais’’ corporativos no sistema masculino
heterossexual assassino, branco e rico. Os dois mais recentes exemplos descarados são o
roubo de milhões de dólares do dinheiro da moradia federal e o roubo de bilhões de
dólares por poupanças e empréstimos executivos. O sistema de impostos é outra forma
de parasitismo masculino, drenando a energia das mulheres através de trabalho
degradante para nutrir a ganância insaciável deles e o ódio pela vida.
Há métodos ilegais que podem ser perseguidos, tais como dinheiro de contrafacção,
explorando a oferta de moeda que é regulada por computadores, interrompendo
negócios do Wall Street e outros centros financeiros onde o negócio do patriarcado e da
heteroeconomia é realizado todos os dias.
Nós podemos nos organizar em quadros de ladras para roubarmos necessidades
básicas e dinheiro para nossa vida diária. Com o aumento da habilidade, nós também
podemos ensinar outras lésbicas como roubar.
Nós podemos ir a prédios abandonados e renová-los para viver e/ou para propósitos
políticos. Lésbicas são frequentemente negadas nos espaços, até por feministas. A
renovação de prédios seria um bom modo de reivindicar o nosso tão necessário espaço e
pensar e agir para o nosso bem-estar.
Para aquelas que têm filhas meninas, nós também podemos nos recusar a mandá-
las para escolas públicas e privadas. Nós podemos criar no lugar nossas próprias
escolas Lésbicas Radicais. Alguns fundamentalistas cristãos têm resistido em mandar
seus filhos para escolas públicas, porque, na opinião deles, valores racistas
heteropatriarcais não são promovidos o suficiente. Eles atualmente querem tomar o
controle do sistema de escola pública tirando as poucas ‘’reformas’’ que a educação tem
sido permitida a fazer. Contudo, a maioria das escolas cristãs continuam a ensinar
valores racistas heteropatriarcais e promovendo os ‘’maravilhosos’’ homens brancos,
enquanto as mulheres são ignoradas ou mostradas em papeis de suporte de estereótipos.
Os agentes do sistema monetário de impostos estão executando uma proteção agitada no
sistema educacional, que vai aceitar dinheiro em termos dos agentes. Uma educação
Radical Lésbica seria baseada em valores que mantenham nossa inteligência e
integridade moral. Nós podemos aprender sobre a vida de nossas irmãs antepassadas,
lutas e realizações e sobre o que tem sido feito no presente.
Algumas feministas propuseram destruir o sistema trabalhando na economia masculina,
especialmente em um banco ou corporação grande, mas dando o dinheiro para nossas
causas. Não há nada inerentemente errado em tirar o dinheiro que ganhamos em nossos
empregos na heteroeconomia patriarcal e usar ele em causas Lésbicas. Essa é uma boa estratégia, dar de volta a energia para nós Mesmas e para as outras. Nós precisamos
encontrar todo modo possível para tirar dinheiro da economia masculina para o nosso
bem estar. Mas nós devemos entender que tal estratégia é de curto prazo e deve
contribuir para metas em longo prazo. Também deve ser entendido que isso é muito
difícil, embora não impossível, trabalhar em uma corporação, um grande negócio, ou no
governo, e simultaneamente manter a perspectiva e cólera da Sapatão Radical.
A corporação, o estado, a família heteropatriarcal, todos têm as mesmas linhas
hierárquicas e ‘’relacionais’’ de superioridade e subordinação. Ao contrário das
mulheres, especialmente Lésbicas Separatistas, que são removidas se não se
submeterem e existirem para os homens. Ao contrário das mulheres que também são
mantidas, pela estrutura corporativa masculina, como exemplo para todas as outras
mulheres do que será o destino deles se mudarem o sistema. A razão, inteligência e
cólera das mulheres são fragmentadas, dissipadas e propositalmente desviadas (20) com
o objetivo de manter o poder corporativo. A economia masculina precisa da
cumplicidade das fêmeas, a qualquer preço, incluindo para a destruição do
conhecimento e paixão das mulheres. A corporação é parte do esquema de mobilidade
fálica ascendente. E como nós vimos, as mulheres não podem alcançar mobilidade
ascendente na heteroeconomia patriarcal.
Nós devemos perceber que enquanto nós trabalharmos na economia masculina, as
fêmeas não vão se beneficiar do trabalho que os homens nos disseram para fazer. Um
passo crucial para terminar com a heteroeconomia patriarcal, e, por fim, o racismo
heteropatriarcal, tem sido proposto por Susan Cavin e deve ser ao menos considerado
por TODAS as Lésbicas Separatistas. E é parar de trabalhar para homens em qualquer
circunstância.
‘… é quando o oprimido para de trabalhar para os opressores… que as soluções
libertadoras são atualizadas. Enquanto as mulheres trabalharem na economia
patriarcal elas permanecerão oprimidas.’ (21)
Nós podemos ser muito criativas em nossos métodos de ruptura. Mas nós temos que
terminar com a heteroeconomia fálica que perpetua a estrutura de classe masculina e o
sistema de valores masculinos. Então poderemos continuar a criar a sociedade
ginocentrada que nós já começamos. Nós devemos agir agora, porque nós
reconhecemos o heteropatriarcado racista pelo que ele é; nós devemos ‘’torná-lo
inofensivo e… ver como alguém vive sem isso.’’ (22)
Lésbicas e nossa libertação são, ou deveriam ser, as considerações mais importantes em
nossas vidas. Atribuir a nós Mesmas e cada uma das outras menor valor é um perigo a
nós todas.
Notas
1. Julia Penelope, “O Mistério das Lésbicas: IL” Éticas Lésbicas 1:2 (1985), p. 53.
2. É impossível não considerar o patriarcado tão racista quando lesbofóbico. Portanto,
eu tive que escolher expandir o insight original que Julia Penelope teve quando ela
cunhou o termo heteropatriarcado, que eu encontrei primeiro no artigo dela, ‘’Estamos
reivindicando o passado DE QUEM?” Vidas Comuns, Vidas Lésbicas 13 (Autumn
1984), p. 19.3. A Inquisição na Europa tem sido referida por Starhawk como Os Tempos Ardentes.
A verdade é que desde o começo do heteropatriarcado racista, os corpos, mentes e
espíritos das mulheres têm sido imolados nas piras de morte falocráticas. A evidência da
queima de mulheres é global porque a falocracia é global.
4. bell hooks, Teoria Feminista: Da Marginalidade ao Centro (Boston: South End
Press, 1984), p. 73.
5. ibid., p. 77.
6. Embora esse insight/incito esteja ao redor do movimento Feminista há algum tempo,
isso é sempre Original. Entre aquelas que des-cobriram está Anna Lee em seu artigo,
”Uma Negra Separatista”, Visões Internas 5:3 (1981), p. 31.
7. Um termo que eu cunhei para mostrar como a exploração de todas as mulheres pelos
homens está conectada à economia que mantém a heterossexualidade como o
”estandarte” e força as mulheres a permanecerem em relações com homens.
8. Jeffner Allen, “Economias Lésbicas.” Trivia 8 (Winter 1986), p. 40.
9. Alison Jaggar, Políticas Feministas e Natureza Humana (Totowa: Rowman e
Allanheld, 1983), p. 296.
10. Eu não escrevi propositalmente ‘’Judia’’. Isso não foi feito por desrespeito às
Sapatas Separatistas Judias, mas para incluir nossas irmãs árabes que são Lésbicas
Separatistas.
11. Jaggar, Ibid.
12. Allen, p. 49.
13. Eu não estou propondo nenhuma forma de mobilidade ‘’descendente’’. Quando
mulheres estão ganhando 65 centavos para cada dólar que os homens ganham, quando
mulheres graduadas ganham MENOS que homens educados até a oitava série, quando
mulheres não podem conceder o dia para cuidarem de crianças pequenas, quando é
estimado que no ano 2000, virtualmente todos os pobres serão MULHERES E
CRIANÇAS, nós não somos móveis ‘’descendentes’’. Nós somos IMÓVEIS!
14. Um ponto pessoal/político. Depois de trabalhar em uma grande variedade de
restaurantes nos últimos anos, eu fiz esta observação: Embora muitos homens trabalhem
em restaurantes, eles geralmente não trabalham nos restaurantes sujos ou de fast-food.
Como restaurantes se tornaram mais ‘’chiques’, atendendo à clientela que eles querem
atrair, homens são vistos nesses estabelecimentos como empregados, onde o pagamento,
benefícios e oportunidades de avanço são bem melhores. As mulheres nunca são vistas
como empregadas nesses restaurantes. VOCÊ apoia esse caso de opressão comendo
nesses restaurantes?
15. Christina Thurmer-Rohr. ‘’Da Decepção à Não-Decepção: Sobre a Cumplicidade
das Mulheres’’. Trivia 12 (Spring 1988), p. 69.16. Ver a discussão de Jeffner Allen sobre o ódio aos homens no ensaio dela,
‘’Recordando: Um Dia Eu Serei Meu Próprio Começo’’. Em seu Filosofia Lésbica:
Explorações (Palo Alto: Instituto de Estudos Lésbicos, 1986), pp. 19-24.
17. Marilyn Frye, “Algumas Reflexões sobre Separatismo e Poder.” Em seu A Política
da Realidade: Ensaios sobre Teoria Feminista (Trumansburg: The Crossing Press,
1983), p 98.
18. Eu ouvi pela primeira vez sobre as vidas das mulheres Masai em um filme que eu vi
em uma aula de sociologia do gênero em Abril de 1985. O compromisso delas é o
compromisso de muitas mulheres em todo o mundo, incluindo na América, onde as
mulheres mais velhas, depois de fazerem muitos sacrifícios para criarem seus filhos e
manter a casa, frequentemente se encontram com nada para mostrar de seu trabalho
duro, especialmente se seus maridos morrem ou se divorciam delas.
Há também uma história interessante contada sobre a propriedade masculina do gado.
Na história pré-patriarcal, as mulheres eram proprietárias do gado e eram responsáveis
por tomarem todas as decisões. Mas veio uma seca durante o verão e matou todo o
gado. Quando elas estavam aptas a reabastecer o gado, os homens tiraram tudo das
mulheres, desde as posições de responsabilidade à propriedade do gado. Aqui nós temos
mais evidências que não vivemos sempre em uma sociedade patriarcal.
Ainda o fato de que essa história, atribuindo culpa às mulheres por um desastre natural,
foi contada por uma mulher mostrando a cumplicidade feminina em justificar e manter
as mentiras e controle masculino.
19. Gerda Lerner, A Criação do Patriarcado (Nova York: Oxford Univ. Press, 1986), p.
217.
20. Ver Mary Daly, Luxúria Pura: Filosofia Feminista Elementar (Boston: Beacon
Press, 1984), p. 206-7, para a discussão dela sobre as paixões e conhecimento das
mulheres e como elas foram fragmentadas e dissipadas pelo heteropatriarcado racista.
21. Susan Cavin, Origens Lésbicas (São Francisco: Ism Press, 1985), p. 153.
22Thurmer-Rohr, p. 74.
22. Thurmer-Rohr, p.. 74.

Gênero e sexualidade

13-Jan-15

Durante um “feminário” organizado pelos membros da London Feminist Network (Rede Feminista de Londres) em maio de 2010, Debbie Cameron e Joan Scanlon, editoras da revista britânica Trouble & Strife, deram uma oficina sobre o conceito de gênero e seu significado para o feminismo radical. Nós apresentaremos uma transcrição revisada de suas proposições informais, sob o título geral “A respeito do gênero”, traduzido por Annick Boisset e revisado por Martin Dufresne.

Esta transcrição “A respeito do gênero” é apresentada em duas partes:
I. O que é gênero? De onde vem a confusão que o cerca?
II. Gênero e sexualidade: convergências e divergências do feminismo radical e da teoria queer

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I. O que é gênero? De onde vem a confusão que o cerca?

Debbie Cameron: O objetivo da discussão de hoje é tentar elucidar uma parte da confusão teórica e política que cerca atualmente o conceito de gênero. Provavelmente seria útil começar por perguntar de onde vem essa confusão.

Em nossos dias, as conversas sobre o “gênero” muitas vezes encalham em problemas porque as pessoas que falam dele empregam a mesma palavra atribuindo-lhe superficialmente o mesmo significado, enquanto que, observando mais de perto, elas não falam das mesmas questões a partir da mesma abordagem. Por exemplo, quando lançamos a antologia The Troube & Strife Reader (1) na Feira do Livro Radical de Edimburgo, estudantes vieram nos expressar sua satisfação de ver esse livro publicado, mas também sua surpresa por ele tratar tão pouco da questão do gênero. No entanto, este livro não fala de outra coisa, do gênero, no sentido feminista radical da palavra, ou seja, o de relações de poder entre mulheres e homens, de maneira que a nossos olhos essa reação foi de fato surpreendente. Joan simplesmente não a compreendeu, de imediato. De minha parte, eu entendi sem dúvida o que elas queriam dizer porque eu ainda sou universitária, e na universidade se ouve muito a palavra “gênero” utilizada desse jeito.

Eis a chave do enigma. Durante os anos 90, *s teóric*s e ativistas queer elaboraram uma nova maneira de falar de gênero. Sua abordagem apresentava certamente pontos em comum com o vocabulário feminista mais estabelecido, mas tinha um enfoque diferente; uma teoria diferente a sustentava. No fundo se tratava da teoria pós-modernista de identidade, associada à filósofa Judith Butler, apesar de eu duvidar de que a própria Butler diria que as feministas não tinham análise crítica do gênero, ou que elas não faziam a análise certa, na medida em que suas ideias sobre gênero derivavam de “essencialismo” e não da “construção social” da identidade.

O que é gênero?

a. “Antigo” conceito de gênero
Trata-se de um sistema de relações sociais/de poder estruturado por uma divisão binária entre “os homens” e “as mulheres”. A divisão em categorias se faz habitualmente baseada no sexo biológico. Mas o gênero tal como o conhecemos é uma realidade social e não biológica (por exemplo, a masculinidade e a feminilidade têm definições diferentes em lugares diferentes e épocas diferentes).

b. “Novo” conceito de gênero
Trata-se de um aspecto de identidade pessoal/social, habitualmente atribuído no nascimento baseado no sexo biológico (mas essa correspondência “natural” é uma ilusão – assim como a ideia de que devem existir dois gêneros porque existem dois sexos.)

Por que esse sistema constitui uma opressão?

a. “Antigo” conceito de gênero
Porque ele é fundado sobre a subordinação de um gênero (as mulheres) pelo outro (os homens).

b. “Novo” conceito de gênero
Porque é um sistema binário rígido. Ele obriga cada pessoa a se identificar ou como um homem, ou como uma mulher (o que quer dizer que não nem um nem outro, não os dois ao mesmo tempo, não algum lugar entre os dois, e não uma coisa completamente outra) e pune quem quer que não se conforme a essa regra. (Isso oprime os homens e as mulheres, e sobretudo as pessoas que não se identificam completamente com o modelo prescrito por seu gênero.)

O que seria uma política radical de gênero?

a. “Antigo” conceito de gênero
O feminismo: as mulheres se mobilizam para reverter o poder masculino e assim o sistema de gênero em sua totalidade. (Para as feministas radicais, o número ideal de gêneros seria… nenhum.)

b. “Novo” conceito de gênero
“O queer”: mulheres e homens rejeitam o sistema binário, se identificam como “foras-da-lei do gênero” (o que quer dizer, como queer ou trans) e exigem o reconhecimento de uma gama de identidades de gênero. (Sob essa perspectiva, o número ideal de gêneros seria… infinito?)

Existem ao mesmo tempo semelhanças e diferenças entre essas duas versões. Em ambas, o gênero é relacionado ao sexo, mas não é a mesma coisa; em ambas, o gênero tal como o conhecemos é um sistema binário (existem, basicamente, dois gêneros); e as duas abordagens sem dúvida concordariam que o gênero é questão de poder E de identidade; mas elas diferem na importância atribuída a um fator e ao outro. Essas duas versões diferem igualmente porque os adeptos da versão queer não pensam em termos de opressão das mulheres pelos homens; eles e elas consideram que as normas de gênero são mais opressivas que o poder hierarquizado, e eles e elas querem mais gêneros em vez de menos ou absolutamente nenhum.

Para melhor compreender esses conceitos e decidir o que você acha disso, é interessante conhecer um pouco de história, da história das ideias feministas radicais e sexuais radicais. Há três questões principais que acreditamos útil que se explorem de forma mais detalhada:

1. É verdade que o feminismo radical é ou era essencialista em sua concepção de gênero?
2. Qual é e era a relação entre a política do gênero e a sexualidade?
3. Que têm em comum o feminismo radical e a política queer (também chamada gender queer), quais são suas diferenças de base e quais são seus respectivos objetivos políticos?

O feminismo radical é/era essencialista?

Comecemos por concordar com uma coisa: existem evidentemente variedades essencialistas do feminismo, correntes de pensamento para as quais, por exemplo, ao corpo das mulheres se veem atribuídos poderes místicos, ou os homens são vistos como naturalmente maus; certas formas que se identificam com essas ideias podem se reivindicar ou se pregar o rótulo de “feminista radical”. Mas se se considera ao contrário o feminismo radical como uma tradição política que produziu, entre outros, um corpus de textos feministas que chegaram a ser considerados “clássicos”, constata-se a que ponto sua concepção de gênero sempre foi não essencialista – o que pode surpreender, tendo em vista a insistência com a qual se acusam as feministas radicais de serem essencialistas.

A fim de ilustrar esse ponto, juntei algumas citações de mulheres geralmente reconhecidas como os arquétipos de feministas radicais, entre elas Simone de Beauvoir, que é frequentemente considerada a fundadora do feminismo moderno da “segunda onda”, com seu livro O segundo sexo (publicado pela primeira vez em 1949, vinte anos antes da eclosão dessa onda). Beauvoir não tinha nada de essencialista e, apesar de ela não utilizar um termo equivalente a “gênero” (uma palavra que continua não sendo de uso corriqueiro em francês), muitos de seus comentários são centrados na distinção entre o aspecto biológico e o aspecto social da feminilidade. Uma de minhas frases favoritas de O segundo sexo, por causa de seu lado gelidamente sarcástico, é a seguinte: “Todo ser humano fêmea não é portanto necessariamente uma mulher; é preciso que participe dessa realidade misteriosa e ameaçada que é a feminilidade”.

Uma outra feminista do início da “segunda onda”, Shulamith Firestone, autora de A dialética do sexo (1970), foi renitentemente taxada de essencialismo (por haver expressado a hipótese de que a subordinação das mulheres tinha sem dúvida suas origens em suas funções reprodutivas e nutridoras). Mas na realidade, Firestone não via nem como natural nem como inevitável a existência de uma hierarquia social erigida sobre a diferença dos sexos. Ao contrário, ela escreveu em A dialética do sexo:

“E exatamente como o objetivo final da revolução socialista não era a eliminação do privilégio da economia de classe, mas o da diferenciação entre as próprias classes, assim o objetivo final da revolução feminista deve ser não somente a eliminação do privilégio masculino, mas a própria distinção sexual: as diferenças genitais entre humanos não contarão culturalmente.”

Pouco tempo depois em escritos da feminista radical materialista Christine Delphy, o gênero não tem sentido teórico que não o efeito de relações hierárquicas de poder; não é uma diferença pré-existente sobre a qual essas relações de poder serão em seguida sobrepostas. A posição de Delphy pode parecer extrema aos olhos das feministas menos radicais, mas independente do que nós achemos, ela não poderia ser menos essencialista. Como ela mesma disse:

“Quais serão os valores, os tratos ou a personalidade dos indivíduos, a cultura de uma sociedade não-hierárquica, nós não sabemos e temos dificuldade em imaginar. (…) talvez nós só possamos realmente pensar o gênero no dia em que pudermos imaginar o não-gênero.” (2)

As autoras que acabo de citar são todas mulheres que “podem imaginar o não-gênero”… e que o fizeram. Essa vontade de pensar seriamente no que, para a maioria das pessoas, inclusive feministas mesmo, é impensável – a saber que um mundo verdadeiramente feminista seria um mundo não somente sem desigualdades de gênero, mas também sem distinções de gênero – essa vontade, nos dirão, é uma das marcas do feminismo radical, uma das maneiras pelas quais esse feminismo se distingue como “radical”.

Um outro elemento que distingue o feminismo radical é a maneira como relaciona o gênero à sexualidade, e o gênero e a sexualidade ao poder. Os escritos de Catharine A. MacKinnon insistem fortemente nessa relação, como a passagem seguinte de seu livro O feminismo irredutível (2005):

“Na teoria feminista do poder, a sexualidade é marcada pelo gênero, como também o gênero é sexualizado. Ou seja, a teoria feminista analisa como a erotização da dominação e da submissão cria o gênero, a mulher e o homem, sob as formas sociais que conhecemos. A diferença dos sexos e a dinâmica de dominação-submissão se definem portanto mutuamente. O erótico é o que define o sexo como desigualdade, portanto como diferença significativa. Está aí, para mim, a significação social da sexualidade e a contribuição específica do feminismo na tomada em consideração da desigualdade de gênero.”

Isto mostra que certas feministas radicais mais conhecidas adotaram uma concepção não essencialista da sexualidade como também do gênero. De fato, uma das posturas mais radicalmente não essencialistas ou anti-essencialistas que conhecemos – uma concepção tão radical quanto a de não importa que teóric* queer a seu modo de rejeitar a ideia de identidades fixas e finitas – vem da feminista radical Susanne Kappeler, em seu livro Pornografia da representação (1986):

“Numa perspectiva política, a sexualidade, como a linguagem, poderia entrar na categoria de relações intersubjetivas: uma questão de troca e de comunicação. As relações sexuais – o diálogo entre dois sujeitos – determinariam, articulariam uma sexualidade dos sujeitos, do mesmo modo como as interações do discurso geram papéis de comunicação entre as interlocutoras. A sexualidade seria então menos uma questão identitária, de um papel fixo na ausência de uma práxis, que uma possibilidade, dotada de um potencial de diversidade e de intercambialidade, dependente de maneira crucial de um/a interlocutor/a, de um outro sujeito, e codeterminado por ele.” (Tradução nossa)

Explicaremos então por que pensamos que as ideias dessas feministas radicais a respeito de gênero, da sexualidade, da identidade e do poder lançam de fato um desafio muito mais radical ao status quo que as ideias de análises queer.

II. Gênero e sexualidade: convergências e divergências do feminismo radical e da teoria queer

Joan Scanlon: Como disse Debbie, eu fiquei completamente atônita quando as duas jovens que encontrei em Edimburgo me perguntaram por que The Trouble & Strife Reader (2009) não falava mais sobre gênero. Eu liguei para Su Kappeler (que acabaram de nos citar), e ela me disse: “Você sabe, Joan, é como o que Roland Barthes escreveu em algum lugar: Se você tem um guia de viagem para a Itália, você não vai encontrar a palavra Itália no índice, você vai encontrar Milão, Nápoles ou o Vaticano…” Repensei sobre isso e entendi que, apesar da coerência de seu comentário, tinha outra coisa aí por trás: era como se o mapa da Itália tivesse desaparecido completamente – um mapa bastante útil para situar reciprocamente Milão, Nápoles e o Vaticano – e como se tivessem substituído a realidade geográfica, política e econômica da Itália por um espaço virtual dentro do qual a Itália pudesse muito bem ser um baile de máscaras, uma bandeira tricolor, uma sorveteria, ou não importa que combinação de “significados flutuantes”. E assim, voltando ao conceito de gênero, eu entendi que tínhamos que reconstruir esse mapa, e que precisávamos olhar a questão em modo histórico para encontrar um sentido nesse deslizamento de significação.

Claro que os mapas evoluem, como aconteceu com as fronteiras, mas não podemos ir muito longe sem eles. Temos então que analisar por que as feministas adotaram o termo “gênero” para descrever uma realidade material – a imposição sistemática do poder masculino – e para fazer dele uma ferramenta de mudança política. Vou começar por alguma definições, pois falarei brevemente da história da sexualidade, da relação entre o gênero e a sexualidade e da evolução dessa relação entre duas construções desde o começo do século passado. Darei um breve panorama dos pontos comuns e das diferenças chave entre o feminismo e as análises queer.

Definições: o feminismo, o gênero, a sexualidade

No fim dos anos 80, quando Liz Kelly e eu estávamos escrevendo algo juntas, decidimos que diante da proliferação dos “feminismos”, nós devíamos afirmar que o termo “feminismo” era vazio de significado se ele significava simplesmente o que quer que quisessem lhe dar como sentido. Ou seja: não podemos ter plural se não temos um singular. Então definimos o feminismo simplesmente como “um reconhecimento do fato de que as mulheres são oprimidas e como um engajamento em mudar essa realidade”. Para além dessa definição, podemos ter todo tipo de diferença de opinião quanto ao porquê da opressão das mulheres e todo tipo de ponto de vista diferente quanto às estratégias para transformar essa situação.

Para o décimo aniversário da revista Trouble & Strife, em 1993, nós pedimos então a várias mulheres que definissem o feminismo radical. Suas definições tiveram todas o seguinte ponto em comum: colocar como elemento central que o gênero é um sistema de opressão e que os homens e as mulheres são dois grupos socialmente construídos, que existem precisamente em razão da relação de poder desigual entre eles. Além disso, todas essas definições afirmam que o feminismo radical é radical porque põe em questão todas as relações de poder, aí inclusas as formas extremas como a violência masculina e a indústria do sexo (que sempre foi muito controversa dentro do movimento das mulheres e objeto de uma luta muito impopular a se levar). Em vez de se ater a ajustes periféricos à questão do gênero, o feminismo radical se concentra no problema estrutural que a sustenta.

Isto quer dizer que definir o gênero parece ser uma passagem obrigatória para compreender a proliferação de sentidos que se seguiu a seu uso ter se tornado plural. O termo “gênero” , tal como as feministas radicais sempre o compreenderam, descreve a opressão sistemática das mulheres, enquanto grupo subordinado, em benefício do grupo dominante: os homens. Não é um conceito abstrato – ele descreve as circunstâncias materiais da opressão, inclusive o poder masculino embutido nas instituições e nas relações pessoais: por exemplo, a divisão desigual do trabalho, o sistema judiciário penal, a maternidade, a família, a violência sexual… e assim por diante.

Gostaria de enfatizar aqui que muito poucas feministas sustentariam que o gênero não é socialmente construído. Acredito que se acusam o feminismo radical de essencialismo biológico, é porque ele teve um papel de fato central na campanha conduzida contra a violência masculina. Daí o fato de nos acusarem, por uma razão ou por outra, de crer que todos os homens são violentos por natureza. Nunca compreendi esse ilogismo: se você se engaja com uma política de mudança, seria definitivamente absurdo acreditar que o que você deseja mudar é inato ou imutável.

De fato, considerar que o gênero, dentro do sistema patriarcal, emana do sexo biológico, tem por efeito “essencializar” ainda mais a sexualidade, e ela passa a ser percebida como irradiada de nossa própria natureza, de desejos e sentimentos que escapam inteiramente ao nosso controle, mesmo que nossa conduta sexual pode ser regulada pelos códigos morais e sociais. Então, para concluir com algumas definições, vou tomar de Catharine A. MacKinnon sua definição da sexualidade como “um processo social que cria, organiza, orienta e expressa o desejo”. Isso indicando claramente que o feminismo radical interpreta a sexualidade como sendo socialmente construída, não me prolongarei sobre este assunto pelo momento, na medida em que espero que minhas próximas proposições esclareçam tudo isso.

Uma breve história da sexualidade

É apenas a partir de 1870, mais ou menos, que o discurso médico, científico e jurídico começou a classificar e categorizar as pessoas por tipos sexuais – e que isso criou a ideia, hoje reconhecida pel*s historiador*s, de uma identidade especificamente homossexual ou lésbica. Antes do fim do século 19, concebíamos a conduta sexual em termos de pecado e de crime, portanto em termos de atos sexuais mais que de identidades sexuais. Em Royaume-Uni, a homossexualidade masculina foi penalizada até 1967, e o lesbianismo, sem jamais ter sido ilegal, se viu reprimido por outras vias: até a Segunda Guerra mundial, não era uma opção economicamente possível para mais que uma muito pequena minoria de mulheres privilegiadas e financeiramente independentes. A sexualidade das mulheres sempre foi controlada pela coerção, pela dependência econômica dos homens, e em muito grande parte, pela ideologia. O ensaio de Adrienne Rich, Heterossexualidade compulsória e existência lésbica (1979) detalha a amplitude e a inventividade desses meios de controle.

O gênero é um dos meios mais eficazes de controlar a sexualidade: dada a constante reafirmação do sistema binário de gênero como aparelho de controle social, se você sai do papel de gênero que lhe foi atribuído, você fica suscetível a ser estigmatizad* como homossexual. Ou seja, se você renuncia às gratificações da feminilidade, por exemplo se tornando encanadora, ou não depilando as pernas, ou dizendo a uma homem que a assedia que vá se foder, vão provavelmente acusá-la de ser lésbica. (Um homem que não se conforma às convenções da masculinidade, e que é visto empurrando um carrinho de bebê, segurando uma rosa, ou que não gosta de futebol será também provavelmente tratado por gay.)

Da mesma maneira, se você é lésbica, espera-se que você se comporte como um homem, que demonstre um desejo masculino – e as mulheres heterossexuais creem sem dúvida que você se interessa por elas, e são encorajadas a evitar os espaços reservados a mulheres, com medo de que pulem em cima delas. (Isto é talvez menos real atualmente, mas o problema aparecia sempre por ocasião de eventos “somente para mulheres” no início de meu engajamento feminista, no sentido de que as heterossexuais acreditavam que “reservado para mulheres” significava “para lésbicas” e tomavam por pressuposto que esses lugares e eventos seriam sexualizados.) De todo modo, isto é em parte o que apontava MacKinnon quando dizia que “o gênero é sexualizado e a sexualidade é generizada” – ou seja, que o diferencial de poder entre os homens e as mulheres é erotizado, e nós não reconheceríamos alguma coisa como sexual se não fosse questão de poder – de maneira que tudo isso que é percebido como sexual, como a identidade gay e lésbica, é lido através desse prisma, e é assim generizado.

Os primeiros sexólogos tiveram um papel importante em criar e consolidar o mito segundo o qual as lésbicas eram fundamentalmente mulheres masculinizadas e segundo o qual os homens homossexuais eram por natureza femininos. É igualmente em suas obras – por exemplo, a de Richard von Krafft Ebing – que se encontra antes de tudo a noção de um homem nascido no corpo de uma mulher, e vice-versa. Embora os primeiros sexólogos tenham desmitificado muitas outras crenças a respeito das condutas sexuais e que tenham contribuído com a contestação à criminalização da homossexualidade apresentando-a como “natural” e “inata”, eles confirmaram, assim, a ideia segundo a qual a sexualidade era uma parte essencial da natureza humana, que era ou um perigo que se precisaria controlar medicamente, ou uma força positiva que se precisaria liberar das amarras repressivas da civilização. Esses sexólogos estavam em frequente desacordo e mergulhados em contradições, mas coletivamente eles acreditaram e confirmaram o mito segundo o qual todos nós temos uma “verdadeira identidade sexual”, que a sexologia pode ajudar a revelar. Alguns de seus escritos parecem hoje uma completa rede de absurdos, mas não seríamos capazes de subestimar a importância desses textos para a literatura e para o imaginário popular de sua época.

Para dar um exemplo: Richard von Krafft Ebing (cujos estudos de caso serviram de modelos aos personagens de Radclyffe Hall em seu romance lésbico O poço de solidão) sustentou que as personagens homossexuais não eram nem doentes mentais, nem moralmente depravadas – elas tinham apenas sofrido uma inversão congênita do cérebro durante a gestação do embrião. Além do mais, ele era convencido de que se podiam encontrar as marcas de masculinidade nas “invertidas” do sexo feminino, confirmando assim a causa genética de seu estado. Havelock Ellis, que prefaciou O poço de solidão, compartilhava essa posição e iria até sustentar que se podia fazer uma distinção entre as verdadeiras “invertidas”, de natureza permanente e inata, e as mulheres atraídas pelas “invertidas”. As segundas, apesar de mais femininas, não eram “muito bem adaptadas à maternidade”, e eram por consequência pouco dispostas a uma sexualidade heterossexual procriadora.

Uma posição mais clara foi a de Edward Carpenter, reformador socialista e filósofo utopista: Carpenter, que utilizava a palavra uraniano (um adjetivo que significa “celeste”) para designar as pessoas atraídas por aquelas de seu próprio sexo, tinha uma perspectiva mais mística e lírica sobre toda essa questão. (Sempre se zomba dele porque uma espécie de culto se formou em seu redor; não contente em fabricar suas próprias sandálias, ele fabricava também todas as de sua comunidade, que vivia numa aldeia perto de Sheffield, na Inglaterra.) Mas sob muitos aspectos, Carpenter foi o mais radical de todos. Ele era muito mais interessado em características de temperamento e de sensibilidade das pessoas que em seus sinais (biológicos) aparentes de desvio em relação às convenções da masculinidade e da feminilidade. Ele acreditava também que as pessoas que pertenciam ao “sexo intermediário” poderiam um dia servir de passarelas entre as diferentes classes e raças e agir como intérpretes entre os homens e as mulheres, pelo fato de partilhar características dos dois grupos. *s economistas e *s polític*s do movimento rejeitaram as visões de Carpenter como um bocado de disparates sentimentais mas é ele, de tod*s *s sexólog*s, que chega o mais perto de afirmar que é o gênero em si que é o problema, e que os pólos extremos do sistema binário de gênero são prejudiciais à sociedade ideal que ele imagina.

Não vou passar em revista o conjunto de sexólog*s do século 20 – sem dúvida vocês estão a par dos trabalhos de laboratório de Masters e Johnson, e dos excelentes estudos por sondagem sobre as condutas sexuais e a prevalência do desejo homossexual dentro do total da população heterossexual americana. A principal característica comum a ess*s sexólog*s da segunda onda é que fizeram do sexo um assunto de estudo científico, e que muito poucos entre el*s estudaram o gênero em si mesmo, ou o contexto social e o significado da sexualidade.

A influência do movimento das mulheres e do movimento gay

A relação do gênero com a sexualidade mudou no fim dos anos 60 e durante os anos 70 em grande parte por causa da emergência do movimento de mulheres e do movimento de liberação gay. Com a ascensão do feminismo e com a publicação de numerosos textos-chave como A política do macho, de Kate Millett (1970), não se considerava mais o lesbianismo como uma subcategoria da homossexualidade masculina, e não mais somente como uma identidade sexual, mas como uma identidade política, dentro de um contexto de relações de poder generizadas. Em outras palavras, tornou-se possível ver que ser lésbica tinha relação com o fato de se ser uma mulher, de por em questão a heterossexualidade como instituição, e de contestar o poder dentro de relações íntimas. Eu considero uma imensa sorte de minha parte ter conhecido o feminismo no fim dos anos 70 (no início dos meus vinte anos), senão, se eu tivesse nascido mais cedo, teriam me convencido completamente de que eu era uma “invertida” ou, deus me livre!, uma “uraniana”, ou qualquer outra identidade. O movimento das mulheres do fim dos anos 60 e dos anos 70 ofereceu a muitas mulheres uma oportunidade sem precedentes de dar sentido à sua vivência de mulheres, de teorizá-la, e de agir para transformá-la.

Muitas vezes esquecemos que os teóricos do movimento de liberação gay tinham, no início desse movimento, muito em comum com o feminismo: a desconstrução da masculinidade, um requestionamento da família nuclear, a contestação da misoginia e a busca de uma sexualidade igualitária. Mesmo as feministas tendo continuado a trabalhar muito em colaboração com os homens gay – face a uma opressão comum, a heterossexualidade institucionalizada – nós também constatamos que a ênfase que dávamos à construção social dispensava a concepção dominante no seio do movimento gay, segundo a qual a sexualidade era inata.

Por exemplo, no fim dos anos 80 na Grã-Bretanha, durante a campanha lançada contra a cláusula 28 do Decreto do governo local (que interditava às autoridades locais a “promoção” nas escolas da homossexualidade e de suas “falsas” famílias, quer dizer, as homoparentais), o argumento principal utilizado pelo movimento gay era que não se pode chamar qualquer um de gay, que os gays constituíam apenas 10% da população, que se nascia gay, e que esse grupo não representava então qualquer ameaça à ordem estabelecida. E nós, é claro, como feministas, sustentamos o contrário, nós dissemos que se podia de fato mudar a sexualidade, e que nós tentávamos exatamente ser uma ameaça à ordem estabelecida.

A epidemia de AIDS politizou muitos homens gays em torno da sexualidade, numa defesa de sua liberdade sexual individual contra a política repressiva da extrema-direita. Mas clamando mais uma vez pela tolerância por parte do mundo heterossexual, e exigindo acesso aos privilégios dos heterossexuais (parcerias civis, etc.) – o que se tornou uma estratégia eficaz para o sucesso desses objetivos, precisamente porque não pareciam ameaçar a ordem estabelecida – esse movimento abriu caminho a uma política que não apenas colocava em questão as condutas heteronormativas, mas também procurava criar um espaço para todas as vítimas do gênero expulsas do sistema binário de gênero e de uma concepção binária paralela da sexualidade. Pode-se responder a isso que o feminismo parecia precisamente abrir a via a uma tal política e a um tal espaço; eis por que é importante debruçar-nos sobre as diferenças entre o feminismo e o movimento queer.

O que o feminismo radical tem em comum com o movimento queer:

– Uma inteligência do fato de que o gênero e a sexualidade são construídos socialmente.

– Um reconhecimento do fato de que papéis binários de gênero são opressivos.

– Uma inteligência do fato de que papéis de gênero são produzidos para uma performance e são confirmados por sua constante encenação.

– Um engajamento com o questionamento dos postulados e práticas heteronormativos.

As diferenças entre o feminismo radical e o movimento queer são as seguintes.

O feminismo radical

O feminismo radical é uma análise materialista que defende que o gênero não é produzido apenas pelo discurso e pela performance, mas que é um sistema dentro do qual um gênero (o masculino) possui poder econômico e político e o outro (o feminino) não o possui – e um sistema onde o grupo dominante tem interesse em preservar essa situação.

O feminismo radical inclui um reconhecimento do fato de que não se pode produzir (ou questionar) o sistema de gênero somente pelo discurso ou pela performance individual – como adotar certas vestimentas, uma certa linguagem, ou mesmo por modificações anatômicas. Fora de certos contextos limitados, a cultura dominante interpretará sempre esses gestos à luz dos códigos sociais dominantes, e buscará classificar a você dentro da categoria homem ou mulher. (Ou seja, no metrô, no supermercado ou no trabalho, estes gestos individuais ou enunciados performáticos serão ininteligíveis e de fato ineficazes como contestação do sistema de gênero.)

Judith Butler sustenta que o feminismo, por afirmar que as mulheres constituem um grupo detentor de características e interesses comuns, reforçou a concepção binária do gênero, onde os gêneros masculino e feminino são construções sobre os corpos masculinos e femininos.

As feministas dizem com efeito que as mulheres têm um interesse político comum (em vez de simplesmente apresentarem características comuns). Elas dizem que as mulheres sofrem uma opressão comum (que elas vivem de diferentes maneiras ligadas a outras formas de relações de poder, como a raça e a classe), e que o corpo das mulheres é a sede de boa parte dessa opressão. Mas isso não implica de forma alguma que a categoria mulheres seja uma categoria indiferenciada. É simplesmente afirmar que, por as fêmeas serem oprimidas por serem fêmeas, elas precisam de uma identidade política comum, a fim de se mobilizarem eficazmente em resistência a essa opressão.

O feminismo radical tem por projeto transformar o sistema de gênero e contestar a opressão sob todas as suas formas. Assim nós não esperamos nada da ideia de ser fora-da-lei, ideia que deriva de uma concepção romântica da opressão. Por outro lado, se sentir oprimid* não é a mesma coisa que ser oprimid*. Para celebrar sua identidade como fora-da-lei, nós devemos arrancar do sistema alguma coisa que faça de nós foras-da-lei.

O queer

O movimento queer me parece federar os párias mais extremos do sistema de gênero e inventar um guarda-chuva que abrigue, de um lado, as pessoas que são as fora-da-lei involuntárias (vindas geralmente das categorias mais pobres e mais alienadas da sociedade, sem cobertura de proteção contra os preconceitos sociais, e portanto marginalizadas sem o tenham escolhido) e, por outro, as pessoas para quem brincar de ser fora-da-lei é um exercício intelectual de privilegiad*s em vez de uma dura realidade vivida.

O queer reagrupa, segundo sua própria definição, tudo o que se desvia do normal, do legítimo, do dominante. Portanto, o queer se define “não por uma positividade, mas por um posicionamento em relação ao normativo” (3). Daí segue que o movimento queer não tem objetivos políticos particulares, à parte de desafiar os discursos normativos dominantes; e se esses discursos vierem a mudar, os movimentos queer devem então mudar de posição, se opondo ao que quer que venha a se tornar normativo. Eu não vejo portanto muito bem quais são seus objetivos políticos particulares.

O queer abarca um largo rol de identidades e práticas sexuais não normativas, das quais algumas são heterossexuais: “O sadismo e o masoquismo, a prostituição, a inversão sexual, o transgênero, a bissexualidade, a assexualidade e a interesexualidade aparecem aos olhos d*s teóric*s queer como oportunidades de analisar as diferenças de classes, de raças e de etnicidade, e como oportunidade de reconfigurar as concepções de prazer e de desejo.” (4). Por exemplo, Pat(rick) Califia elogia o modo pelo qual o sadomasoquismo encoraja a fluidez e questiona o aspecto natural das dicotomias binárias dentro da sociedade:

“A dinâmica entre uma top e uma bottom é muito diferente da dinâmica entre um homem e uma mulher, entre brancos e negros, ou entre burgueses e operários. Esse sistema é injusto por que atribui privilégios em função da raça, do gênero e da classe social. Durante um encontro SM, os papéis são atribuídos e encenados de diversas maneiras. Se você não gosta de ser uma top ou uma bottom, passe para o papel oposto. Tente portanto fazer isso com seu sexo biológico, sua raça ou seu status sócio-econômico.” (5)

Esta opinião posiciona ess*s teóric*s do queer em conflito com a concepção feminista radical segundo a qual o sadomasoquismo, a prostituição e a pornografia são todas elas práticas opressivas.

O feminismo radical sustenta que todas as diferenças de poder são sexualizadas, inclusive aquelas construídas através da raça e da etnicidade, da classe e da deficiência física, e que a pornografia e a indústria do sexo em geral são de suas manifestações mais claras e mais perniciosas. A diferença de poder erotizada é a essência mesma do pornô, e ela é posta em cena sobre corpos de verdade e não apenas na imaginação do consumidor. Além disso, importa elucidar do prazer de quem e do desejo de quem estamos falando, dentro do contexto de uma indústria baseada na exploração e na violência sexual. O SM foi objeto de muitos debates acalorados no seio do feminismo dos anos 1980, e ainda nesse tempo, o feminismo radical não viu nada de novo ou de radical no fato de recriar dentro de relações não heteronormativas a dinâmica de dominação-subordinação já predominante na heterossexualidade.

Todos esses fenômenos, aclamados como anti-heteronormativos pelo movimento queer, são já aclamados pelo patriarcado, e portanto nada têm de revolucionário. As feministas radicais procuram não somente questionar as estruturas do patriarcado, mas desmantelá-las, já que o desafio oferecido pelo queer à cultura normativa é uma provocação, sem objetivo político de desmantelar a norma, da qual depende, por sua própria definição, para existir enquanto postura de oposição. Parece, assim, que o queer não procura se liberar do sistema de diferença de gênero, mas simplesmente tomar liberdades com ele.

Se queremos transformar o aparelho social que cria a diferença de gênero que conhecemos, devemos levar em conta as estruturas subjacentes que engendram e sustentam essa diferença – e devemos procurar erradicar o próprio gênero.

Sem o gênero, sem diferencial de poder, a sexualidade poderia ser simplesmente a expressão de desejo entre sujeitos iguais. (Ver a citação de Su Kappeler.)

No começo dessa conversa, Debbie citou Shulamith Firestone, e me parece então realmente apropriado concluir parafraseando um argumento chave de sua A dialética do sexo, argumento que resume bem a visão feminista radical sobre o gênero como um sistema que cria e mantém a desigualdade. A tarefa política do feminismo é erradicar o gênero.

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(tradução: C.C.)

Silvia Federici: Mujeres, cuerpo y acumulación originária

13-Jan-15

[em tradução] A REVOLUÇÃO SEXUAL LÉSBICA – Sheila Jeffreys

13-Jan-15
(texto ainda incompleto)

CAPÍTULO II

A REVOLUÇÃO SEXUAL LÉSBICA

Nos anos 80 se produziu uma revolução sexual lésbica. Os historiadores tradicionais da sexualidade da corrente dominante masculina valoram muito positivamente as duas revoluções ocorridas, a seu entender, nas décadas dos 20 e dos 80, e que levaram à liberação e o prazer às mulheres. Em meus dois livros anteriores quis demonstrar que estas revoluções são na verdade ajustes de forças da supremacia masculina.

O poder masculino ficou re-afirmado mediante o recrutamento das mulheres para o coito e a orquestração de sua resposta sexual ante a conotação erótica de sua própria subordinação. Estas revoluções ou ajustes das técnicas de controle do poder da Supremacia Masculina se realizaram em nome da ciência e da saúde utilizando, não obstante, a retórica do liberalismo.

Estas revoluções contribuíram à legitimação de una pujante indústria pornográfica, à criação de uma indústria de terapias sexuais e de manuais de consulta sexual e à instalação de sex shops e reuniões de sexo ao estilo tupperware nas quais se vendia o instrumental de sexo como os dildos e os trajes de couro, goma e de vinil. Durante todo esse tempo as lésbicas conseguiam de alguma maneira amar-se e fazer amor sem toda essa parafernália, enquanto que no mundo heterossexual o sexo sem livros de autoajuda, sem pornografia e sem o equipamento adequado se tornava praticamente impossível. O sexo lésbico era inovador, imaginativo, se podia aprender por conta própria, era de baixa tecnologia, não custava dinheiro nem proporcionava lucros aos industriais do sexo. Nos anos 80, a situação mudou e deu lugar a uma indústria do sexo lésbico. Para que esta indústria fosse lucrativa, foi necessário transformar a sexualidade lésbica para adaptá-la ao modelo da coisificação, que requer a criação de consumidoras de sexo lésbico – consumidoras não apenas de produtos mecânicos, senão ademais de outras mulheres, através da pornografia e da prostituição. A sexualidade lésbica começava por fim a captar a atenção de empresários, terapeutas sexuais e pornógrafos.

A consequência desta dramática acometida elaborada com o fim de reconstruir a sexualidade lésbica, se produziu a incorporação parcial das lésbicas às estruturas políticas de controle do Heteropatriarcado. As lésbicas que inventavam sua própria sexualidade não encaixavam na engrenagem devido a sua visão de uma

sexualidade alternativa não centrada em pênis, metas, coisificação, domínio e submissão. Não estavam sujeitas ao poderoso controle sexual da Supremacia Masculina que determinava a configuração do prazer sexual. Não sempre se dedicavam a conotar eroticamente sua própria subordinação, constituindo assim um perigo potencial para o sistema sexual do Heteropatriarcado. A revolução sexual lésbica aprisionou às lésbicas submetendo-as sexualmente também a elas.
Porém, a interpretação da revolução sexual lésbica que fazem os meios gays mistos e a literatura dos estudos acadêmicos lébicos-e-gays, é distinta . O novo e reluzente despliegue de posibilidades…[parece que falta uma parte, complementar depois]
Utilizo o termo “lésbico-e-gay” para assinalar aqueles teóricos que não distinguem em sua teoria entre lésbicas e homens gays. Eluden as descobertas feministas a respeito das distintas classes sexuais de mulheres e homens, homogenizando a experiência de ambas com o fim de criar uma teoria gay universal onde a condição específica das lésbicas fica oculta. Este enfoque é próprio sobretudo dos teóricos e teóricas pós-modernas a cujo trabalho me refiro no capítulo “Retorno ao gênero”. Dildos, pornografia, clubes de sexo, prostitutas – aparece como fonte de uma livre escolha, de diversão prazer e liberdade individual, como a encarnação daquilo pelo que sempre lutaram as lésbicas: o objetivo mesmo da revolução lésbica. A luta política das lésbicas se desvia a uma falsa liberação que, a meu ver, resultará tão enganosa para as lésbicas como o foi a liberdade sexual dos 60 e 70 para as mulheres heterossexuais. Esta última elevou a quantidade de coitos e, porém, as mulheres não alcançaram a liberdade. A revolução sexual lésbica para lograr seu êxito depende da aniquilação de toda discussão política sobre a construção do prazer sexual e seu lugar dentro da revolução lésbica e feminista. Depende do acordo sobre a separação entre o público e o privado a respeito do prazer sexual: o

que nos excita não tem relevância para a luta política. Depende da linguagem do liberalismo sexual. Quando se trata de sexo, muitas lésbicas que se consideram progressistas, feministas, socialistas y antirracistas, abandonam sua postura política e adotam um liberalismo profundo.

Sempre que quis analisar a terapia sexual ou o sadomasoquismo desde uma postura política fui tachada de moralista ou sentenciosa. A crítica política se considerou tabu. Gostaria de analisar este tabu e sua origem, em um intento de voltar a introduzir o prazer sexual e a prática sexual na discussão política. A prática sexual é o único caso em que a análise política é normalmente tachada de moralista; não ocorre com outras questões. Porém, me atreveria a dizer que todos os juízos políticos costumam ter uma base moral. A raiva contra o que se vive como opressão nasce justamente de um sentido do bem e do mal. Agora, o debate sobre a moral não está na moda na sociedade capitalista e menos ainda esteve nos 80 e nos 90, quando o mercado decreta a irrelevância deste debate. Porém, nada mais misterioso que este sentido de bem e do mal subjaz a todos os juízos políticos. As mesmas pessoas que chamam de moralista a análise política da prática sexual emitem juízos morais em outros campos da vida. Normalmente não se chamaria moralista a quem luta por conseguir a desigualdade econômica. A sexualidade é o único terreno que deve estar livre de todo juízo moral ou político. Quero analisar o conceito feminista de sexo como questão política, começando pelas áreas menos conflituosas e terminando pela que mais problemas apresenta: a prática sexual.
A maior parte das feministas coincide provavelmente no caráter político da violência sexual dos homens contra as mulheres. As teóricas feministas vieram escrevendo páginas após páginas sobre o papel político da violência sexual como suporte crucial e funcional do sistema político da supremacia masculina . Todo o espectro da violência sexual – incluídos o abuso sexual na infância, o exibicionismo e o assédio sexual, a pornografia, a violação conjugal e os assassinatos de mulheres – tem como fim o controle, o desarme e a submissão das mulheres.

Na universidade onde exerço se deu vários exemplos de como a violência sexual pode limitar as vidas e as oportunidades das mulheres. Em uma ocasião certos avisos expostos em três zonas distintas advertiam as alunas de que deviam ser precavidas. Outras notas nos banheiros de mulheres do centro estudantil preveniam as mulheres de possíveis assaltos, recomendando-as a não entrar sozinhas nos serviços e olhar atrás das portas das cabines. Posteriores avisos no mesmo sentido adornavam os vestiários femininos do centro esportivo, assim como distintas zonas da biblioteca. Desta maneira a “igualdade de oportunidades” das alunas ficava seriamente mermada na hora do intervalo, do estudo e da micção. A maioria das universidades conta provavelmente com problemas parecidos ou piores de violência sexual masculina.

Todas as precauções rotineiras se convertem em uma segunda pele para as mulheres, e somente uma análise feminista descobrirá seu sometimento ao sistema de controle político. Não todas as teóricas feministas estão de acordo na definição do estupro marital e do abuso sexual; porém, a maioria coincidiria em qualificar a violência sexual de construção política com uma determinada finalidade política dentro do sistema de supremacia masculina.

Outro tema referido ao caráter político da sexualidade em que coincidiria grande parte das teóricas feministas é o da construção da heterossexualidade como princípio organizador das relações sociais em um sistema de Supremacia Masculina. Talvez estejam em desacordo sobre a magnitude da relevância da

heterossexualidade como instituição perpetradora do Poder Masculino, mas provavelmente coincidirão em assinalar que as pressões exercidas sobre as mulheres para que estas adotem a heterossexualidade assistem os propósitos da Supremacia Masculina. Sem o princípio da heterossexualidade um homem concreto dificilmente obteria sem remuneração o conjunto de todos os serviços sexuais, reprodutivos, econômicos, domésticos e emocionais das mulheres. Por regra geral, as feministas atuais não consideram a orientação heterossexual um assunto meramente privado e individual, independente do poder masculino.
[Para debate do liberalismo sexual, ver la antologia de D. Leidholdt y J.G. Raymond (comps.), The Sexual Liberals & the Attack on Feminism, Oxf. y NY Pergamon Press (TCP), 1990. ]

[Para um debate de la violencia sexual masculina como controle social, ver: Susan Brownmiller, Against Our Will: Men, Women and Rape. Londres, Secker & Warburg, 1975. [en cast.: Contra nuestra voluntad. Hombres, mujeres y violación, Barcel., Planeta, 1981]. Lal Coveney y cols. (comps.), The Sexuality Papers, Londres, Hutchinson, 1984. Ver introducción. ]


[Referente a heterossexualidade como institución, véase: Adrienne Rich, “Compulsory Heterosexuality and Lesbian Existence”, en Anne Snitow y cols. (comps.), Desire: The Politics of Sexuality, Londres, Virago, 1984. Editado como Powers of Desire, Nueva York, Monthly Review Press, 1983. Monique Wittig, The Straight Mind and Other Essays, Boston, Beacon Press, 1992. El capítulo 6 de mi obra Anticlimax. A Feminist Perspective on the Sexual Revolution, Londres, The Women’s Press, 1990. Para una formidable crítica de la idea de la preferencia sexual, véase: Celia Kitzinger, The Social Construction of Lesbianism, Londres, Sage Publications, 1987. ]

É na área da construção do prazer sexual e da prática sexual onde surgiram os conflitos sobre uma concepção política da sexualidade. O sexo se segue considerando um assunto privado, individual e consensuado, um tabu para a análise política. O feminismo estabelece conexões, e neste caso as conexões parecem evidentes. Tanto a heterossexualidade como sistema político, como a violência sexual como controle social obedecem à construção do desejo heterossexual. Com “desejo heterossexual” me refiro à conotação erótica do desequilíbrio de poder que tem sua origem nas hetero-relações, mas que pode dar-se igualmente nas relações entre pessoas do mesmo sexo. Uma análise feminista assinalaria a necessidade de reconstruir a sexualidade com o fim de desmantelar o sistema sexual da Supremacia Masculina.
Com este fim haveria que construir o que denomino “desejo homo-sexual”, ou conotação erótica da igualdade. En minha obra Anticlimax aponto que a liberação das mulheres não será possível enquanto se considere sexy sua subordinação.

Agora pois, com respeito ao tema do prazer sexual algumas feministas e lésbicas não estão dispostas a estabelecer estas conexões. Para poder apreciar a carga política da prática sexual é necessário por em juízo o conceito liberal do privado. Tanto as feministas como as ativistas lésbicas e os ativistas gays utilizaram de forma estratégica a noçao de‘o privado’ na luta por seus objetivos, já que se trata de um conceito que o estado liberal compreende bem. A liberalização da lei sobre a homossexualidade masculina na Grão Bretanha em 1967, por exemplo, se apoiava na idéia do direito da pessoa à intimidade. Porém, para as feministas esta é uma idéia muito conflitiva. A teórica feminista estadunidense Catharine MacKinnon expôe admiravelmente os problemas que supôe o conceito legal da intimidade para as mulheres: “Reafirma e reforça o objeto da crítica feminista sobre a sexualidade: a separação entre o público e o privado”. Em sua luta por conseguir que a violência conjugal e os abusos sexuais fossem considerados delito, as feministas tiveram que insistir no fato de que a opressão das mulheres se produzia tanto no âmbito privado da casa e do dormitório como no âmbito público. Tanto em sua luta contra a violência masculina como em sua crítica do trabalho doméstico não remunerado, as feministas esgrimiam o slogan da campanha: “O pessoal é político”. MacKinnon aponta:

“Certamente não é casual que as mesmas coisas que o feminismo considera centrais para o sometimento das mulheres – o lugar mesmo: o corpo; as relações mesmas: heterossexuais; as atividades mesmas: coito e reprodução; os sentimentos mesmos: íntimos – constituem o eixo da doutrina da intimidade. Desde esta perspectiva o conceito legal de intimidade pode proteger o lugar dos maus-tratos, da violação conjugal e da exploração do trabalho feminino – e o havia protegido de fato- e ajudou para perpetuar as principais instituições mediante as que se despoja as mulheres de sua identidade, de sua autonomia, de seu controle e sua auto-definição; e protegeu assim a principal atividade através da qual se expressa e se impôe a Supremacia Masculina.”

É factível pôr em entredito o sagrado princípio apolítico do “pessoal” com o fim de lutar contra o abuso sexual. Embora existam sérias diferenças de opinião sobre os requisitos da “violação conjugal”, há consenso entre as feministas sobre a existência deste fenômeno e sobre a necessidade de erradicá-lo. Mas parece ser mais difícil converter o pessoal em político quando se trata de uma prática sexual aparentemente consensuada, se bem os trabalhos feministas sobre a violação conjugal tenham colocado entredito o conceito mesmo de consentimento, e por minha parte farei o mesmo logo mais com relação ao sadomasoquismo. Segue

existindo, portanto, um aspecto do sexo que as liberais feministas continuam considerando privado. Parece crucial para elas que uma área da vida siga se mantendo em certo estado natural, a modo de reserva onde o indivíduo coaccionado possa recorrer em pós de alivio.

O problema da politização do sexo “consensuado” não somente estriba no conceito liberal de intimidade, senão ademais em outras idéias chave da revolução sexual que se converteram na opinião ortodoxa sobre o sexo e que impedem o debate feminista. Uma delas é a noção de sexo, em todas suas formas “consensuadas”, como um fator bom, positivo e necessário para a saúde humana. A mentalidade masculina está dominada por uma concepção dualista do sexo: este se considera ou “bom” ou “mal”. Desde 1890 os reformadores sexuais lutaram contra o puritanismo e os valores considerados contrários ao sexo, promovendo a idéia de sexo como um bem supremo. Ao conferir-lhe este halo de santidade e fomentá-lo como o elixir da vida, se fez difícil colocar em juízo. Quem se auto-proclamava progressista sentenciava que a crítica de qualquer forma de expressão sexual supunha render-se às ocultas forças da repressão da igreja católica, da inquisição e do puritanismo. As forças da Supremacia Masculina que representam o postulado de “o sexo é mal” seguem existindo e é preciso combatê-las1, se bem que não devem servir de pretexto para demostrar o perigo que traz falar de sexo em termos políticos.

Outra idéia chave que impede a discussão política da prática sexual se refere à obrigada suspensão dos valores quando se trata da sexualidade. Meu exemplo favorito é o livro, supostamente progressista, dos anos 60,“The ABC of Love” [O ABC do amor] onde se proclamava a aproximação moralmente neutra às diversas formas do comportamento sexual masculino – como a necrofilia – que constituíam um abuso de poder ou de violência.
[Para um debate da lei de 1967, ver: Jeffrey Weeks, Coming Out, Londres, Quartet, 1977.
Catherine MacKinnon, Feminism Unmodified, Cambridge, MA, Harvard University Press, 1987, pág. 93. Ibíd., pág. 101.

Para uma crítica feminista do conceito de consentimento, ver Carol Pateman, The Sexual Contract, Cambridge, Polity, 1988. Palo Alto, California, Stanford Univ. Press, 1988.

(colocar a referencia em português)
También Susan Hawthorne, “What do Lesbians Want? Towards a Feminist Sexual Ethics”, Journal of Australian Lesbian Feminist Studies, vol. 1, núm. 2, 1991.]

“A necrofilia, a necromania, o necrosadismo: todos estes são atos sexuais que as pessoas podem realizar em relação com os cadáveres. Deixar-se tentar pelos cadáveres não é um fenômeno desconhecido entre quem não há conseguido encontrar uma saída habitual para seus impulsos sexuais. “
Ao que parece, as mulheres não devem sentir-se turbadas ante a idéia de uma violação post-mortem a mãos dos encarregados de depósito de cadáveres. Estes argumentos em favor da suspensão de valores – quando é óbvio que os valores não estão suspendidos – os esgrimem quem assegura que segue a luta contra a herança vitoriana e suas presuntas novas representantes entre a geração atual de lutadoras feministas contra a violência. As principais abandeiradas desta ideologia do liberalismo sexual se encontran atualmente entre as terapeutas, que introduzem no feminismo sua terminologia terapêutica junto com uma forte dose de relativismo moral.
Em meus dois livros anteriores, The Spinster and Her Enemies [A solteira e seus inimigos] e Anticlimax assinalei que os sexólogos estiveram assignando sempre uma função política ao sexo. Ao largo do último século as indústrias da sexologia e da terapia sexual estiveram se dedicando a orquestrar a submissão das mulheres aos homens mediante a aceitação do coito e de sua experiência do prazer de “entrega” neste ato. Todos os sexólogos, psicanalistas, médicos, ginecólogos, conselheiros sentimentais e trabalhadores sociais implicados nesta campanha compreenderam sempre o vínculo crucial – o caráter eminentemente político, portanto – entre o «prazer» supostamente consensuado, pessoal, privado e individual das mulheres e a perpetuação do poder masculino e da submissão das mulheres. Os sexólogos de princípios do século XX tiveram menos escrúpulos na hora de manifestar sua mensagem política. Wilhelm Stekel, por exemplo, lutou sem reserva contra o feminismo, convencido de que o prazer que as mulheres experimentavam por meio do coito constituiria o melhor remédio contra o feminismo, o ódio aos homens, a solteria e o lesbianismo: os grandes perigos para a “civilização”. Em seu livro de 1926, Frigidity in Woman in Relation to Her Love Life [A frigidez da mulher em relação com sua vida amorosa] Stekel demonstra conhecer perfeitamente as consequências políticas do coito prazeroso para a mulher. Afirma que: “Deixar-se acender por um homem significa reconhecer-se como conquistada”.

Os sexólogos dos anos posteriores ratificaram com igual franqueza a função política do prazer sexual das mulheres. O mais conhecido entre os sexólogos britânicos dos anos 50, Eustace Chessler apontou que algumas vezes uma garota:
“… é incapaz de entregar-se completamente no ato sexual. E a entrega total é a única via para que ela e seu marido obtenham o máximo prazer. A submissão não é igual a entrega. Muitas mulheres se submetem e, no entanto, guardam em seu interior um espaço não conquistado que na realidade supôe uma feroz resistência à submissão”.

Tendo em conta que a atual ciência do sexo proclama sua neutralidade explícita, pode parecer surpreendente que os sexólogos conhecessem tão bem a importância política do prazer sexual das mulheres.

Com frequência afirmavam satisfeitos que uma mulher que se entregava ao coito se entregaria igualmente em outras esferas da vida, tais como a tomada de decisões no matrimônio. Na história e na bibliografia da sexologia se encontram formidáveis exemplos da construção política da sexualidade. A sexologia se dedicou sobretudo à construção do coito. Afirmava que as mulheres não o apreciavam o suficiente e que os homens não sabiam executá-lo com a devida eficácia. O estudo dos textos sexológicos acerca do ato sexual convenceria a qualquer pessoa de que não há nada “natural” nesta prática. Em um momento histórico de maiores oportunidades para as mulheres se proclamava a importância vital do coito, dado seu papel na perpetuação do poder masculino. O coito convertia ao macho em “homem” e a mulher em “submissa”. Inclusive nos anos 80 e 90 as revistas femininas e os manuais de educação sexual seguem enfatizando a importância da entrega da mulher no coito. É a versão supostamente científica e respeitável da expressão que os homens costumam empregar para referir-se às mulheres díscolas no ambiente de trabalho ou na rua: “O que necessita é uma boa trepada/pica”.

(Ver minha obra The Spinster and Her Enemies, Londres, Pandora, 1985.

Inge Helgeler y Stan, An ABC of Love, Londres, New English Library, 1963, pág. 252.

Para um debate relativo ao impacto da terminologia e a prática terapêuticas sobre o feminismo, ver: Celia Kitzinger y Rachel Perkins, Changing Our Minds: Lesbianism, Feminism and Psychology, Londres, Onlywomen Press, 1993.

Sheila Jeffreys, The Spinster and Her Enemies. Feminism and Sexuality 1880-1930, Londres, Pandora, 1985, pág. 182.

Citado em Anticlimax, 1990, págs. 29-30.)
Em sua cruzada para submeter as mulheres mediante o coito, os sexólogos encontraram apoio na capacidade destas para conotar eróticamente sua própria subordinação e vivê-la como “prazerosa”. Ao longo da vida as mulheres aprendem suas emoções e suas respostas sexuais em situações de desigualdade e inclusive, muitas vezes, de abusos sexuais. Temos que analisar escrupulosamente a palavra “prazer”. As mulheres podem chegar ao orgasmo durante uma violação ou em uma situação de abuso sexual. Estes orgasmos não demonstram que os “desejavam”, nem que tivesse ocorrido qualquer coisa positiva. Na atualidade não existem palavras para descrever os sentimentos sexuais não-positivos. Somente existem palavras como prazer e gozo. É importante por em entredito o conceito de prazer sexual em sua totalidade e não assumir que os sentimentos sexuais são necessariamente positivos. Assim nascerá uma terminologia mais sensível e mais matizada que permita às mulheres a expressão de uma maior gama de sentimentos sexuais, incluídos aqueles que se vivem como inequívocamente negativos.
Muitas pessoas, incluídas algumas lésbicas, aducen que uma resposta sexual que adota a forma da exaltação erótica do domínio e da submissão é inofensiva, privada, pessoal e individual, ou inclusive útil para lograr sensações sexuais sublimes e para permitir também às vítimas de abusos uma resposta sexual.

Não somente os sexólogos defendem o sadomasoquismo, tanto no “imaginário” como na realidade, senão mais recentemente também os editores e as editoras da nova literatura erótica destinada às mulheres, as terapeutas sexuais heterossexuais e lésbicas, assim como as organizações sadomasoquistas, compostas por heterossexuais ou lésbicas e gays. Mas o interesse que manifesta a sexologia pela entrega sexual das mulheres demonstra a relevância política dos sentimentos sexuais. É justo atribuir aos sexólogos um certo grau de astúcia. Se durante o século passado atuaram sob a premissa de que a aceitação voluntária de uma resposta sexual masoquista debilitava a posição das mulheres nos terrenos político e pessoal, este fato deve bastar para que as teóricas feministas se coloquem ao menos esta possibilidade.
O primeiro indício de uma pujante indústria do sexo nos EUA foi a aparição de uma pornografia lésbica, concebida por uma nova geração de empresárias lésbicas.
Quando começaram a formar-se as organizações antipornografia, as porta-vozes do grupo “Mulheres Contra a Violencia Contra as Mulheres”tinham que responder a seguinte pergunta: “Como podemos criar uma literatura erótica positiva para as mulheres e mais concretamente para as lésbicas?” Um dos resultados da revolução pornográfica dos anos 60 foi a idéia da obrigatoriedade da erótica para o sexo. Este pressuposto se encontrava tão extendido inclusive entre as feministas que as ativistas do movimento antipornografia se viram obrigadas a distinguir entre erótica e pornografia, para demonstrar que não eram nem estraga-prazeres nem umas sexofóbicas. Gloria Steinem define a erótica como:

“uma expressão sexual mutuamente prazerosa entre pessoas que possuem o poder suficiente para estar ali graças a sua livre escolha”, enquanto que a pornografia “leva a mensagem da violência, do domínio e da conquista. É a utilização do sexo com o fim de reforçar ou criar uma situação de desigualdade…“

Algumas militantes contra a pornografia se negaram a tomar este caminho assegurando desde o começo que não existia nenhuma diferença substancial entre erótica e pornografia. Andrea Dworkin explica assim a relação:
“Este livro [Pornography: Men Possessing Women – Pornografia: Homens possuindo Mulheres] não trata da diferença entre a pornografia e a erótica. As feministas fizeram um honorável esforço por definir a diferença entre ambas, alegando geralmente que a erótica traz mutualidade e reciprocidade, enquanto que a pornografia implica domínio e violência. Mas no léxico sexual masculino, que é o vocabulário do poder, a erótica é simplesmente uma pornografia de luxo: mais apresentável e desenhada para uma classe de consumidor*s mais sofisticad*s. Ocorre o mesmo que entre a ‘prostituta de luxo’ e a ‘puta de rua’: a primeira vem melhor arrumada, mas ambas dão o mesmo serviço. Sobretudo os intelectuais chamam “erótica” ao que eles produzem ou codician, para indicar que por trás deste produto há uma pessoa tremendamente inteligente… Em um sistema machista a erótica é uma subcategoria da pornografia.”

Embora muitas ativistas antipornografia não queiram dedicar tempo e energia à confecção de uma erótica positiva, esperavam impacientes sua aparição para ver que aspecto teria este fenômeno. Estávamos convencidas de que esta nova erótica criada por mulheres seria muito distinta à pornografia produzida pelos homens, se apoiaria em valores completamente diferentes e representaria uma nova sexualidade, vaticinio do futuro pós-revolucionário. Certamente algumas feministas criaram algo que denominavam uma nova classe de erótica. Um exemplo é Tee Corinne. Suas fotografias de vulvas2 sobrepostas a paisagens, árvores e praias são uma tentativa de prestigiar a vulva. A associação dos genitais femininos com formas naturais, conchas, flores e frutas tem uma larga historia na arte lésbica. Estas fotografias supôem uma clara ruptura com a tradição pornográfica masculina, na qual a vulva aparece com o único fim de provocar a ereção masculina sugerindo a idéia de penetração. Parece ser que as mulheres sim são capazes de criar uma arte de conteúdo sexual, sem que seja uma réplica da pornografia masculina.
Porém, a nova indústria erótica surgida nos 80 não se dedica a celebrar a beleza da vulva. Quer provocar a excitação e o caminho mais fácil passa, pelo que parece, pela estimulação da capacidade das mulheres de conotar eroticamente nossa opressão.

Ver capítulo 6 sobre o “desejo heterosexual” em Anticlimax, 1990.

Ver relevância do sadomasoquismo na prática heterossexual dos 80: B. Ehrenreich y cols., Re-Making Love: The Feminization of Sex, Londres, Fontana/Collins, 1987. NY,

Doubleday, 1986. Para crítica del sadomasoquismo en la práctica lesbiana, ver: R. R. Linden y cols. (comps.), Against Sadomasoquism, Palo Alto, Cal., Frog in the Well Press, 1982.

Gloria Steinem, “Erotica and Pornography: A Clear and Present Difference”, en Laura Lederer (comp.), Take Back the Night, Nueva York, Quill, 1980, pág. 37.

Andrea Dworkin, Pornography: Men Possessing Women, Nueva York, Perigree, 1981, págs, 9-10

Pat Califia, autora de pornografia sadomasoquista, o explica com toda franqueza:
“Desgraçadamente uma grande parte da nova pornografia lésbica, embora valiosa, não passaria o que Dorothy Allison chama “a prova úmida” … A “erótica feminista”, que apresenta uma imagem simplista do sexo lésbico – duas mulheres apaixonadas juntas em uma cama que encarnam todo o positivo que o patriarcado pretende destruir – não és excessivamente sexy.“

O tipo de pornografia que, ao que parece, passa na “prova úmida” supôs uma considerável comoção para as mulheres, que esperavam ver representada uma nova forma de sexualidade feminina. Praticamente a totalidade do material está relacionado com a conotação erótica da subordinação das mulheres. As autoras desta erótica insistem em que o enfoque inovador da sexualidade feminina que mostra as mulheres como lascivas, quentes e agressivas no lugar de passivas e submissas. Na nova erótica as mulheres podem escolher entre dois papéis: podem assumir o lugar dos homens e deixar-se excitar pela coisificação, a fetichização e a humilhação de outras mulheres; ou podem adotar os velhos papéis submissos, igualmente disponíveis nesta erótica. De maneira que as mulheres possam escolher se deixar excitar pelo papel dominante ou pelo submisso em sua relação com outra mulher.

Barbara Smith, uma autora britânica de erótica, justifica uma pornografia lésbica

onde as mulheres se limitam a adotar um dos dois papéis que oferece a pornografia heterossexual, sem mudar em nada os valores representados:
“A pornografía para lésbicas é excepcional por pressupor um olhar feminino e inclusive lésbico. Pressupôe uma sexualidade feminina ativa. Preconiza o gozo sexual soberano da mulher. Se bem continua apresentando as mulheres como objetos, o faz por meio dos olhos e para os olhos de outras mulheres como sujeitos. Adota imagens estereotipadas, subvertendo-as por completo tanto em sua intenção como em seu contexto, às vezes com um toque de humor. A pornografia para lésbicas nos retrata ao menos tal e como somos, em todo o espectro de nosso ser mulheres: fortes, sexualmente exigentes e realizadas, ativas, passivas e sempre afirmativas.”

 

As teóricas feministas antipornografia lutaram ativamente contra a coisificação através da pornografia. Segundo nossa argumentação, esta coisificação submete a pessoa coisificada, e constrói e reforça uma sexualidade de domínio e de submissão, sobretudo das mulheres. En opinião das feministas antipornografia, a coisificação representa o mecanismo fundamental em que se baseia a violência sexual masculina. Catharine MacKinnon explica com grande acerto a dinâmica da pornografia.

Em uma situação de domínio masculino, tudo aquilo que excita sexualmente aos homens, se considera sexo. Na pornografia a violência mesma é sexo. A desigualdade é sexo. Sem hierarquias, a pornografia não funciona. Sem desigualdade, sem violação, sem domínio e sem violência não pode haver excitação sexual.

Se a erótica significava somente a representação dosexo – sem pretender a excitação senão como uma parte da trama- não teria que denotar necessariamente a desigualdade. A nova erótica, porém, cuja finalidade é a excitação sexual, recorre ao que todo mundo compreende em um sistema de supremacia masculina: o domínio e a submissão.

Alguns editoriais feministas, anteriormente dedicadas a publicação de textos, com novos valores feministas, començaram então a publicar literatura erótica porque se vende. Este é o caso de Sheba, na Grão Bretanha. Sua primeira antologia, “Autênticos Prazeres”, continha uma erótica supostamente alternativa e feminista. Um dos relatos da antologia constitui uma tentativa, bastante divertida, de incorporar valores alternativos nesta nova literatura erótica. Apresenta a um grupo de mulheres claramente afastadas do estereotipado modelo de beleza que prevalece na pornografia tradicional. Enquanto se preparam para uma

festa, a autora nos informa de seus problemas com as criaturas. Elas não são nem jovens nem ricas.
“Amy estava olhando a televisão enquanto secava sua larga cabeleira cinza. Sobre a mesa, adiante do sofá, havia uma taça de sopa e uma torrada comida pela metade. Não se podia perder Coronation Street, nem sequer pela mesmísima Deusa. As seis mulheres estiveram se reunindo ao longo de treze semanas de abstinência sexual para preparar um místico encontro sexual, rodeadas de velas, espíritos e cânticos.”

O marco pode parecer insólito, mas a linguagem sexual empregada é a da pornografia masculina tradicional. Há certo tom de reminiscências decimonônicas como na expressão: “… explorava a abundância nacarada de Sally”. Entretanto, outra mulher suplica a Sally que a “foda com mais força”.

Pelo que parece, inclusive as lésbicas feministas comprometidas e dotadas de certo gênio em muitos terrenos se encontram confinadas aos clichês patriarcais quando escrevem literatura erótica. Longe de construir uma nova sexualidade, estão reciclando a velha.

Pat Califia, Macho Sluts, Boston, Alyson Publications, 1989, pág. 13 de la introducción.
Bárbara Smith, “Sappho was a Right-off Woman”, en Gail Chester y Julienne Dickey (comps.), Feminism and Censorship, Londres, Prism, 1988, págs. 183-184.

Catharine MacKinnon, “Not a Moral Issue”, Yale Law and Policy Review, vol. II, núm. 2, 1984, pág. 343.

As novas revistas eróticas estado-unidenses carecem destos escrúpulos. Não se esforçam por retratar as lésbicas canosas, obesas ou pobres. A mais conhecida se entitula On Our Backs [Sobre nossas costas]. O nome mesmo revela sua intenção de subverter o feminismo: a publicação feminista estadunidense de mais solera se chama Off Our Backs [Fora das nossas costas/Sai de cima de mim]. A política explícita destas revistas consiste em despolitizar o lesbianismo. Encontramos um excelente exemplo na página de subscripções de On Our Backs. Enquanto que as “Radicalesbians” haviam afirmado em um dos primeiros manifestos feministas lésbicos que “uma lésbica é a fúria de todas s mulheres condensada até o ponto da explosão”, On Our Backs assevera que “uma lésbica é o desejo de todas as mulheres condensado até o ponto da explosão” . A frase aparece em cima da imagem de um torso de mulher embutido em um traje de couro negro, os peitos fortemente apertados. A mudança política se substitui pela satisfação sexual pessoal mediante a prática S/M.

[continua, está na metade]

notas de rodapé minhas.

[1] Será mesmo? Não acho que tem que combater a noção de que o sexo é mal, a verdade nos libertará. Nesta sociedade muito provavelmente será uma experiência má para maior parte das mulheres, porque nesta sociedade supremacista masculina está formulada para que sexo seja experiência da violação, do abuso e da coisificação, levando muito trabalho consciente e de éticas e cura de abusos e consciência ativa do que é abusivo e traz dano pra podermos construir outra sexualidade distinta disso nas nossas vidas privadas. Sexualidade é no Patriarcado, como diz Mackinnon, a experiência do prazer em sua forma de gênero, e por isso a colonização nos leva a erotizar a dominação, o poder e ser incitadas por discursos culturais e correntes a nos colocar em situações de risco por meio da sexualidade. Se não posso me cuidar, não é minha revolução. Sexualidade é um sistema político na teoria feminista radical. Se nos acusam de anti-sexo, talvez estejam identificando bem, que estar contra o sexo nesta sociedade é estar contra o Poder em sua forma erotizada. A distinção entre sexo e estupro no Patriarcado não passa duma ilusão na maior parte das vezes, não passa de manipulação. (N.T.)

[2] Traduzi ”genitais femininos” deliberadamente por ‘vulva’ porque acho mais interessante, também não verifiquei no original como está mas não duvido em nada que essa tradução para espanhol na qual estou me baseando não esteja bem ruimzinha em relação ao original. Caso verifique farei alterações no futuro. [N.T.].

 

Como as Políticas do Orgasmo Sequestraram o Movimento Feminista

13-Jan-15

Por que o orgasmo seduziu tantas feministas – até a revista Ms. – a uma contra-revolução interna?

Sheila Jeffreys
A edição de novembro/dezembro de 1995 da revista Ms., com o título de capa SEXO QUENTE E ESPONTÂNEO, mostrava o close de uma mulher negra lambendo seus lábios pintados. A despeito de todo esforço feminista que tem sido feito nos últimos 25 anos para criticar e contestar a construção supremacista masculina do sexo, nenhum dos quatro artigos da revista fazia menção a todos os outros aspectos da vida e do status social da mulher. Em destaque em um dos artigos estava uma frase do livro de Barbara Seaman de 1972, intitulado Livre e Mulher: “O orgasmo livre é um orgasmo que você gosta, em qualquer circunstância”. Julgando por essa edição de Ms., e pelas prateleiras de contos eróticos para mulheres em livrarias feministas, uma política de orgasmo irreflexiva parece ter se estabelecido.
No final da década de 1960 e no começo da década de 1970, acreditava-se amplamente que a revolução sexual, ao libertar a energia sexual, tornaria todos livres. Eu me lembro de Maurice Girodias, que publicou A História do O em Paris pela Olympia Press, dizendo que a solução para regimes políticos repressivos seria postar pornografia em todas as caixas de correio. Orgasmos melhores, proclamou o psicanalista austríaco Wilhelm Reich, criariam a revolução. Naqueles tempos inebriantes, muitas feministas acreditavam que a revolução sexual estava intimamente ligada à libertação das mulheres, e elas escreviam sobre como orgasmos poderosos trariam poder às mulheres.

Dell Williams é citado em Ms. como tendo aberto uma sex shop em 1974 exatamente com essa idéia, a de vender brinquedos sexuais para mulheres: “eu queria transformar as mulheres em seres sexuais poderosos… Eu acreditava que mulheres orgásmicas poderiam mudar o mundo.”

Desde os anos 60, sexólogos, libertários sexuais e empresários da indústria do sexo procuraram discutir o sexo como se fosse completamente dissociado da violência sexual e não tivesse nenhuma relação com a opressão de mulheres.Enquanto isso, teóricas feministas e ativistas anti-violência aprenderam a analisar o sexo politicamente. Nós vimos que o domínio masculino sobre os corpos de mulheres, sexualmente e reprodutivamente, provê a base da supremacia masculina, e que a opressão na sexualidade e através dela diferencia a opressão de mulheres da de outros grupos.

Se nós temos alguma chance de libertar as mulheres do medo e da realidade do abuso sexual, a discussão feminista da sexualidade deve incorporar tudo que sabemos sobre violência sexual ao que pensamos sobre sexo. Mas atualmente conferências feministas oferecem workshops separados, em locais diferentes, de como aumentar o “prazer” sexual e de como sobreviver à violência sexual – como se esses fenômenos fossem isolados. Mulheres que se intitulam feministas agora afirmam que a prostituição pode ser benéfica às mulheres, para expressar sua “sexualidade” e fazer escolhas de vida empoderadoras. Outras promovem às mulheres práticas e produtos da indústria do sexo com fins lucrativos, na forma de striptease lésbico e parafernália de sadomasoquismo. Existem agora setores inteiros de comunidades femininas, lésbicas e gays onde qualquer análise crítica da prática sexual é vista como um sacrilégio, estigmatizada como “conservadorismo”. A liberdade é representada como a conquista de orgasmos mais intensos e melhores por qualquer meio possível, incluindo “leilões sexuais”, prostituição de mulheres e homens, e danificação física permanente como branding. Formas tradicionais de sexualidade supremacista masculina baseadas na dominação e submissão e a exploração e objetificação da classe escravizada de mulheres estão sendo celebradas por suas possibilidades excitantes e “transgressoras”.

Bem, a pornografia está nas caixas de correio, e os artefatos para orgasmos cada vez mais poderosos estão prontamente disponíveis através da indústria internacional do sexo. E em nome da libertação feminina, muitas feministas hoje em dia estão promovendo práticas sexuais que – longe de revolucionar e transformar o mundo – estão profundamente envolvidas nas práticas do bordel e da pornografia.


Como isso pode ter acontecido? Como pode a revolução das mulheres ter entrado em curto-circuito? Eu sugiro que há quatro razões.
Razão Número 1
Vítimas da indústria do sexo tornaram-se “experts” do sexo.

O capitalismo sexual, que encontrou uma forma de transformar em bem consumível praticamente todo ato de subordinação sexual imaginável, encontrou até mesmo uma forma de remodelar e reciclar algumas de suas vítimas. Como resultado, um grupo de mulheres que têm uma história de abuso e aprenderam sua sexualidade servindo aos homens na indústria do sexo agora podem, frequentemente com o patrocínio de empresários homens da indústria do sexo, promover-se como educadoras sexuais nas comunidades lésbicas e feministas.Algumas dessas mulheres “bem-conceituadas” – que dificilmente representam a maioria das vítimas da indústria do sexo – conseguiram lançar revistas como a On Our Backs (para praticantes de ‘sadomasoquismo lésbico’) e montar negócios de striptease e pornografia. Muitas mulheres aceitaram erroneamente essas mulheres, antes prostituídas, como “experts” sexuais. Annie Sprinkle e Carol Leigh, por exemplo, reintroduziram práticas misóginas da indústria do sexo em comunidades femininas. Essas mulheres lideraram a ridicularização direcionada àquelas de nós que disseram que o sexo pode e deve ser diferente.

Ao mesmo tempo, algumas mulheres que lucraram com o livre mercado capitalista nos anos 80 exigiram igualdade sexual e econômica em relação aos homens. Elas escaparam, e agora querem usar as mulheres como homens o fazem, então consomem pornografia e demandam por clubes de striptease e bordéis onde mulheres as sirvam. Essa não é uma estratégia revolucionária. Não há aqui uma ameaça ao privilégio masculino, ou uma chance de libertar outras mulheres de seu status sexual subordinado. E, mais uma vez, os homens se tornaram o padrão para todas as práticas sexuais.

Mulheres anteriormente prostituídas que promovem o sexo da prostituição – mas que agora são pagas para palestrar e publicar – passam uma mensagem que até mesmo algumas feministas consideraram mais palatável que todas as visões e idéias que nós compartilhamos sobre como transformar o sexo, como nos amarmos em igualdade como base para um futuro no qual as mulheres poderiam ser realmente livres.

Razão Número 2
O sexo da prostituição foi aceito como o modelo padrão para sexo.

Nós não podemos construir uma sexualidade que torne possível que mulheres vivam sem terrorismo sexual sem abolir o abuso de mulheres pelos homens na prostituição. Dentro do movimento feminino, no entanto, o sexo da prostituição tem sido defendido e promovido. Shannon Bell em Reading, Writing and Rewriting the Prostitute Body (1994) argumenta que a mulher prostituída deve ser vista como “trabalhadora, curadora, representante sexual, professora, terapeuta, educadora, minoria sexual e ativista política.”Nesse livro a representante das Prostitutas de Nova Iorque Veronica Vera é citada dizendo que deveríamos pensar as profissionais do sexo como “praticantes de um ofício sagrado”, afirmando que sexo (presumidamente qualquer tipo de sexo incluindo o sexo da prostituição) é uma “ferramenta de poder curativo e construtivo”.Mas na verdade o mecanismo mais poderoso hoje em dia para a construção da sexualidade masculina é a indústria do sexo.

A prostituição e sua representação na pornografia criam uma sexualidade agressiva que requer a objetificação de uma mulher. Ela é transformada em uma coisa que não merece o respeito que é devido a outro indivíduo senciente. A prostituição mantém uma sexualidade na qual é aceitável para o cliente obter“prazer” às custas de e no corpo de uma mulher que se dissocia para sobreviver. Esse é o modelo de como o sexo é concebido na sociedade supremacista masculina, e sexólogos construíram suas carreiras sobre esse modelo. Masters e Johnson, por exemplo, desenvolveram suas técnicas de terapia sexual a partir das práticas de mulheres prostituídas que eram pagas para fazer com que homens idosos, bêbados ou simplesmente indiferentes tivessem ereções e pudessem penetrá-las. Como Kathleen Barry apontou em A Prostituição da Sexualidade, a prostituição constrói uma sexualidade de dominação masculina/submissão feminina em que a identidade e o bem-estar da mulher, sem mencionar seu prazer, são vistos como irrelevantes.
A prostituição é um negócio poderoso que está rapidamente se tornando globalizado e industrializado. Mais da metade das mulheres prostituídas em Amsterdã, por exemplo, são traficadas, ou seja, levadas para lá, muitas vezes após serem enganadas, de outros países e são frequentemente mantidas em condições de escravidão sexual. Mulheres australianas são traficadas para a Grécia; mulheres russas para boates de striptease em Melbourne; mulheres burmesas para a Tailândia; e mulheres nepalesas para a Índia. Milhões de mulheres em países de Primeiro Mundo e muitas mais nos países de Terceiro Mundo são submetidas ao abuso de terem seus corpos violados por mãos e pênis indesejados. Mulheres prostituídas sentem-se tão mal vivenciando esse abuso sexual quanto qualquer outra mulher. Elas não são diferentes.
Espera-se que mulheres e crianças prostituídas suportem muitas das formas de violência sexual que feministas consideram inaceitáveis no ambiente de trabalho e em suas casas. Assédio sexual e intercurso sexual indesejado são a base do abuso, mas mulheres prostituídas devem receber ligações obscenas de tele-sexo também. Elas trabalham de topless em lojas, lava-carros e restaurantes. Ao mesmo tempo que outras mulheres estão buscando dessexualizar seu trabalho de forma que possam ser vistas como algo além de objetos sexuais, a demanda de mulheres na prostituição e “entretenimento” sexual está aumentando. A prostituição de mulheres pelos homens reduz as mulheres de quem abusam e todas as outras mulheres ao status de corpos a serem vendidos e usados. Como feministas podem esperar eliminar práticas abusivas de suas camas, ambientes de trabalho e infância se os homens podem simplesmente continuar a adquirir o direito a essas práticas na rua ou, como em Melbourne, em bordéis licenciados pelo Estado?
Striptease é um tipo de prostituição que tornou-se aceitável em países ricos como uma forma de “entretenimento”. (Em países pobres dependentes de turismo sexual, toda prostituição é vista como entretenimento.) Junto de outras mulheres da Liga Contra o Tráfico de Mulheres, eu recentemente visitei uma boate de striptease em Melbourne chamada A Galeria dos Homens [The Men’s Gallery]. Umas 20 ou 30 mulheres estavam “dançando” em cima de mesas. Uma fileira de homens – adolescentes de bairros nobres, homens que pareciam palestrantes e professores de faculdade, avôs, turistas – estavam sentados a essas mesas com seus joelhos escondidos sob elas. Geralmente em duplas, esses homens requisitavam à mulher que tirasse a roupa. Ao fazer isso, ela apoiava suas pernas nos ombros dos homens, ginasticamente mostrando-lhes sua genitália depilada, de frente e de costas e em posições diferentes por 10 minutos enquanto os homens colocavam dinheiro em sua cinta-liga. A genitália da mulher ficava a centímetros do rosto dos homens, e eles olhavam fixamente, suas faces com uma expressão de prazer admirado e culpado, como se eles não pudessem acreditar que possuem tal domínio. Será que os homens estavam excitados sexualmente pela incitação de seu status fálico dominante?Será que a simples exibição da genitália feminina, que demonstra o status subordinado das mulheres, era excitante por si só? Para nós observadoras mulheres, era difícil compreender a excitação e entusiasmo dos homens. Muitos deles deveriam ter filhas adolescentes, não diferentes daquelas mulheres, muitas das quais eram estudantes e cujas genitálias dançavam perante seus olhos hipnotizados.
A dança de striptease nos ensina algo que devemos entender sobre “sexo” como construção da supremacia masculina: Os homens se unem e criam vínculos através da degradação compartilhada das mulheres. Os homens que frequentam esses clubes aprendem a acreditar que mulheres adoram seu status de objeto sexual e adoram provocar sexualmente enquanto são examinadas como escravas em um mercado. E as mulheres, como eles nos dizem, simplesmente não se envolvem no que estão fazendo.

Razão Número 3
Lesbianas têm imitado homens gays.

O questionamento feminista do modelo sexual da prostituição tem encontrado resistência especialmente por parte de muitos homens gays e lesbianas que os imitam. Como Karla Jay escreve, aparentemente de forma não-crítica, em Dyke Life:

“Atualmente, lesbianas estão no limite do radicalismo sexual… Algumas lesbianas agora reivindicam o direito a uma liberdade erótica que já foi associada a homens gays. Algumas cidades grandes possuem clubes de sexo e bares de sadomasoquismo para lesbianas, e revistas e vídeos pornográficos produzidos por lesbianas para outras mulheres têm proliferado nos Estados Unidos. Nossa sexualidade tornou-se tão pública quanto as tatuagens e piercings em nossos corpos”.
Na cultura gay masculina nós observamos o fenômeno de uma sexualidade de auto-mutilação e escravidão, de tatuagem, piercing e sadomasoquismo, transformada no próprio símbolo do que significa ser gay. Interesses comerciais gays investem de forma pesada na exploração dessa sexualidade de opressão como constitutiva da identidade gay. Grande parte do poder do capital rosa [gay] desenvolveu-se a partir do fornecimento de locais para eventos, bares e saunas nos quais a sexualidade da prostituição pudesse ser praticada, embora atualmente na maioria das vezes não paga. A influência cultural da resistência masculina gay aos questionamentos feministas da pornografia e prostituição tem sido profunda, financiada fortemente na mídia gay pela publicidade da indústria do sexo gay.
Alguns homens gays contestaram a sexualidade de dominação/submissão que prevalece na comunidade gay masculina, mas poucos até agora se aventuraram a publicar suas idéias a fim de não provocar a ira de seus irmãos. Homens gays, criados na supremacia masculina, ensinados a venerar a masculinidade, também precisam lutar para superar sua erotização das hierarquias de dominação/submissão se eles desejam se aliar ao feminismo.
O sexo da prostituição é central à construção da identidade gay devido ao papel da prostituição na história gay. Tradicionalmente, a homossexualidade masculina era expressa, por homens de classe média, através da compra de homens e garotos mais pobres – como foi feito por Oscar Wilde, Andre Gidé, Christopher Isherwood. Esse não era o modelo da prática lésbica.
Na década de 1980, à medida que as lésbicas perderam a confiança nas suas próprias opiniões, forças e possibilidades – uma vez que o feminismo foi atacado e a indústria do sexo se fortaleceu enormemente – muitas tomaram os homens gays como os seus modelos e começaram a se definir como “párias sexuais”. Elas desenvolveram uma identidade completamente contrária àquela do feminismo lésbico. Feministas lésbicas celebram o lesbianismo como o apogeu do amor entre mulheres, como uma forma de resistência a todas as práticas e valores da cultura supremacista masculina, incluindo a pornografia e a prostituição. As lesbianas liberais que vieram a público com o intuito de caluniar o feminismo dos anos 80 atacaram as feministas-lesbianas por “dessexualizarem” o lesbianismo e optaram por se identificar como “pró-sexo”. Mas as práticas dessa postura “pró-sexo” acabaram por replicar a versão do lesbianismo que foi tradicionalmente oferecida pela indústria do sexo. As admiráveis novas lesbianas “transgressoras” eram as mesmas construções sadomasoquistas e butch/femme que já têm sido por muito tempo constituintes básicos da pornografia masculina heterossexual.

Essas lesbianas adotaram as práticas da indústria do sexo como constitutivas de quem elas realmente são, a fonte de sua identidade e de seu ser. Porém, a todo tempo elas se sentiam deficientes, uma vez que seu ideal de sexualidade radical e vigorosa, praticada por alguns homens gays, parecia sempre fora de alcance. Em publicações como a revista Wicked Women de Sydney, no trabalho de Cherry Smyth e Della Grace no Reino Unido e Pat Califia nos Estados Unidos, essas lesbianas lamentavam suas inadequações no sexo em banheiros, nos encontros casuais, em conseguirem sentir-se sexualmente atraídas por crianças. Terapeutas sexuais para lesbianas, como Margaret Nicholls, tornaram-se parte importante de uma nova indústria do sexo lesbiano.

Atualmente há uma tendência em revistas feministas e nas revistas femininas de representar a sexualidade lesbiana da prostituição como um prato tentador para mulheres heterossexuais provarem e consumirem. Lesbianismo “transgressor”, derivado da indústria do sexo e mimetizando a cultura masculina gay, é agora apresentado como uma sexualidade “feminina” progressiva, um modelo para como mulheres heterossexuais poderiam e deveriam ser.

Razão Número 4
Subordinar-se pode ser excitante.

Não existe um prazer sexual “natural” que pode ser liberado. Aquilo que provê sensações sexuais a homens ou mulheres é construído socialmente a partir da relação de poder entre homens e mulheres, e isso pode ser mudado. No sexo, a própria diferença entre homens e mulheres, supostamente tão “natural”, é de fato criada. No “sexo”, as próprias categorias “homens”, pessoas com poder político, e “mulheres”, pessoas da classe subordinada, tornam-se carne.

O sexo é tampouco uma mera questão privada. Na concepção masculina liberal, o sexo foi relegado à esfera privada e visto como um domínio de liberdade pessoal no qual as pessoas podem expressar seus desejos e fantasias individuais. Mas a cama está longe de ser privada; ela é uma arena na qual a relação de poder entre homens e mulheres é atuada de forma mais reveladora. A liberdade ali é usualmente a dos homens de realizarem-se através de e nos corpos das mulheres.
Sentimentos sexuais são aprendidos e podem ser desaprendidos. A construção da sexualidade em volta da dominação e submissão é suposta como “natural” e inevitável porque homens aprendem a operar o símbolo de seu status de classe dominante, o pênis, em relação à vagina de forma que assegure o status subordinado da mulher. Nossos sentimentos e práticas do sexo não podem ser imunes a essa realidade política. E eu sugiro que é a afirmação dessa relação de poder, a asserção de uma distinção entre “os sexos” por meio de comportamentos de dominação/submissão que proporcionam ao sexo sua saliência e a intensa excitação geralmente associada a ele na supremacia masculina.
Desde o começo dos anos 70, teóricas feministas e pesquisadoras têm revelado a extensão da violência sexual e de como a vivência e o medo dela castram as vidas e oportunidades das mulheres. O abuso sexual infantil diminui a habilidade de mulheres de desenvolver relações fortes e afetuosas com seus corpos e com outras pessoas, e criar confiança para enfrentar o mundo. O estupro na idade adulta, incluindo estupro no casamento e namoro, produz efeitos semelhantes. Assédio sexual, voyeurismo, exposições e perseguições diminuem as oportunidades igualitárias das mulheres na educação, no trabalho, em suas casas, nas ruas. Mulheres que foram usadas na indústria do sexo desenvolvem técnicas de dissociação para sobreviver, uma experiência compartilhada por vítimas de incesto, e lidam com danos à sua sexualidade e relacionamentos. A consciência da ameaça suprema obscurecendo as vidas das mulheres, a possibilidade do assassinato sexual, nos é exposta regularmente através de manchetes de jornais sobre as mortes de mulheres.
Os efeitos cumulativos de tais violências geram o medo que faz com que as mulheres limitem aonde elas vão e o que fazem, ter o cuidado de olhar para o banco de trás do carro, trancar portas, usar roupas “seguras”, fechar cortinas. Como mostram estudos feministas como o de Elizabeth Stanko em Everyday Violence (1990), mulheres têm consciência da ameaça de violência masculina e modificam suas vidas por conta desse medo, mesmo que elas não tenham vivenciado um assédio mais grave. Em contraste com essa realidade cotidiana das vidas das mulheres, a noção de que um orgasmo “em qualquer circunstância” poderia aniquilar esse medo e vulnerabilidade reafirmada é talvez a falácia mais cruel do pseudofeminismo.
A violência sexual masculina não é trabalho de indivíduos psicóticos, mas o produto da construção normativizada da sexualidade masculina em sociedades como a dos Estados Unidos e Austrália atualmente – como a prática que define o status superior dos homens e subordina as mulheres. Se nós realmente queremos acabar com essa violência, não devemos aceitar essa construção como o modelo do que “sexo” realmente é.
O prazer sexual para mulheres é uma construção política também. A sexualidade feminina bem como a masculina foi forjada no modelo de dominação/submissão, como um artifício para satisfazer e servir à sexualidade construída nos homens e para eles.Enquanto que garotos e homens foram encorajados a direcionar todos os seus sentimentos à objetificação do outro e são recompensados com o “prazer” pela dominação, mulheres aprenderam seus sentimentos sexuais em uma situação de subordinação. Garotas são treinadas através de abuso sexual, assédio sexual, e desde muito cedo com encontros sexuais com garotos e homens assumindo um papel sexual reativo e submisso. Nós aprendemos nossos sentimentos sexuais da mesma forma que aprendemos outras emoções, em famílias de dominação masculina e em situações nas quais nós não possuímos poder, cercadas de imagens de mulheres como objetos na publicidade e em filmes.
O maravilhoso livro de 1994 escrito por Dee Graham, Loving to Survive, retrata a heterossexualidade feminina e a feminilidade como sintomas do que ela chama de Síndrome de Estocolmo Social. Na apresentação clássica da Síndrome de Estocolmo, reféns aterrorizados criam vínculo com seus captores e desenvolvem cooperação submissa a fim de sobreviver. Manuais para aqueles que podem ser feitos reféns, como aquele que me foi dado quando eu trabalhei numa prisão, descrevem táticas de sobrevivência que lembram os conselhos oferecidos em revistas femininas sobre como conquistar homens. Se você for tomado como refém, dizem esses manuais, você deve falar sobre os interesses e família do captor para fazê-lo compreender que você é uma pessoa e ativar sua humanidade. A Síndrome de Estocolmo desenvolve-se naqueles que temem por suas vidas, porém dependem de seus captores. Se o captor demonstra qualquer gentileza, mesmo quando mínima, é provável que o refém desenvolva um vínculo com seu captor até mesmo ao ponto de protegê-lo de perigos e adotar plenamente seu ponto de vista acerca do mundo. Graham define a violência sexual rotineira que as mulheres vivenciam como “terrorismo sexual”. Em face desse terror, Graham aponta, mulheres desenvolvem Síndrome de Estocolmo e criam vínculos com homens.
Uma vez que a sexualidade feminina se desenvolve nesse contexto de terrorismo sexual, nós podemos erotizar nosso medo, nosso vínculo aterrorizado. Toda excitação sexual e liberação não é necessariamente positiva. Mulheres podem ter orgasmos ao serem sexualmente abusadas na infância, no estupro ou na prostituição.Nossa linguagem possui apenas palavras como prazer e gozo para descrever sentimentos sexuais, e nenhuma palavra para descrever os sentimentos que são sexuais mas dos quais não gostamos, sentimentos que vêm da experiência, sonhos ou fantasias sobre degradação ou estupro e que causam angústia apesar da excitação.
O “sexo” promovido por revistas femininas e até mesmo feministas, como se esse fosse dissociado da realidade do status subordinado da mulher e experiência de violência sexual, não oferece nenhuma esperança de desconstrução e reconstrução das sexualidades tanto masculinas como femininas. Sadomasoquismo e cenas de “fantasia”, por exemplo, nos quais as mulheres procuram se “perder”, são frequentemente utilizados por mulheres que foram abusadas sexualmente. A excitação orgástica experimentada nesses cenários simplesmente não consegue ser sentida nos corpos dessas mulheres se e quando elas permanecem alertas e conscientes de quem elas realmente são. O orgasmo da desigualdade – longe de encorajar as mulheres à busca da criação de uma sexualidade proporcional à liberdade que feministas visualizam – simplesmente recompensa mulheres com o prazer da dissociação.
Muitas mulheres, incluindo feministas, limitaram suas visões de como tornar as mulheres livres e decidiram focar-se em ter orgasmos mais poderosos de qualquer forma possível. A busca pela orgasmo da opressão funciona como um novo “ópio para as massas”. Ela desvia nossas energias das lutas necessárias contra a violência sexual e a indústria globalizada do sexo. Questionar-se sobre como esses orgasmos são experimentados, o que significam politicamente, se são obtidos através da prostituição de mulheres na pornografia, não é fácil, mas também não é impossível. Uma sexualidade de igualdade adequada à nossa busca pela liberdade ainda precisa ser construída e defendida se nós desejamos libertar as mulheres da sujeição sexual.
A habilidade de mulheres de erotizar sua própria subordinação e “gozar” a partir da sua própria degradação e de outras mulheres ao status de objeto impõe um grande obstáculo. Enquanto mulheres receberem alguma recompensa no sistema sexual atual – enquanto elas sentirem prazer dessa forma – por que elas desejariam mudar?
Eu sugiro que é impossível imaginar um mundo no qual mulheres são livres ao mesmo tempo que se protege a sexualidade baseada precisamente na sua ausência de liberdade. Nosso impulso sexual deve se igualar ao nosso entusiasmo político pelo fim de um mundo sustentado por todas as hierarquias abusivas, incluindo raça e classe. Somente uma sexualidade de igualdade, e nossa habilidade de visualizar e batalhar por tal sexualidade, torna a liberdade das mulheres possível.

Por que temos que teorizar

10-Jan-15
O reino do Intelectual

Em uma sociedade em que teorizar tem sido o domínio de homens, e onde teorias são quase sempre usadas parar mistificar, intimidar e oprimir, é certo que nós enquanto mulheres deveríamos ser cautelosas em relação ao que vemos como o ato de teorizar – e os teoricos. Nós presenciamos elites usando seu poder para justificar sua posição: dos ricos ouvimos que pobres são responsáveis por sua pobreza, de brancos que negros têm apenas a si mesmos para culpar sobre sua posição na sociedade, e de homens que mulheres estão satisfeitas com seu fardo e escolhem sua subordinação. ‘Teoria’ tem sido usada para construir uma divisão entre aqueles que sabem e aqueles que não sabem, e, como a maioria das divisões em nossa sociedade hierárquica, não é uma divisão entre partes iguais. E essa é uma das razões pelas quais o movimento de mulheres, muito acertadamente, tem suspeitado de teorias e teoricos. Mas nossa impaciência com a teoria não vem apenas do fato de que a maioria das ‘teorias’ a que somos apresentadas terem sido produzidas por homens, ou até mesmo por terem sido usadas para seu próprio interesse, mas por que em tempos de dificuldades econômicas, em temos em que violência contra a mulher parece aumentar e violência entre homens vem tornando-se mais ameaçadora para nós todas, nós estamos propicias a simpatizar com o ponto de Christabel Pankhurst e defender que são Atos e não Palavras que são necessários.

Nós precisamos redefinir teoria e teoricos; nós precisamos ver teoria não como algo que devemos frequentemente resistir, mas como algo que podemos usar para nosso próprio interesse. E nós precisamos enxergar que homens não tem monopólio na teoria: teorizar é uma atividade que qualquer ser humano pode executar.

Nós precisamos saber como o patriarcado funciona. Nós precisamos saber como mulheres desaparecem, por que somos iniciadas em uma cultura na qual mulheres não possuem nenhum passado visível, e o que acontecerá se fizermos esse passado ser visível e real. Se o processo não pode ser repetido novamente, se vamos transmitir para a próxima geração de mulheres o que nós foi negado, nós temos que saber como quebrar o circulo fechado de poder masculino que permite que homens sigam produzindo conhecimento sobre si, fingindo que nós não existimos.

E isso é entrar no reino da teoria – não para mistificar, intimidar ou oprimir, mas para descrever e explicar a experiência das mulheres em uma sociedade dominada por homens que diz que tais experiências não existem já que não há registro delas.

Em um contexto em que mulheres têm duvidas sobre a potencialidade do intelectual, eu introduzirei o argumento de defesa de que isso não é um acidente; Eu sugerirei que o patriarcado considera lucrativo que nós nos afastemos do intelectual. Nós fomos desencorajadas de formular e construir teorias, pois o patriarcado considera essa uma atividade perigosa da parte das mulheres. É por isso que teorias que nós construimos, de novo e de novo, e que mostram muitas características em comum, tenham tão efetivamente desaparecido.

Eu entendo por que devemos suspeitar da teoria, mas acredito que teoria, e a discussão a da história das ideias das mulheres pode ser enriquecedora, pode nos ajudar a entender o presente e planejar para o futuro.”

—  Dale Spender, Women of Ideas and What Men Have Done to Them, on the potential pitfalls of using the realm of the intellectual to engage with women’s (disappearance from) history

tradução M.L.

manifesto repúdio lésbicas separatistas francesas ao movimento gay e queer após europride 2013

10-Jan-15
Movimentos e Políticas Queer, uma embalagem nova pra um velho patriarcado.

 

Nesta terça, 17 de Julho de 2013 em Marseille, nós, lésbicas, tivemos que nos expôr a milícia queer que uma vez mais atacou um espaço político e cultural lésbico somente de mulheres. (Eurolesbopride em Marseille). Uma vez mais, gays nos forçaram a lutar contra nossas irmãs lésbicas, que vieram defender os interesses de homens gays e heteros.

No mundo afora, masculinistas gays e heterossexuais estão travando uma guerra sistemática contra as lésbicas que lutam contra o massacre de mulheres e por sua emancipação e autonomia. E essa agressão prova, se foi necessária, que nenhuma aliança é possível entre gays e lésbicas no patriarcado.

Esses gays mostraram, como todo grupo masculinista, que eles usam assédio, difamação, manipulação, ameaças e violência para nos traumatizar no continuum de violência masculina do qual todas nós somos sobreviventes. Eles apreciam/amam/são felizes vendo mulheres e lésbicas (que são elas mesmas sobreviventes de violência masculina) opôr suas irmãs por servirem como escudos humanos. Desta forma eles nos previnem de diretamente confrontar seus chefes políticos.

Seu alvo é – e cada ação violenta particular que eles vieram perpretando contra nós por anos nos mostram – claramente, as mulheres e lésbicas que lutam contra violência masculina. Sua luta nunca se coloca a favor mulheres e sim apenas busca consolidar seu poder, seu amor homossexual uns pelos outros e o direito masculino de dispôr de seus corpos. Para a longa lista de agressões que já estamos sofrendo (ódio facista, violência sexual de homens heterossexuais, violência racista para algumas de nós, insegurança econômica) nós temos que aguentar aqueles mandatos de homens gays, forçando-nos em heterossexualidade prostitucional e gestação.

De fato, para todas de nós que tiveram êxito em superar a heterossexualidade compulsoria, o lobby proxeneta (cafetão) e liberal nos quer devolta dentro disso em sua forma profissional. Mas heterossexualidade não é trabalho! É ainda e sempre será o sistema pelo qual mulheres como uma classe são submetidas para o prazer dos homen como uma classe em uma dialética capitalista e misoginista de escravização e destruição das mulheres.

E nós, lésbicas, somos mais legítimas que qualquer gay para falar sobre prostituição. Porque todas nós fomos forçadas em algum tipo de comportamento prostitucional, seja pelo constante assédio sexual no local de trabalho, o abismo salarial e as ameaças de desemprego, os empregadores masculinos nos estão forçando em adotar atitudes, gestos e comportamentos que diariamente alimentam o desejo e o prazer dos colegas MASCULINOS, clientes, usuários, pacientes, diretores.

A então chamada Indústria Sexual Masculina é um negócio liberal trabalhando a toda capacidade e gerando bilhões. Esse negócio nunca vai parar de fazer lucros colossais enquanto produz prazer para homens. E desde que gays1 escolhem ser os agentes de segurança deste negócio, nós somos o inimigo a ser abatido.

Portanto, nós estamos convocando cada lésbica e feminista a ser muito atenta por adotar precauções de segurança para protegerem a si mesmas dos ataques destes homens e ameaças, de sua ilícita captura de nossas imagens e informação, e a lutar qualquer de suas estratégias de sabotagens de nossas lutas.

Nós lésbicas separatistas queremos fazer a heterossexualidade desaparecer pelo bem de nossas vidas, custe o que custar.

Não iremos recuar a quaisquer práticas de intimidação de gays e heteros masculinistas nem a qualquer de suas tentativas de forçar reassignamento social e sexual sobre nós.

 

Heterossexualidade não é trabalho!!

***

[1] eu agregaria não somente gays mas todo movimento (e sujeitos) LGBT… (entendo que o L ali seriam as lésbicas liberais)..

[2] europride: um tipo de marcha do orgulho gay da europa.

 

retirado de http://sisyphe.org

SENALE, desaparição dos espaços de resistência lésbicos, relativização de identidades e separatismo

10-Jan-15
por Andressa Stefano

SENALE: Seminário Nacional de Lésbicas. A autora se refere ao último SENALE que ocorreu em Porto Alegre em 2014, no qual ele se tornou SENALESBI e quase foi aprovado ser SENALESBITRANS. Tal ação aprovada aí, de forma bastante autoritária, foi considerada por muitas um ato de destruição da memória lésbica desses seminários e a importância de preservar o nome lésbico neste, sendo o único seminário de lésbicas e havendo um seminário nacional de bissexuais já.

 

A pós-modernidade que se infiltra no movimento feminista está despolitizando e descentralizando as pautas do movimento das mulheres. E uma das táticas disso, é a ressignificação do conceito de feminismo, ou uma ampliação do que seriam vários conceitos de “feminismos”. Temos que retomar o conceito de feminismo, e, a partir desse conceito, é inevitável que surjam diversas táticas de combate ao patriarcado. Essa abertura, relativiza e desestabiliza as forças que sempre pulsaram na base do movimento (ou seja, as próprias sujeitas, as lésbicas) e que lutam por pautas específicas e materiais, por termos realidades materiais e opressões materiais. A segunda onda feminista foi de onde mais saíram escritoras e teóricas, e, infelizmente, estão sendo apagadas à força pela academia engolida pela teoria queer, e, mais recentemente, o ativismo trans.Uma das consequências dessa relativização do conceito de feminismo, é também a relativização da identidade lésbica. Se para os liberais não existem estruturas, tudo é auto-identificação e relativismo, então qualquer um(a) pode ser lésbica, qualquer um pode ser mulher. Basta se “identificar” com essas categorias. O que eu vi no SENALE foi a materialidade do que antes só estava na academia e em ambientes restritos. Me assusta ver feministas marxistas e materialistas fechando com o conceito de “identidade de gênero” e mais surreal que isso só mesmo “falo lésbico”. Me pergunto se isso é uma tática partidária, ou se é falta de formação política da juventude feminista. Qualquer uma das duas, é extremamente preocupante e me faz temer o rumo que o feminismo está tomando enquanto movimento político, e quais pautas concretas, a curto, médio e longo prazo, nós queremos trazer para a realidade das mulheres lésbicas. Essa “união” e uma teórica “visibilidade das bissexuais” está desarticulando o único movimento que ainda tínhamos para falar sobre nós, sobre as nossas vivências, e nos organizamos politicamente enquanto sujeitas autônomas, de um feminismo revolucionário, e não mais um espaço colonizado, em que as lésbicas são secundarizadas e marginalizadas.Lésbicas existem muito antes do feminismo existir enquanto corrente teórica e movimento social. Lésbicas foram queimadas em praça pública, foram bruxas, foram mortas, foram estupradas. Lésbicas resistiram à heterossexualidade como regime político, foram marginalizadas, excluídas dos espaços públicos e políticos. Lésbicas feministas resistiram à apropriação e invisibilidade do movimento LGBT que sempre foram espaços majoritariamente masculinos que não nunca se propuseram à lutar para um desmantelamento da supremacia masculina, mas sim, uma reforma política para uma “convivência pacífica” entre as ditas “minorias sexuais” e uma manutenção das estruturas patriarcais que mantém as mulheres sob controle masculino. Os espaços gays neo-liberais sempre foram tóxicos para as lésbicas, sempre foram colonizadores e despreocupados com a nossa vulnerabilidade peculiar na sociedade feita por homens e para homens.Lésbicas radicais propuseram e propõe espaços de resistência apenas de lésbicas com o intuito de fortalecer a autonomia e a militância combativa e organizada. Separatismo é resistência. É tática neo-liberal nos fazer acreditar que temos que nos unir “a tudo e todos”. Gays não vão lutar pelas lésbicas. Gays estão preocupados em manter o status quo e manter o acesso aos nossos corpos mesmo que, supostamente, não tenham desejo pelos mesmos. Trans vão lutar pela identidade de gênero, pela aceitação dos seus nomes sociais perante o Estado, mas não vão lutar efetivamente pela desnaturalização da violência que acomete as fêmeas. Vejam que, dentro do ativismo trans, os homens trans não são destaque, e isso é só uma consequência de um movimento que privilegia o sexo masculino, assim como quase todo movimento social. Se não lutarmos pelas pautas que nos acometem, das quais somos protagonistas, querendo fazer maternagem com outros grupos vulneráveis, estes mesmos grupos não o farão pela gente. O movimento feminista é o único movimento em que existe uma coerção para acolher “à todxs”, como uma grande mãe que luta por todos aqueles que sofrem. O FEMinismo é para nós. Saio deste SENALE decepcionada, sentido falta de FEMINISMO LÉSBICO. O que é uma incoerência absurda em um seminário que tem um slogan de “lesbiandade e feminismos”. Proponho uma união entre as sapatas, em pensarmos em como construirmos de forma autônoma e efetiva um novo espaço de articulação. Mais uma vez, nós estamos saindo dos espaços, enquanto todo o resto se pendura no braço movimento lésbico. 

Lélia Gonzales

10-Jan-15
“Gostaríamos de chamar atenção para a maneira como a mulher negra é praticamente excluída dos textos e do discurso do movimento feminino em nosso país. A maioria dos textos, apesar de tratarem das relações de dominação sexual, social e econômica a que a mulher está submetida, assim como da situação das mulheres das camadas mais pobres etc., etc., não atentam para o fato da opressão racial. As categorias utilizadas são exatamente aquelas que neutralizam o problema da discriminação racial e, consequentemente, o do confinamento a que a comunidade negra está reduzida. A nosso ver, as representações sociais manipuladas pelo racismo cultural também são internalizadas por um setor que, também discriminado, não se apercebe que, no seu próprio discurso, estão presentes os mecanismos da ideologia do branqueamento e do mito da democracia racial. Em um encontro feminista realizado no Rio de Janeiro, nossa participação causou reações contraditórias. Até aquele momento, tínhamos observado uma sucessão de falas acentuadamente de esquerda, que colocavam uma série de exigências quanto à luta contra a exploração da mulher, do operariado etc., etc. A unanimidade das participantes quanto a essas denúncias era absoluta. Mas, no momento em que começamos a falar do racismo e suas práticas em termos de mulher negra, já não houve mais unanimidade. Nossa fala foi acusada de emocional por umas e até mesmo de revanchista por outras; todavia, as representantes de regiões mais pobre nos entenderam perfeitamente (eram mestiças em sua maioria). Toda a celeuma causada por nosso posicionamento significou, para nós, o atraso político (principalmente dos grupos que se consideravam mais progressistas) e do outro, a grande necessidade de denegar o racismo para ocultar uma outra questão: A EXPLORAÇÃO DA MULHER NEGRA PELA MULHER BRANCA.

 

Lélia Gonzales- Socióloga, intelectual, Política, Professora, Antropóloga e militante do Movimento Negro Unificado. (Em Memoria)